A Severa - descoberta a verdade sobre o maior mito do fado
Entrevistas - Janeiro 06, 2023
Duzentos anos depois do nascimento de Maria Severa, um grupo de investigadores, com o Antropólogo Paulo Lima à cabeça, descontruiu a maior lenda da canção de Lisboa. Afinal de contas Maria Severa não era cigana, mas sim descendente de escravos negros, era prostituta de terceira categoria, explorada por um conde e produto acabado de uma paisagem de exclusão.
Filha de Gertrudes Severa, conhecida como ‘a Barbuda’, que se dedicou ao negócio das tabernas (teve três), à prostituição e ao fado, Maria Severa seguiu apenas estas duas últimas atividades da mãe. O poeta António Bolhão haveria de escrever, no entanto, que Severa, "não era uma mulher vulgar!". Sobre ela, não há imagens, pinturas, nem gravações da sua voz e quem com ela privou não está mais entre nós. Há agora, contudo, um conjunto de documentos que atestam oficialmente quem foi afinal Maria Severa.
O novo e mais exaustivo trabalho de investigação sobre ‘a primeira cantora de fado’ está exposto no livro ‘Severa 1820’. Nele, é traçado todo um mapa genealógico e também muitos dos passos que Severa deu durante os seus 26 anos de vida, desde o seu nascimento a 26 de julho de 1820 na Rua das Barracos, nos Anjos, até ao seu desaparecimento. Morreu pelas nove horas da noite do dia 30 de novembro, de 1846, na Rua do Capelão, conhecida como a Rua Suja, localizada na Freguesia da Mouraria e foi a enterrar no dia seguinte numa vala comum do Cemitério do Alto S.João.
"Levava mais de 14 anos de vida de meretriz… várias tinham sido as casas, ruas e tabernas, espalhadas pela cidade, onde tinha habitado e vendido o corpo, um corpo decerto com fortes marcas da sua comercialização, do vinho, do fumo, da violência, da agressão e da fome", lê-se no livro. "É a primeira fadista, em cujo corpo o amor, a saudade e a tragédia inscrevem o destino, criando a sua morte um mito urbano: a origem da canção de Lisboa".
Começou a cantar por volta dos 10 anos e a vender o corpo pelos 12 anos. Destacou-se pela personalidade e "pelos olhos de fogo" muitas vezes descritos, mas viveu uma vida de privações dificuldades e violência. Descobriu-se, por exemplo, que terá vivido na Rua da Oliveirinha porque uma documentação policial mostra que a mãe tentou matar o pai "com uma faca de sapateiro". Sabe-se, contudo, que Maria Severa marcou profundamente quem com ela se cruzou. "É engraçado que encontrámos um texto por volta de 1870 de alguém que tinha ouvido uma sessão de fados na Praça da Figueira em que a figura que é descrita é quase de certeza a da Severa", conta Paulo Lima.
A obra ‘Severa 1820’, que agora chega ao grande público, levou mais de três anos a fazer, e insere-se não só nas comemorações dos 200 anos do nascimento de Maria Severa, mas também nos 90 anos sobre o primeiro filme sonoro português, ‘Severa’ (de José Leitão de Barros, inspirado numa peça de Júlio Dantas) e nos 10 anos da elevação do fado a Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO.
O novo e mais exaustivo trabalho de investigação sobre ‘a primeira cantora de fado’ está exposto no livro ‘Severa 1820’. Nele, é traçado todo um mapa genealógico e também muitos dos passos que Severa deu durante os seus 26 anos de vida, desde o seu nascimento a 26 de julho de 1820 na Rua das Barracos, nos Anjos, até ao seu desaparecimento. Morreu pelas nove horas da noite do dia 30 de novembro, de 1846, na Rua do Capelão, conhecida como a Rua Suja, localizada na Freguesia da Mouraria e foi a enterrar no dia seguinte numa vala comum do Cemitério do Alto S.João.
