Mariza: "Nunca me senti uma fadista"
Entrevistas - Novembro 05, 2021
Em Os anéis do meu cabelo - A história de Mariza a cantora conta detalhes da sua infância passada na Mouraria mas com uma educação moçambicana. E como se tornou naquilo que conhecemos.
Mariza dos Reis Nunes conta em conversa com o DN que foi resistente à ideia da publicação deste livro. Mas olha para ele como uma espécie de tributo a quem a segue há 20 anos, os anos de carreira que comemora. O título - Os Anéis do Meu Cabelo - é de um poema de António Botto que Mariza adora e costuma cantar, mas também recorda a história de quando aos 12 anos cortou o cabelo à rapaz à revelia da mãe. Anos mais tarde voltou a fazer o mesmo com a imagem que todos lhe reconhecem. Nascida em Moçambique e criada na Mouraria, não se vê como fadista, apesar de cantar o fado pelos quatro cantos do mundo como uma das intérpretes portuguesas mais reconhecidas da atualidade.
Porquê lançar este livro nesta altura?
A ideia não partiu de mim porque sempre achei que não me queria expor tanto. Há certas partes da nossa vida que nós, pessoas que estão mais expostas, não temos vontade de que as pessoas saibam. Muitas vezes ficava a pensar se valeria a pena expor-me tanto. Mas, de alguma forma, e passados 20 anos de carreira, a ideia é que o livro seja uma forma de agradecimento a quem me acompanha neste percurso e de conhecerem melhor a minha vida. O livro era para ter saído em 2020, mas foi adiado por causa da pandemia, o que deu mais tempo para o fazer de forma mais suave. Mas ao mesmo tempo foi trazendo uma certa ansiedade sobre o que vinha aí. A ideia do livro foi assinalar os 20 anos de carreira e mostrar que atrás da cantora existe um ser humano que teve uma vida completamente normal, como toda a gente, até chegar onde chegou. Há partes em que penso que se calhar me expus de mais, na parte dos meus pais por exemplo, mas no final quando li o livro acabou por fazer sentido.
Foi um processo fácil voltar a essas memórias?
Não foi fácil, o processo em si. Coitada da Dina Soares [a jornalista que escreveu o livro], que em alguns dias me apanhou mais renitente em contar as histórias. Mas são memórias boas e que tenho todos os dias. O que está no livro mostra que fui feliz na minha infância, apesar de ser uma infância pobre num bairro com problemas, e isso é assumido, mas com brincadeiras felizes e amigos felizes, por isso fazer o livro não foi um processo desgastante, pelo contrário, foi prazeroso. E foi bom porque às vezes queixo-me de certas coisas no dia-a-dia e ao reler ao livro percebi que certas queixas não fazem sentido. Tenho de dizer que tenho uma mãe que está sempre a puxar-me à terra, mas às vezes com a vida de todos os dias esquecemo-nos disso.
Revela inúmeros episódios menos conhecidos e outros mais. Conta como optou por cortar o cabelo e pintá-lo de louro...
Sempre quis ter o cabelo curto, naturalmente tenho o cabelo ruivo por causa do meu pai. Em casa via-o com o seu cabelo curto a pentear-se e zás, a sair de casa. E eu com cabelos longos, a demorar imenso tempo a pentear e a apanhar, nunca gostei disso apesar de a minha mãe insistir que as meninas tinham de ter o cabelo comprido. Na altura, dois amigos, um estilista e outro cabeleireiro, estavam sempre a dizer para o cortar e pintar de louro. Quando o fiz, gostei imenso. Na altura já cantava no Senhor Vinho e quando a Maria da Fé me viu de cabelo cortado virou-se para mim e disse: "O que foste fazer? As fadistas não usam cabelo curto!" Perguntei-lhe se cantava com a voz ou com o cabelo [risos], sempre fui um pouco pespineta.
E veio, de certa forma, revolucionar a imagem tradicional de fadista...
Tenho de ser sincera, sempre o disse e vou continuar a dizer a vida toda, não me considero uma fadista. Sou uma intérprete que gosta e cresceu no meio do fado. É uma linguagem que entendo muito bem e na qual me consigo expressar melhor do que em outros géneros, sobretudo porque é a linguagem do coração. Mas nunca olhei para mim como uma fadista, talvez se o tivesse feito nunca tivesse a minha personalidade tão vincada: a forma de cantar sem medo, o cabelo, as vestes, o usar a percussão no primeiro disco, o piano, etc.; e ter a ousadia de começar logo pelo mercado anglo-saxónico. Na altura, como nunca acreditei que fosse possível atingir grandes feitos como cantora portuguesa... foi uma espécie de aventura. Ainda no outro dia falei com o Luís Guerreiro, que voltou agora a tocar comigo e que aparece no livro, que me recordou que na altura éramos três "gatos pingados" a achar que íamos conquistar o mundo. O que de certa forma foi conseguido.
