Tudo menos vazias, foram as horas com Camané no Teatro da Trindade
Concertos - Fevereiro 16, 2022
Na primeira apresentação ao vivo de “Horas Vazias”, o álbum lançado no final do ano passado, Camané voltou à casa onde deu o seu primeiro grande concerto. E o Teatro da Trindade, em Lisboa, emocionou-se com o seu fado crescente
Teatro da Trindade - Lisboa - 15.02.2022
A escolha do Teatro da Trindade, em Lisboa, para receber a primeira apresentação ao vivo de “Horas Vazias”, o álbum lançado por Camané no final do ano passado, tem um forte peso simbólico. Segundo o próprio, foi a sala do Chiado a acolher o seu primeiro concerto em nome próprio; depois de se estrear no mundo da canção ainda em criança, impressionando os conhecedores ao cantar em casas de fado, foi no Teatro da Trindade, em meados dos anos 90, que Camané atingiu uma certa maioridade de palco. Quase 30 anos volvidos, e com uma carreira irrepreensível no palmarés, o fadista, agora com 55 anos, quis voltar ao conforto e ao intimismo daquele espaço para mostrar as 16 canções de “Horas Vazias”. Pela mesma ordem em que se encontram no disco, e sobretudo com a mesma emoção e o mesmo rigor que um dos maiores intérpretes do nosso tempo sempre aplica às suas atuações, Camané fez desfilar os temas que Sérgio Godinho, Jorge Palma, Carminho ou Amélia Muge escreveram para si. Com a proximidade do palco a facilitar a familiaridade com o público, a noite decorreu de forma serena, ainda que vagamente maculada pela rouquidão do anfitrião. “Estas coisas podem acontecer, e aconteceu: enrouqueci”, confessou no final. “Gosto de ser honesto e dizer as coisas.” Não haverá melhor autorretrato para um artista que, a cada verso e a cada respiração, parece procurar a verdade.
O serão começou de forma tipicamente humilde, com a apresentação, por parte de Camané, dos músicos de excelência que o acompanham – José Manuel Neto na guitarra portuguesa, Carlos Manuel Proença na viola e Paulo Paz no contrabaixo – e um sentido agradecimento a todos os autores e demais cúmplices de “Horas Vazias”, com destaque para o produtor do disco, Pedro Moreira, músico ligado ao jazz. Ainda que aprecie outros géneros de música, e já tenha dado o corpo ao manifesto da pop, no supergrupo Humanos, Camané vive para o fado, não se cansando de repetir que deseja vivê-lo por dentro, vendo-o amadurecer do lado de cá das fronteiras da palavra e do som. Convicto desta missão, o fadista foi bebendo, esta noite, da sobriedade e da elegância, mas também da alegria e do balanço que os três músicos a quem confia a voz lhe serviram.
Em “Horas Vazias”, Camané canta sobre amor e desamor, as âncoras que norteiam, afinal a vida. Por vezes os frutos são luminosos, como em ‘Que Flor Se Abre no Peito’, original de Pedro Abrunhosa, ou ‘Amar Não Custa (Fado da Bica)’ (Sebastião Cerqueira/Jaime Santos), que abrem a noite; noutras ocasiões, as tonalidades mais sombrias enchem o palco, como no ciúme pintado por Jorge Palma em ‘Noite Transfigurada’ ou no clássico ‘Aves Agoirentas’ (David Mourão Ferreira/Alain Oulman), que Amália Rodrigues esculpiu no seu álbum de 1962, “Busto”.
Por provável coincidência, há inspirações que se cruzam nesta estrada: tal como o amigo Jorge Palma, Sérgio Godinho ofereceu a Camané uma canção sobre o ciúme (a mui jovial ‘Os Fados que em Tempos te Cantei’), iluminando de forma mais leve esse sentimento habitualmente mal visto; em ‘Foste Embora’, Vitorino conta uma história de partida súbita, mas de forma agridoce, num quente-frio que se estende, com humor, à própria letra (“O meu mundo escureceu/O teto desabou, perdi a voz/O meu piano geme e chora/Pungentes notas menores”).
Ao sentar-se, Camané pareceu controlar melhor a ligeira rouquidão que o inquietava, e foi nesse registo que lhe ouvimos algumas das melhores interpretações da noite: ‘Nova Vénus’, com letra de Júlio Dinis, música de Carminho e o palco mergulhado num veludo azul que faz jus à inspiração noturna do poema; ‘Tenho Dois Corações’, com música do malogrado ‘padrinho’ de Camané, José Mário Branco, e letra de Amália Rodrigues, resumindo em duas penadas a tragicomédia que é ser português (“Eu tenho dois corações/Ambos eles irreais/Eu tenho dois corações/Qual dos dois sofrerá mais?”), e sobretudo ‘Se a Solidão Fosse’, um dos momentos maiores de “Horas Vazias”, saído da pena de Amélia Muge. Imenso poema, ‘Se a Solidão Fosse’ é como o sentimento que lhe dá nome e praticamente sufoca quem escuta cada palavra (e cada nota de contrabaixo), entre o deslumbramento e o pavor de se rever em tão frio cenário. Em resumo, é todo um tratado sobre ser-se humano, tornado manifesto na voz sobre-humana de Camané e justamente brindado com a maior ovação da noite.
Antes da despedida, com a comovente ‘Havemos de Nos Ver Outra Vez’ (Teresa Muge), subiu ao palco o único convidado do concerto: Ricardo Toscano, que na penumbra do teatro fez dançar o seu saxofone com a voz, austera e solitária, de Camané. “É um fado dos anos 20 ou 30, que cantava o Alfredo Marceneiro”, apresentou o fadista, brincando com a ideia de Ricardo Toscano poder ser “um miúdo” que encontrara a tocar “numa esquina em Nova Iorque”. Dada a intensa magia que se desprendeu desta junção de universos, em ‘Às Vezes Há um Silêncio (Fado Rosa)’, não restam dúvidas de que esta é música que pertence a qualquer parte do mundo e a qualquer tempo. Na lírica do contemporâneo Sebastião Belfort Cerqueira (nascido em Lisboa em 1987) cabem as angústias e os ensejos de qualquer geração – e, apesar do negrume em que Camané e Ricardo Toscano ‘bailaram’, o final traz luz à dor: “Voltaram as andorinhas/Lembrei das flores, das razões/E hoje as estações são minhas/Como as minhas canções.”
Num brevíssimo encore, Camané regressou a ‘Fado da Bica’, talvez para sublinhar a sentença: “Não custa nada o amar/E o amar não custa nada.” É a mensagem de alento possível para todos os que, maravilhados com o que haviam acabado de ouvir, reagiram com tristeza ao final do espetáculo e ficaram a suspirar por mais. Camané voltará a cantar, e a amar fazê-lo. Como sempre, como dantes.
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