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O sul de uma Amália que pintava flores



Ao longo do ano de 1963 Fernanda de Castro desdobrou-se em visitas ao Castelo de Silves, Quinta de Mata-Mouros, rio Arade, cais de Portimão, praça pombalina de Vila Real de Santo António, Tavira e suas inúmeras igrejas, fortaleza na praia da Rocha, Olhão, Albufeira e a outros lugares com o intuito de organizar o I Festival do Algarve. Fruto da sua rede privilegiada de relações e contactos, apresentou o projecto ao então secretário nacional da informação, Moreira Baptista, argumentando nestes moldes: “Acho que o Algarve começa a ser muito conhecido no estrangeiro, mas a verdade é que, tirando o sol, o mar e as praias, o turista não tem nada que fazer além do banho e das refeições.” Autorizado o evento pela tutela, o staff organizador seria composto, para além da própria Fernanda, pelo seu irmão Francisco Telles de Quadros e Castro, pela escritora Edith Arvelos, pela pintora Inês Guerreiro e pelo poeta José Carlos Ary dos Santos.

O arrojado evento cultural, que se estendeu assim a vários pontos do Algarve, só se concretizaria em 1964, iniciando-se a 12 de Agosto no Castelo de Silves com um espectáculo cuja primeira parte foi dedicada à música e poesia árabes, com a colaboração especial de Larbi Jacoubi (então director do Teatro Universitário de Tânger) e dos irmãos e músicos Hamza Ouazzani e Abdellatif Ouazzani (príncipes marroquinos). Na segunda e terceira partes foram apresentados, respectivamente, sonetos camonianos e excertos d’Os Lusíadas, e, em estreia absoluta, o poema dramático de Ary dos Santos “Tempo da Lenda das Amendoeiras” (dedicado pelo autor a Fernanda de Castro), o qual ganhou aqui uma importante consagração.

Amália Rodrigues, que acreditava nas origens árabes (e marítimas) do fado, encarando-o como expressão de uma queixa, foi uma das protagonistas deste I Festival. A relação da fadista com o Algarve já remontava aos anos 40 (como atestam várias fontes), com passagens pela região para concertos, sobretudo nos casinos mas também em festas de cariz mais popular, sempre com assinalável sucesso para a já então considerada “rainha do fado”. A actuação de Amália na Festa da Lua, em Armação de Pêra, seria assim um dos pontos altos do festival, tendo como pano de fundo um mar repleto de barcos engalanados e iluminados, e no meio do areal uma embarcação colorida, rodeada por uma guarda de honra de pescadores, de remos ao alto. Fernanda de Castro registou nos seus escritos autobiográficos esse momento único e mágico em que a vibração do lu(g)ar, o simbolismo do cenário montado para o efeito e a envolvência poética da música se fundiram harmoniosamente:

E, sobre esse barco, pálida, sob a pálida brancura da Lua, Amália, sozinha, de pé, com um vestido negro que a tornava ainda mais branca. Na praia, coalhada de gente, um silêncio mortal. Começaram a ouvir-se as guitarras escondidas na sombra e a voz de Amália, vibrante, pura como um cristal, abalou o silêncio, a noite, a própria lua que a iluminava. Havia uma leve aragem e eu disse à Jacqueline, que tinha vindo passar umas semanas a Alporchinhos:

– Dommage qu’il fasse un peu froid.

Ao nosso lado uma francesa, elegante e muito bela, voltou-se para mim, sorriu e disse:

– Qu’est-ce que ça fait, madame! C’est beau, c’est terriblement beau!

Depois de cantar durante duas horas, Amália andou de grupo em grupo na praia, dando-se ao povo, agradando-o – um dia confessaria mesmo que, no fundo, essa era a sua única pretensão –, como tanto apreciava/precisava. A organização do festival preparara, sobre a areia, vários repastos típicos: “vilas” de amêijoas, ostras e polvos grelhados, azeitonas britadas com orégãos, pão de trigo, queijos de Serpa, vinho de Lagoa e de Portimão, figos e amêndoas, morgadinhos e dom-rodrigos, aguardente de medronho, etc. O já aludido Larbi Jacoubi ficaria mesmo extasiado com a força e verdade com que a voz de Amália exprimia a tristeza pura e poética ou a existencial alegria de viver, tirando do dedo um anel que lhe ofereceu dizendo-lhe: “Como vê, este anel tem como adorno um olho de boneca. Tenho outro igual em Tânger, com o outro olho da mesma boneca. Use este, que eu vou usar o outro, e assim ficaremos ligados até ao fim da vida.”

Revisitando uma vez mais memórias das conversas com o João Belchior, penso que Amália tinha essa capacidade rara (uma espécie de dicotomia quase “esquizofrénica” e cativante) de convocar a alegria solar, a festa, a dança e o riso com a mesma intensidade e verdade com que cantava a tragédia e derramava lágrimas sobre o mundo, sem se inclinar ou revelar necessariamente uma opção muito clara/declarada por apenas uma dessas dimensões – e talvez por isso gostasse tanto de citar o espanhol Antonio Machado (1875-1939), um dos seus poetas predilectos: “A todos nos han cantado / en una noche de juerga / coplas que nos han matado…” (do poema “Cante Hondo”).