Como é hoje voltar à Mouraria, vai lá com frequência?
Sim, às vezes vou e falo com algumas pessoas, mas muitas das da minha infância já lá não estão. Algumas gostaria que tivessem feito parte deste livro, como o senhor Baguinho, o meu sapateiro, que escreveu fados e era uma figura muito ativa da Mouraria; ou os meus amigos, o Nuno, a Cristina o Joaquim, a Zé, que já não moram lá, mas que ainda hoje falamos. Ou a avó Beatriz - que aparece no livro -, onde eu ia lanchar. E há muita gente que já partiu e de que tenho imensas saudades. Continuo a ir à Mouraria mas hoje já não é prazeroso. Está muito mudada, diferente, os meus pais já não moram lá, e hoje já não tem aquele encanto. Também porque crescemos e começamos a ver e a perceber outras coisas. Mas tenho uma vontade imensa de fazer um vídeo por lá ou fazer um pequeno concerto no Clube Desportivo da Mouraria.
E Moçambique, onde nasceu, que influência continua a ter na sua vida?
Tem muita. É a educação dentro de casa. Uma educação para cuidar, para ser dona de casa. Faço tudo em casa se tiver de fazer, cozinhar, limpar etc. Vou a Moçambique de dois em dois anos, ainda tenho lá a minha avó e a minha mãe tem 16 irmãos, por isso é família em barda [risos]. E quando lá vou não é a Mariza cantora, é a Mariza neta, a sobrinha, a que coloca e retira a mesa e que cozinha. É onde está a família com quem eu falo todas as semanas, da qual sei tudo. Lembro-me de que no final do primeiro concerto que a minha avó viu, ela não sabia o que dizer, foi um processo digerido lentamente. E em Portugal, em casa, é igual como em Moçambique. Preparo a roupa do meu filho, cozinho, vou às compras, limpo se for preciso. Mas quando saio de casa, apesar de ser igual, tenho de digerir o lado que as pessoas veem todos os dias e que querem estar próximas e tirar uma selfie, e cumprimentar...
Continua a ficar nervosa antes de entrar em palco. E depois? Transforma-se?
Os meus amigos dizem que sim. Eu não sei, sou sincera. Os nervos são muitos, fico gelada, tenho vontade de vomitar e até ao terceiro ou quarto tema estou a tremer que nem varas verdes a tentar perceber tudo o que está à minha volta. Mas depois chego a uma fase e sinto que sou eu e solto a rédea e sei o que estou a fazer. Mas não sei como acontece. Tenho um amigo que me diz que eu devia estar na primeira fila de um concerto meu para ver como me transformo. Acho que tem que ver com a minha vontade que as pessoas entendam a mensagem que estou a passar, e por isso entrego-me tanto. E cada vez dou mais. Não há concertos perfeitos, mas quero que seja um momento que as pessoas levem para casa. Depois de uma pandemia e com tudo o que aí vem economicamente sei que é difícil ter disponibilidade para gastar dinheiro a ir a um concerto e ver um artista. Por isso, quando subo ao palco tenho essa noção de que há pessoas que fizeram um esforço para me ir ver e quero que seja uma experiência única que guardem da memória.
Como foi estar fora dos palcos no período da pandemia e dos confinamentos?
Foi complicado. Tive um princípio de depressão. Até que a minha mãe me deu um abanão e disse-me que em casa há muito amor - vivo com os meus pais e o meu filho. Fiquei uma semana a pensar se me acontecesse alguma coisa o que fariam aquelas três pessoas que vivem comigo, mas também percebi que no meio disto tudo eu não estava assim tão mal. Claro que economicamente foi um grande abalo, mas temo-nos uns aos outros, e estamos de alguma forma protegidos, por isso foi viver um dia de cada vez. O que me abalou muito foi ter perdido o controlo da minha vida, e na altura não sabíamos para onde estávamos a ir, e a minha cabeça entrou em tilt sem perceber como íamos sobreviver a tudo. Foi um momento difícil. Dei muito poucos concertos, e cada vez que ia para palco não me apetecia sair, era como se ali sim pudesse voltar a respirar. E não sou nada de concertos online, não gosto, fiz um para os EUA e para a Coreia, mas não tem nada que ver comigo, gosto de sentir, de olhar o público, das palmas, da energia.
E agora já tem datas marcadas para Lisboa e Porto...
