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Amália: "Nunca fui nem nunca serei uma revolucionária."

Amalia Rodrigues - Dezembro 08, 2019

Entrevista feita pela jornalista Maria Augusta Silva por ocasião dos 65 anos da fadista e publicada em 1985 pelo DN.

Amália: um nome, um fado em muitos fados, uma voz. A voz sem igual com que canta desde os 20 anos. Hoje (1985) tem 65 e diz ser uma pessoa desencantada, não com o público porque esse, em todos os cantos do mundo, ao longo de mais de quatro décadas, deu-lhe sempre testemunho da sua estima e admiração. Por essa Amália que nasceu em tempo de cerejas, no Pátio dos Quintalinhos, para os lados da Rua da Palma; por essa mulher que foi criança pobre, pés sem sapatos, e calcorreou as ruas da cidade apregoando limões.

Amália sonhava os sonhos dos simples. Assim sonhando, um dia cantou. E cantou de tal jeito que deixou a venda dos limões para tornar-se na grande senhora de um fado com marca. De um fado sofrido. De um fado que tem amor e ciúme, lágrimas e esperança, carências e súplicas. De um fado que é nosso na expressão mais singela das palavras comuns a todos os mortais. Na voz de Amália esmoreceram aos poucos a gargalhada inocente e o pregão cristalino a fugir da polícia. Mas trouxe para o fado a força da alma.

E Amália continuou amarrada ao sonho com tais amarras e tão cegamente que se foi esquecendo de criar defesas contra todos os riscos para acautelar a sua humildade e a sua grandeza.

Magoaram depois os seus sentimentos quando ela, fadista de encontros e desencontros, quis manter o seu fado sem desvios. Amália chorou então mais amargamente que nunca e ficou-lhe uma ferida que sangra por dentro ao mais leve toque. Encontrou refúgio no seu temperamento dramático e tímido, pedindo ao fado perdão por o haver cantado e sentido como destino único. E continuou a correr para o campo num apelo à vida, colhendo flores à beira da estrada, carregando braçados de folhas e giestas e alecrim aos molhos. E continuou à procura de um mar imenso e forte para sobre ele estender a utopia, os sonhos à margem da teia material da vida.

Amália Rodrigues volta agora a ser recordada (justiçada) na gravação dos seus maiores êxitos e revela-nos uma sensibilidade de corpo inteiro, prometendo para breve a sua voz em poemas de Cecília Meireles. E prometendo, também e apesar de tudo, amar o fado até ao fim. O fado que, ontem como hoje, deseja cantar para toda a gente.

O melhor de Amália Rodrigues volta a ser apregoado em reedição discográfica. O que é para si o melhor de Amália?
Creio que a intenção é lembrar os meus primeiros sucessos e os fados que as pessoas mais têm gostado de me ouvir cantar. No início da minha carreira, eu tinha uma voz cristalina, cheia de frescura e plena de inocência. Tinha, afinal, a inocência de uma pessoa que não sabe o que é cantar nem coisa nenhuma...

Como diz que não sabia cantar se a descobriram precisamente por ter uma voz excecional para o fado?
Tinha voz, naturalmente, mas faltava-me um certo "calo", uma habituação às músicas e até a forma de dar a volta às interpretações, o que já requer uma educação da voz, embora nenhuma técnica nos valha se não houver a tal intuição.

A voz dos seus 20 anos nada tem que ver com a voz dos seus 40 nem com a voz, hoje, dos 65 anos, que a leva ainda a novas gravações?
Aos 20 anos, a minha voz era fresca e tinha, porventura, a beleza dessa juventude. Mas acho que aos 40 anos foi quando atingi uma capacidade de interpretar o fado com maior profundidade ou, se preferir, com maior maturidade. Não porque soubesse cantar melhor. É outra coisa, até porque eu nunca saberei cantar na minha vida!

O quê, Amália? Espanta-me uma afirmação dessas. Tem andado 45 anos a cantar sem consciência de cantar bem?

Não é isso. Sinto que nunca canto hoje igual a ontem. Quem me ouve cantar duas ou três vezes sabe que isto é verdade. Tenho a intuição do fado. Foi qualquer coisa que Deus me deu, mas depois o fado sai de mim consoante o meu estado de alma, os meus nervos, as minhas emoções. Tudo se prende com a nossa interioridade. O fado ou é isso ou nada...

Recusa-se a aceitar outros valores no fado?
De maneira nenhuma. Eu reconheço e aceito outros valores desde que sejam valores. Há alguns, mas também há por aí quem de fado nada entenda e pretenda misturar o trigo com o joio... Isso dói-me!

Faz sempre questão de afirmar que a sua voz é um dom divino. Tem assim tanta convicção em Deus?
Tenho. Eu não fiz nada para ter esta voz. Então, porque a tenho? Alguém ma deu...

Nessa sua convicção, como define Deus?
Não tem definição. Deus, para mim, é Deus. Sinto essa força dentro de mim. Acredito em Deus mesmo que não exista o céu. Não vale a pena tentar explicar. Não encontro explicação em palavras ou teorias, tal como, por mais que uma pessoa me tente explicar o que é uma árvore, também não encontro uma explicação inteira.
Uma árvore tem raiz, tronco, ramos, folhas... A botânica é uma ciência. A gente pode ver a árvore, apalpá-la...
Aprendi isso, apesar de só ter três anos e três meses de escola. Mas dentro de mim uma árvore é qualquer coisa mais forte, mais grandiosa, que a botânica não consegue definir. Da mesma forma acredito em Deus plenamente, ainda que tudo se acabe cá na terra. Acredito em Deus mesmo que a minha alma não vá para o Céu nem para o Inferno nem para o Paraíso. Sou uma pessoa inculta, não tenho vergonha de o dizer, mas esta é a minha forma de estar na vida. É a minha filosofia.

Gosta de se comparar às árvores. Num fado seu diz que o pinheiro é seu irmão até no jeito de erguer os braços em vão... Tem de si um sentido de grandeza?
Não é uma grandeza tola, é antes uma força, um sentimento de libertação. O pinheiro é uma árvore alta, livre no espaço se a não mutilarem. Também gostava de ser mais alta...

Tem complexos quanto à sua altura e beleza? É um estado de morbidez, puro masoquismo para ser mais dramática?
Não dramatizo as coisas por via disso. São gostos femininos que julgo normais. Mas pronto, não sou mais alta nem bonita, tenho de me aceitar como sou.

Quando fala de beleza tem como padrão a beleza helénica?
As palavras que você me diz... Helénica é dos gregos, não é? Bom, eu aceito que não haja padrões rígidos de beleza. E, pensando melhor, quando vejo fotografias minhas dos tempos em que era jovem, posso concluir que estive quase para ser bonita e estive quase para ser muito feia. Fiquei no meio-termo...

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