Na 2.ª edição do Festival do Algarve, realizada em 1965, Amália voltaria a participar, desta vez cantando em Albufeira numa grande esplanada na praia. Dado o vento e a humidade do ar, a fadista estava preocupada com a sua garganta atendendo a que iria actuar ao ar livre. Daí que Inês Guerreiro, da organização, tenha falado “com um velho marinheiro e com o auxílio deste montou no estrado uma vela de traineira que, logo que Amália começou a cantar, se ergueu como se o estrado fosse de facto um barco a fazer-se ao mar”. O belo efeito de cena que a solução originou, protegendo ao mesmo tempo a preciosa voz de Amália do vento, foi recebido com uma enorme ovação pelas centenas de pessoas (sobretudo estrangeiros) que estavam presentes no local, segundo também recorda Fernanda de Castro nas suas memórias. Quando, nesse mesmo dia, num momento de maior relaxamento, a escritora perguntou a Amália o que sentia perante o enorme reconhecimento mostrado lá fora por plateias cosmopolitas, a sua reacção inicial foi de silêncio, e a resposta seria: “Penso que nada daquilo é comigo, que eu estou ali, sim, mas que não sou eu, que estou longe, muito longe, e que estou a cantar, a agradecer e a sorrir como se fosse outra pessoa, como se de qualquer modo estivesse a receber aplausos que não me eram destinados.”

Amália nunca aprendera a cantar e nem sabia porque cantava, como sublinhava amiúde. Mas a sua intuição, ouvido e instinto (uma espécie de inteligência-bruxa que lhe dizia do bem e do mal) eram porventura os seus traços mais vincados e a sua “única e exclusiva arma”, como até confessou. Porque a canção popular portuguesa talvez seja – como ela definiu, com uma clarividência genial, numa entrevista a Miguel Esteves Cardoso em 1982 – duas ou três notas que não valem nada e que nos comovem.

Evoco novamente João Belchior Viegas, a cuja memória dedico este texto e com quem tive o privilégio de privar em São Brás de Alportel, em 2003-2004, na fase final da sua vida. Após o falecimento de Amália em 1999, que muito o abalou, desencantou-se com Lisboa e rumou à terra-natal de seus pais, ambos oriundos da vila da beira-serra, onde começaria a colaborar com a Biblioteca Municipal (a quem doou o seu espólio literário), inclusive coordenando um clube de leitura em parceria comigo naquele equipamento cultural, o qual arrancaria a 23 de Abril de 2003.

O João nasceu em Lisboa em 1926, frequentou o Colégio Moderno até 1944 e depois o Liceu Camões, integrou nos anos 50 o grupo literário Távola Redonda (fundado pelo seu maior amigo, o poeta David Mourão-Ferreira), trabalhou com o pai no Montijo no ramo corticeiro e ingressou depois, a partir de meados da década de 50, nos quadros da Valentim de Carvalho, assumindo em 1965 a chefia dos seus estúdios em Paço d’Arcos (Oeiras) – onde produziu vários discos de Amália, entre eles Gostava de ser quem era (1980) e Lágrima (1983), ambos inteiramente com letras da fadista –, função que acumulava com a de seu agente artístico.

Como tão bem resumiu José Manuel dos Santos numa crónica evocativa ulterior ao seu falecimento, o João “possuía as qualidades e até alguns dos defeitos necessários para o conquistar [o mundo], excepto a vontade de ter vontade para isso. E defendia-se do mundo, atacando-o. Nunca conheci ninguém que fosse tão capaz de ver a nódoa no melhor pano”. Eficaz, fiel e invisível – a pintora Maluda faria um retrato seu que é ilustrativo, em que há um corpo, mas não há traços no rosto –, esteve nos melhores e mais difíceis momentos da vida de Amália. Correu o mundo com ela, aconselhou-a e transmitiu-lhe aquela segurança, amparo e clarividência que alguém com a personalidade intensa e inquieta da fadista tanto precisava. Em 1984, Amália refugiou-se no hotel Milford Plaza, em Nova Iorque, pensando que teria uma doença fatal e num momento de profunda tristeza e desespero enviaria a João Belchior uma carta (inédita) que passo a transcrever:

Querido Belchior

Tenho tentado telefonar-lhe mas a diferença das horas não me deixou encontrá-lo. Quero dizer-lhe que gosto muito de si, que não gosto nada de estar aqui e que estou cheia de medo! Só amanhã é que vou saber se tenho de ser operada. Não fique triste. Todos nós temos que ir e eu, como já deu por isso, não gosto de cá andar! Só lhe digo isto porque julgo que para si será um bocadinho menos triste… No caso de eu ficar por cá, queria pedir-lhe um favor. Gostava que continuassem a pagar ao Carlos Gonçalves [músico de Amália (guitarra portuguesa)] e, no caso de a vida aumentar muito, dar-lhe os meus direitos da Valentim de Carvalho. Direitos do[s] [discos] Gostava de ser quem era e Lágrima. Agradecia que dissesse isto ao Rui [Valentim de Carvalho]. Até quando Deus quiser. Se Deus quiser… Agradeço-lhe muito cá de dentro de mim a amizade que me deu e que me deu tanto! Também gostava que continuassem na mesma a seguir com o disco das cantigas americanas [Amália na Broadway]. Um beijinho muito grande e grande parte de mim. Obrigada por tudo!

Amália

Também eu te sou grato, João, por uma amizade que soube a pouco e a tanto, que fez da minha vida mais vida e que foi, acima de tudo, certeza (dizem, alguns, que é isso que a distingue do amor...). Depois de ti acredito mais em Demócrito: “A amizade de um único ser humano inteligente é melhor do que a amizade de todos os insensatos.” Obrigado por me mostrares, do teu jeito irrepetível, uma mulher apaixonante, de seu nome Amália, que gostava de dar asas à voz de olhos fechados (tal como o seu pai quando tocava cornetim) e que, à imagem da bonita voz de sua mãe, não era capaz de cantar sempre da mesma maneira. Uma Amália que não morreu, voou (com o pôr do sol), como escreveu um dia Fernando Dacosta.
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