Vêm aí dois concertos em Portugal, a 4 e 5 de dezembro, em Lisboa e no Porto. Estamos a prepará-los e passarão pelo disco Mariza Canta Amália (2020), um tributo à maior voz de sempre de Portugal. O concerto vai começar suave... mas não posso revelar muito mais. E já no dia 12 de novembro começo uma tournée em Espanha e na Alemanha.
É inevitável falarmos de Amália. Considera-se herdeira de Amália?
Acho que somos todos herdeiros de Amália. Deixou-nos um legado e músicas intemporais que vão continuar a ser cantadas. De alguma forma sinto que, apesar de sermos pessoas completamente diferentes, vivendo em épocas diferentes, tivemos infâncias completamente diferentes, e de alguma forma, na bagagem, Amália está sempre presente nos temas que canto, nos palcos que ela também pisou, quando conheço alguém com mais idade que a viu ao vivo.
E porquê só agora o disco?
Porque desde o meu primeiro disco existiu comparações. E entendo. Amália é o símbolo máximo para as pessoas e fizeram-no por carinho, tentando colocar-me no mesmo patamar. Mas durante muitos anos fez-me muita confusão. Não existem segundos Frank Sinatra ou segundas Edith Piaf. Cada um com a sua estrela. Porque também achei que não era justo para Amália, que nos deixou tanto. E eu ainda tenho tanto para dar. Nunca me encontrei com Amália, mas canto os temas de Amália à minha maneira e aquela voz faz parte da minha vida. Não a ouvia na minha infância, o meu pai só ouvia fadistas masculinos, mas quando descobri Amália foi como conhecer um mundo novo.
Acha que abriu portas a uma nova geração de fadistas em Portugal?
Acho! Apesar de não me darem esse crédito, acho que abri a porta para se vestirem de forma diferente, para fazerem temas com novas aproximações. Acho, sim, não vou mentir.
Tem algum sonho, na música, que gostaria de realizar?
Sim, tenho muitos [risos]. Um dos sonhos que esteve quase a realizar-se era ter cantado com o David Bowie. Outro foi com o Paco de Lucia, que também não aconteceu... Mas há tantas coisas que ambiciono fazer, colaborações com artistas mais pop, mas é difícil para um artista português chegar lá. E gostaria muito de cantar a banda sonora de um filme, seria um desafio superinteressante. Nos últimos 20 anos temos feito coisas maravilhosas com pessoas fantásticas. Acho que agora vem uma fase nova. Isto da pandemia para além de ter mudando mentalidades foi como passar por uma terceira guerra mundial. As cabeças mudaram, o mundo mudou, acho que ainda estou a tentar entender-me e perceber o que aconteceu na música e o que vem aí na música.
Porquê lançar este livro nesta altura?
A ideia não partiu de mim porque sempre achei que não me queria expor tanto. Há certas partes da nossa vida que nós, pessoas que estão mais expostas, não temos vontade de que as pessoas saibam. Muitas vezes ficava a pensar se valeria a pena expor-me tanto. Mas, de alguma forma, e passados 20 anos de carreira, a ideia é que o livro seja uma forma de agradecimento a quem me acompanha neste percurso e de conhecerem melhor a minha vida. O livro era para ter saído em 2020, mas foi adiado por causa da pandemia, o que deu mais tempo para o fazer de forma mais suave. Mas ao mesmo tempo foi trazendo uma certa ansiedade sobre o que vinha aí. A ideia do livro foi assinalar os 20 anos de carreira e mostrar que atrás da cantora existe um ser humano que teve uma vida completamente normal, como toda a gente, até chegar onde chegou. Há partes em que penso que se calhar me expus de mais, na parte dos meus pais por exemplo, mas no final quando li o livro acabou por fazer sentido.
Foi um processo fácil voltar a essas memórias?
Não foi fácil, o processo em si. Coitada da Dina Soares [a jornalista que escreveu o livro], que em alguns dias me apanhou mais renitente em contar as histórias. Mas são memórias boas e que tenho todos os dias. O que está no livro mostra que fui feliz na minha infância, apesar de ser uma infância pobre num bairro com problemas, e isso é assumido, mas com brincadeiras felizes e amigos felizes, por isso fazer o livro não foi um processo desgastante, pelo contrário, foi prazeroso. E foi bom porque às vezes queixo-me de certas coisas no dia-a-dia e ao reler ao livro percebi que certas queixas não fazem sentido. Tenho de dizer que tenho uma mãe que está sempre a puxar-me à terra, mas às vezes com a vida de todos os dias esquecemo-nos disso.
