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Camané: "Põem uma guitarra portuguesa e dizem que é fado, não é. É mais que isso"

Entrevistas - Outubro 11, 2022
O reconhecido fadista prepara-se para dar um concerto no CCB dia 14 de outubro, o seu primeiro grande espetáculo desde a performance intimista que fez no início do ano no Teatro da Trindade para apresentar o disco 'Horas Vazias' (2021).

Naturalmente tímido, o músico confessou-nos que os nervos ainda o assaltam antes de cada espetáculo, mas que ao fim de décadas de carreira aprendeu a gerir melhor a ansiedade.

Camané defende o fado na sua essência e o respeito pelos seus traços característicos. Ainda assim, acredita que é possível inovar.

O fadista vive uma fase feliz a nível pessoal, igualmente. Foi pai pela segunda vez há dois meses, conforme nos confidenciou, tendo já dois filhos. O mais velho, agora com três anos, já começou a ter aulas de música.

Vai dar um concerto no Centro Cultural de Belém. Esta sala tem um significado especial para o Camané?
Tem. Tive momentos muito bons lá, gosto muito de lá estar.

Ao fim de tantos anos de carreira ainda se fica nervoso por subir ao palco?
Super [risos]. Uma das coisas que não consigo ultrapassar é essa, principalmente nos dias antes e quando tenho um repertório diferente para fazer. Há uma série de espetáculos diferentes que vou fazendo em que tenho de estar muito concentrado e tenho medo de falhar. É uma insegurança.

Tem algum ritual antes de entrar em palco?
Não pratico nenhum ritual, mas fico nervoso, muito concentrado, não falo muito, procuro não me desconcentrar. Mas depois quando entro no palco tento esquecer-me de mim, não estar tão preocupado com o meu eu, e entrar por dentro do texto, das palavras, das histórias que vou contar e dos fados que vou cantar. É uma pequena humildade que me ajuda a ultrapassar esse medo. Foi um caminho que fui fazendo e que demorou alguns anos até conseguir estar logo no primeiro ou no segundo tema solto. 

Disse uma vez que o fado aprende-se a gostar. Como se aprende a gostar de fado?
Como se aprende a gostar de qualquer música com características diferentes. Lembro-me que as primeiras vezes que ouvi fado não gostei nada. Quando tinha 6 ou 7 anos, estive doente e fiquei em casa um mês. Tinha discos com singles do Charles Aznavour, do Frank Sinatra, dos Beatles e fui ouvindo compulsivamente. Depois tive de passar para outras músicas e fui ouvindo a coleção de fado do meu pai e comecei a gostar imenso, cada vez mais, a perceber a característica do canto, tempo e música. Aos 10 anos já sabia os fados tradicionais quase todos.

Não é preciso uma certa maturidade para se gostar e perceber fado?
Há coisas que nem sequer percebemos e gostamos. Lembro-me que quando ouvia o Aznavour ou o Sinatra não percebia nada do que estavam a dizer a gostava imenso. A arte ultrapassa as barreiras. Começamos a perceber e a descobrir mais coisas.

É por isso que fado é tão popular lá fora.
Sim, da mesma forma que ouvimos coisas aqui que não percebemos e das quais gostamos. Ficamos emocionados, são coisas que não se explicam.

Teve de ultrapassar muitos preconceitos para se tornar fadista?
Sim. Faço este ano 56 anos e lembro-me perfeitamente a dificuldade que foi. Quando tinha 18 ou 19 anos nem dizia que era fadista. Ia para Lisboa para as casas de fado e os meus amigos gozavam comigo. O fado não estava na moda e havia um preconceito enorme que se foi desfazendo com o tempo. No final dos anos 1990, as coisas começaram a ser recuperadas e as pessoas perceberam que o fado era fantástico.

E nessa altura imaginava que iria conseguir a carreira que tem hoje?

Pensava que era um dia de cada vez, que era o que gostava de fazer e o que acreditava ser possível, mas não pensava muito na projeção. Chegava a ser mais negativo do que positivo e pensava que só ia cantar nas casas de fado, mas era aquilo que gostava de fazer. Acredito que a forma como estou no fado adquiri com o tempo, a vida e com as pessoas com quem me relacionei na música.

