O sul de uma Amália que pintava flores
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“Na brancura da cal o traço azul / Alentejo é a última utopia. // Todas as aves partem para o sul / todas as aves: como a poesia”, escreveu Manuel Alegre. Amália também sentiu esse apelo inebriante do sul, talvez impelida pelo seu espírito de cigana-andarilha e bicho-do-mato. Ávida de horizontes largos e da comunhão despreocupada com as coisas mais simples, a afinidade com o mistério da imensidão alentejana já morava em si: “A primeira vez que fui ao Alentejo era muito nova e tive uma sensação de liberdade. E aquele espaço todo sem fim à vista. O Alentejo é um sítio onde uma pessoa vê mais do que aquilo que pode ver.”E depois havia o mar, motivo poético que cantou nos palcos do mundo e que redescobriu nos encantos da então virginal costa alentejana, e que para Amália foi sempre sinónimo de força e de ânsia de evasão e libertação. “Gostar do mar foi talvez uma necessidade”, diria mesmo, e imaginava frequentemente, como reza certo cancioneiro alentejano, “que o mar se transforma[va] em rosas / e o seu barco num jardim”. Daí ter pintado, pela sua mão, flores de todas as cores nas paredes voltadas para as águas atlânticas da sua casa no Brejão, na freguesia de São Teotónio (concelho de Odemira), onde escondia e exorcizava a inescapável solidão – de muitos anos a arrastar o amor das multidões – e a desilusão – de quem não tinha saudade do passado nem esperança no futuro –, numa espécie de fortaleza que também era um porto de abrigo. Um lugar solar, o reverso do fado, onde Amália pôde ser raiz e flor, tronco e brisa, profunda e fluente – dualidades que tão bem sintetizou o amigo e poeta David Mourão-Ferreira.
Como confidenciava o meu amigo João Belchior Viegas – cúmplice, conselheiro e empresário de Amália entre 1965 e 1992 –, ela procurava os campos de Odeceixe e lá, sim, sentia-se contente por estar viva, excitando-se com os prados repletos de malmequeres e comovendo-se com as cores garridas e contrastantes, como que embriagada pelo cheiro da esteva que a aragem espalhava. Equacionaria até consultar um psicanalista por causa da sua paixão pelas flores, com quem falava amiúde e ralhava quando não abriam ou cresciam como desejava.
Os seus amigos, aliás, também eram aqueles que consigo se aventuravam a cortar ramagens e flores em muros de casas particulares em Lisboa. Quando eram surpreendidos pelos proprietários, Amália lançava o xaile à cabeça e fugia a rir. Apesar de a Câmara Municipal lhe ter começado a remeter ramos de flores regularmente para a poupar ao cansaço das jardinagens clandestinas, a fadista nunca abdicou desse vital divertimento. Um dia, quando questionada sobre as suas virtudes, Amália diria mesmo que as suas maiores qualidades eram cheirar com o seu nariz, ver com os seus olhos, apalpar com os seus dedos, crer em Deus – à sua maneira, sem deslumbramento pelo céu nem medo do inferno (curiosamente, a palavra “Amália” significa em árabe “trabalho de Deus”) – e não ter ambição.
A descoberta, em 1962, dos paradisíacos nove hectares de terra junto à praia da Seiceira no Brejão veio no seguimento de uma década de intensa projecção internacional para Amália, a qual culminou em 1959 com a eleição como uma das quatro melhores cantoras do mundo (a par de Édith Piaf, Judy Garland e Lena Horne) pela prestigiada revista norte-americana Variety. Não obstante, Amália faria um ano sabático, ausentando-se dos olhares públicos entre 1960 e 1961, vindo a casar-se neste último ano com o engenheiro César Seabra no Rio de Janeiro. Apesar de ter anunciado que iria abandonar a carreira artística passando a viver no Brasil, a paixão pelo chão pátrio e por um povo-fa(da)do que a entendia falariam mais alto, e em 1962 Amália regressa a Lisboa, ano em que conhece Alain Oulman na Ericeira (este mostra-lhe inicialmente o poema Vagamundo, de Luís de Macedo) e com quem enceta uma inspiradora colaboração que iria ser decisiva para o seu futuro percurso, levando-a a explorar novos e ousados territórios musicais estranhos até então a uma visão mais clássica do fado: “Eu estava à espera daquela música [de Oulman]. Não é que estivesse à espera, mas a minha maneira de cantar estava à espera daquilo.”
O ano de 1962 é, assim, duplamente estimulante para Amália: uma nova etapa musical em que o fado atingirá voos mais altos de arrojo e reinvenção (patentes logo no célebre EP Amália Rodrigues, mais conhecido como Busto ou Asas fechadas); e a descoberta de um singular refúgio a sul. Num descapotável verde prateado, de estilo americano, conduzido por um motorista, Amália chegou ao Brejão com César Seabra, recém-casados, e ter-lhe-á dito “já não saio mais daqui”, adquirindo uma herdade junto à falésia a Jacome Pacheco, pai do actual dono do Café Central da pacata povoação, pela quantia de 300 contos. Terminava assim o périplo exploratório da fadista pela costa alentejana (de Lisboa a Sagres), em busca de distância e resguardo relativamente aos holofotes da fama. O marido de Amália idealizaria então para esse espaço um projecto de vivenda para férias, com linhas modernas e privilegiando o conforto, bem como um acesso (ainda lá estão os degraus que Amália tantas vezes pisou) ao pequeno areal da praia que ficaria conhecida como a “Praia da Amália”. Uma casa sem luz nem telefone, “simplesmente” um sítio onde pendurar o chapéu (como diria Bruce Chatwin), um “lugar sem deve nem haver”, onde Amália encontrou “um modo de calar e um falar claro / um olhar cara a cara e frente a frente / um viver devagar que tudo é raro / e único e só assim urgente” (nas palavras de Manuel Alegre sobre o Alentejo).
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