Revela inúmeros episódios menos conhecidos e outros mais. Conta como optou por cortar o cabelo e pintá-lo de louro...
Sempre quis ter o cabelo curto, naturalmente tenho o cabelo ruivo por causa do meu pai. Em casa via-o com o seu cabelo curto a pentear-se e zás, a sair de casa. E eu com cabelos longos, a demorar imenso tempo a pentear e a apanhar, nunca gostei disso apesar de a minha mãe insistir que as meninas tinham de ter o cabelo comprido. Na altura, dois amigos, um estilista e outro cabeleireiro, estavam sempre a dizer para o cortar e pintar de louro. Quando o fiz, gostei imenso. Na altura já cantava no Senhor Vinho e quando a Maria da Fé me viu de cabelo cortado virou-se para mim e disse: "O que foste fazer? As fadistas não usam cabelo curto!" Perguntei-lhe se cantava com a voz ou com o cabelo [risos], sempre fui um pouco pespineta.
E veio, de certa forma, revolucionar a imagem tradicional de fadista...
Tenho de ser sincera, sempre o disse e vou continuar a dizer a vida toda, não me considero uma fadista. Sou uma intérprete que gosta e cresceu no meio do fado. É uma linguagem que entendo muito bem e na qual me consigo expressar melhor do que em outros géneros, sobretudo porque é a linguagem do coração. Mas nunca olhei para mim como uma fadista, talvez se o tivesse feito nunca tivesse a minha personalidade tão vincada: a forma de cantar sem medo, o cabelo, as vestes, o usar a percussão no primeiro disco, o piano, etc.; e ter a ousadia de começar logo pelo mercado anglo-saxónico. Na altura, como nunca acreditei que fosse possível atingir grandes feitos como cantora portuguesa... foi uma espécie de aventura. Ainda no outro dia falei com o Luís Guerreiro, que voltou agora a tocar comigo e que aparece no livro, que me recordou que na altura éramos três "gatos pingados" a achar que íamos conquistar o mundo. O que de certa forma foi conseguido.
Como é hoje voltar à Mouraria, vai lá com frequência?
Sim, às vezes vou e falo com algumas pessoas, mas muitas das da minha infância já lá não estão. Algumas gostaria que tivessem feito parte deste livro, como o senhor Baguinho, o meu sapateiro, que escreveu fados e era uma figura muito ativa da Mouraria; ou os meus amigos, o Nuno, a Cristina o Joaquim, a Zé, que já não moram lá, mas que ainda hoje falamos. Ou a avó Beatriz - que aparece no livro -, onde eu ia lanchar. E há muita gente que já partiu e de que tenho imensas saudades. Continuo a ir à Mouraria mas hoje já não é prazeroso. Está muito mudada, diferente, os meus pais já não moram lá, e hoje já não tem aquele encanto. Também porque crescemos e começamos a ver e a perceber outras coisas. Mas tenho uma vontade imensa de fazer um vídeo por lá ou fazer um pequeno concerto no Clube Desportivo da Mouraria.
E Moçambique, onde nasceu, que influência continua a ter na sua vida?
Tem muita. É a educação dentro de casa. Uma educação para cuidar, para ser dona de casa. Faço tudo em casa se tiver de fazer, cozinhar, limpar etc. Vou a Moçambique de dois em dois anos, ainda tenho lá a minha avó e a minha mãe tem 16 irmãos, por isso é família em barda [risos]. E quando lá vou não é a Mariza cantora, é a Mariza neta, a sobrinha, a que coloca e retira a mesa e que cozinha. É onde está a família com quem eu falo todas as semanas, da qual sei tudo. Lembro-me de que no final do primeiro concerto que a minha avó viu, ela não sabia o que dizer, foi um processo digerido lentamente. E em Portugal, em casa, é igual como em Moçambique. Preparo a roupa do meu filho, cozinho, vou às compras, limpo se for preciso. Mas quando saio de casa, apesar de ser igual, tenho de digerir o lado que as pessoas veem todos os dias e que querem estar próximas e tirar uma selfie, e cumprimentar...
Continua a ficar nervosa antes de entrar em palco. E depois? Transforma-se?