Até onde se pode inovar no fado?
Não existe limite, existe de dentro para fora. Não é por ter lá uma guitarra portuguesa que é fado. Há pessoas que põem uma guitarra portuguesa e mais umas coisas e dizem que aquilo é fado, não é. O fado é mais do que isso. Mas existe muita gente a fazer bem. Inovar é manter essa característica. É conseguir transportar músicas que até nem são fado para este ritmo, este ambiente, esta forma de cantar. É quando a pessoa escuta e percebe que é fado, é quando sentimos a essência.

O fado fica bem entregue às novas gerações?
Acho que sim. É importante os jovens ouvirem os fados tradicionais, perceberem o que os outros fadistas faziam com as letras. É irem procurar linguagens novas e coisas mais atuais. Isso é essencial. Depois as músicas, a expressão, a melodia. É deixar que o fado entre dentre deles. A minha escola foram as casas de fado, mas existe o Museu do Fado que tem muita coisa para se ouvir e se aprender. É preciso ouvir o que foi feito para se evoluir. É importante que as pessoas que ouçam e reconheçam que é fado.

Mas não haverá a tentação de inovar para tornar mais comercial e assim aumentar as vendas?
Cada um faz o que entende. Isso não sou eu. Não vou mudar a minha música porque vai vender mais ou menos.

Que conselho daria aos fadistas da nova geração?
As pessoas devem procurar a sua verdade. O fado é fantástico como é e é uma música para se ouvir. É algo para se ir construindo, não é uma coisa de sucesso fácil. Para mim o fado é para a vida.

Demora muito tempo a criar um disco?
Demora imenso tempo [risos]. Não sou nada daquela coisa em que tenho de fazer um disco por ano. Por acaso fiz um disco com o Mário Laginha ['Aqui Está-se Sossegado' (2019)] dois anos antes e correu muito bem, gravámos muitos fados tradicionais. Depois com o meu trio de sempre - o José Manuel Neto, Carlos Manuel Proença e o Carlos Bica - fiz o meu disco ‘Horas Vazias’ (2021).

Tive dois anos para pensar no repertório, numa série de temas que queria gravar, descobri pessoas novas para trabalhar connosco, como foi o caso do Pedro Moreira. Tivemos convidados. Aconteceu tudo de forma muito natural.

“O que é que o José Mário Branco faria?” é um dos seus lemas de vida?
O José Mário não tinha pressa. Quando se apaixonou pelo fado havia um certo preconceito e foi uma das primeiras pessoas a ultrapassá-lo. Assim como o Sérgio Godinho. Ele tinha uma forma de olhar o fado como eu tinha: é preciso manter a essência e depois a evolução vem de dentro para fora. Tinha um bom gosto nos arranjos, nos silêncios, na forma como a música estava sintonizada com o ambiente das palavras e a parte emocional da história. Não é nenhuma exibição, não temos de nos exibir. Foi um trabalho arriscado.

Era fácil trabalhar com ele ou ainda tiveram alguns arrufos?
Era fácil, bom, mas era duro. Aprendi imenso... aprendi tudo com eles [José Mário Branco e Manuela de Freitas].

Mas ainda hoje não gosta de se ouvir cantar, pois não?
Não [risos]. Acho sempre que podia ter feito melhor. O disco fica registado naquele dia, mas quando vamos para palco as coisas começam a ganhar outras ideias, não canto sempre da mesma forma. Não gosto de me ouvir porque acho sempre que podia melhorar.

O seu filho já é o seu maior fã?
Eles às vezes ouve, mas ouve outras músicas também. Ele já tem três anos, tenho outro com dois meses. Mas ele tem bom gosto.

Mas ouvir o pai deve ter aquele gostinho especial…
Sim. Acho que ele gosta…

Gostava que ele seguisse a sua carreira no futuro?
Gostava que ele seguisse o que gosta de fazer. Começou agora com aulas de música. Quero que isso lhe dê hipótese de escolher.

Qual é a marca que o Camané quer deixar no fado?
Que é fado. Aquilo que eu tive a sorte de receber dos outros e transportar para o futuro esse lado que me faz gostar de fado.

Porque é que as pessoas devem ir ao seu concerto?
Gostava de lhes apresentar este lado de retrospetivas de alguns temas que são importantes no meu percurso, depois alguns temas novos que gravei neste disco ‘Horas Vazias’. Vou ter uns músicos excelentes como o José Manuel Neto na guitarra portuguesa, o Carlos Manuel Proença na viola e o Paulo Pais no contrabaixo. Vou ter como convidado o Ricardo Toscano. Depois há outras temas que vai tocar o João Barradas que é um acordeonista fora de série.


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