Os meus amigos dizem que sim. Eu não sei, sou sincera. Os nervos são muitos, fico gelada, tenho vontade de vomitar e até ao terceiro ou quarto tema estou a tremer que nem varas verdes a tentar perceber tudo o que está à minha volta. Mas depois chego a uma fase e sinto que sou eu e solto a rédea e sei o que estou a fazer. Mas não sei como acontece. Tenho um amigo que me diz que eu devia estar na primeira fila de um concerto meu para ver como me transformo. Acho que tem que ver com a minha vontade que as pessoas entendam a mensagem que estou a passar, e por isso entrego-me tanto. E cada vez dou mais. Não há concertos perfeitos, mas quero que seja um momento que as pessoas levem para casa. Depois de uma pandemia e com tudo o que aí vem economicamente sei que é difícil ter disponibilidade para gastar dinheiro a ir a um concerto e ver um artista. Por isso, quando subo ao palco tenho essa noção de que há pessoas que fizeram um esforço para me ir ver e quero que seja uma experiência única que guardem da memória.
Como foi estar fora dos palcos no período da pandemia e dos confinamentos?
Foi complicado. Tive um princípio de depressão. Até que a minha mãe me deu um abanão e disse-me que em casa há muito amor - vivo com os meus pais e o meu filho. Fiquei uma semana a pensar se me acontecesse alguma coisa o que fariam aquelas três pessoas que vivem comigo, mas também percebi que no meio disto tudo eu não estava assim tão mal. Claro que economicamente foi um grande abalo, mas temo-nos uns aos outros, e estamos de alguma forma protegidos, por isso foi viver um dia de cada vez. O que me abalou muito foi ter perdido o controlo da minha vida, e na altura não sabíamos para onde estávamos a ir, e a minha cabeça entrou em tilt sem perceber como íamos sobreviver a tudo. Foi um momento difícil. Dei muito poucos concertos, e cada vez que ia para palco não me apetecia sair, era como se ali sim pudesse voltar a respirar. E não sou nada de concertos online, não gosto, fiz um para os EUA e para a Coreia, mas não tem nada que ver comigo, gosto de sentir, de olhar o público, das palmas, da energia.
E agora já tem datas marcadas para Lisboa e Porto...
Vêm aí dois concertos em Portugal, a 4 e 5 de dezembro, em Lisboa e no Porto. Estamos a prepará-los e passarão pelo disco Mariza Canta Amália (2020), um tributo à maior voz de sempre de Portugal. O concerto vai começar suave... mas não posso revelar muito mais. E já no dia 12 de novembro começo uma tournée em Espanha e na Alemanha.
É inevitável falarmos de Amália. Considera-se herdeira de Amália?
Acho que somos todos herdeiros de Amália. Deixou-nos um legado e músicas intemporais que vão continuar a ser cantadas. De alguma forma sinto que, apesar de sermos pessoas completamente diferentes, vivendo em épocas diferentes, tivemos infâncias completamente diferentes, e de alguma forma, na bagagem, Amália está sempre presente nos temas que canto, nos palcos que ela também pisou, quando conheço alguém com mais idade que a viu ao vivo.
E porquê só agora o disco?
Porque desde o meu primeiro disco existiu comparações. E entendo. Amália é o símbolo máximo para as pessoas e fizeram-no por carinho, tentando colocar-me no mesmo patamar. Mas durante muitos anos fez-me muita confusão. Não existem segundos Frank Sinatra ou segundas Edith Piaf. Cada um com a sua estrela. Porque também achei que não era justo para Amália, que nos deixou tanto. E eu ainda tenho tanto para dar. Nunca me encontrei com Amália, mas canto os temas de Amália à minha maneira e aquela voz faz parte da minha vida. Não a ouvia na minha infância, o meu pai só ouvia fadistas masculinos, mas quando descobri Amália foi como conhecer um mundo novo.
Acha que abriu portas a uma nova geração de fadistas em Portugal?
Acho! Apesar de não me darem esse crédito, acho que abri a porta para se vestirem de forma diferente, para fazerem temas com novas aproximações. Acho, sim, não vou mentir.
Tem algum sonho, na música, que gostaria de realizar?
Sim, tenho muitos [risos]. Um dos sonhos que esteve quase a realizar-se era ter cantado com o David Bowie. Outro foi com o Paco de Lucia, que também não aconteceu... Mas há tantas coisas que ambiciono fazer, colaborações com artistas mais pop, mas é difícil para um artista português chegar lá. E gostaria muito de cantar a banda sonora de um filme, seria um desafio superinteressante. Nos últimos 20 anos temos feito coisas maravilhosas com pessoas fantásticas. Acho que agora vem uma fase nova. Isto da pandemia para além de ter mudando mentalidades foi como passar por uma terceira guerra mundial. As cabeças mudaram, o mundo mudou, acho que ainda estou a tentar entender-me e perceber o que aconteceu na música e o que vem aí na música.
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Comentários
#1
frank2019
2021-12-16 17:35
Para se sentir é preciso sê-lo e na verdade Mariza nunca foste fadista em coisa nenhuma… o hábito não faz o monge!
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