"Levava mais de 14 anos de vida de meretriz… várias tinham sido as casas, ruas e tabernas, espalhadas pela cidade, onde tinha habitado e vendido o corpo, um corpo decerto com fortes marcas da sua comercialização, do vinho, do fumo, da violência, da agressão e da fome", lê-se no livro. "É a primeira fadista, em cujo corpo o amor, a saudade e a tragédia inscrevem o destino, criando a sua morte um mito urbano: a origem da canção de Lisboa".
Começou a cantar por volta dos 10 anos e a vender o corpo pelos 12 anos. Destacou-se pela personalidade e "pelos olhos de fogo" muitas vezes descritos, mas viveu uma vida de privações dificuldades e violência. Descobriu-se, por exemplo, que terá vivido na Rua da Oliveirinha porque uma documentação policial mostra que a mãe tentou matar o pai "com uma faca de sapateiro". Sabe-se, contudo, que Maria Severa marcou profundamente quem com ela se cruzou. "É engraçado que encontrámos um texto por volta de 1870 de alguém que tinha ouvido uma sessão de fados na Praça da Figueira em que a figura que é descrita é quase de certeza a da Severa", conta Paulo Lima.
A obra ‘Severa 1820’, que agora chega ao grande público, levou mais de três anos a fazer, e insere-se não só nas comemorações dos 200 anos do nascimento de Maria Severa, mas também nos 90 anos sobre o primeiro filme sonoro português, ‘Severa’ (de José Leitão de Barros, inspirado numa peça de Júlio Dantas) e nos 10 anos da elevação do fado a Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO.
Hoje, já se sabe um pouco mais sobre esta figura histórica , mas muitas são ainda as lendas em torno dela que deverão continuar a perdurar no tempo. Conta-se por exemplo, que na hora da sua morte, terá sido a própria Maria Severa a pedir que a lançassem para uma vala comum sem direito a qualquer memória funerária, mas que "um embuçado se apresentou no seu funeral e que se terá oferecido para comprar um coval ou erguer uma lápide sepulcral". De quem se trataria, ainda hoje está por explicar.
Que descobertas importantes do ponto de vista histórico acha que resultaram desta investigação sobre a Severa?
Paulo Lima - Há aqui várias coisas que são novidade. A primeira é que conseguimos, no fundo, identificar a figura e saber um pouco mais da história desta mulher que deixou de ser um conjunto de lendas urbanas. Conseguimos traçar a sua biografia, reconstituindo muito da sua vida. Um do aspetos que pode suscitar maior interesse é que afinal ela não era cigana, mas sim descendente de escravos africanos.
Que descobertas importantes do ponto de vista histórico acha que resultaram desta investigação sobre a Severa?
Paulo Lima - Há aqui várias coisas que são novidade. A primeira é que conseguimos, no fundo, identificar a figura e saber um pouco mais da história desta mulher que deixou de ser um conjunto de lendas urbanas. Conseguimos traçar a sua biografia, reconstituindo muito da sua vida. Um do aspetos que pode suscitar maior interesse é que afinal ela não era cigana, mas sim descendente de escravos africanos.
A Severa era negra?
Não digo que fosse negra, mas não devia estar muito longe. Tinha provavelmente aquilo a que se chama uma pele trigueira.
Explique lá um bocadinho melhor essa descendência de escravos?
Eu entendo que isso suscite alguma curiosidade, mas eu costumo dizer que, de alguma forma, todos nós devemos ter um mililitro de sangue negro de certeza. Os antepassados da Severa mais longínquos que encontrámos são um casal de escravos que se casa por volta de 1688. São quatro ou cinco gerações para trás. Têm vários filhos, entre as quais uma filha chamada Luzia, ‘a Preta’, que já era uma escrava forra, liberta, mas que continuou a trabalhar para os mesmo patrões que eram a família Manso, de Ponte de Sôr. [A Luzia teve, por seu turno, vários filhos e, é numa linha de descendência, que acaba por nascer, em 1791 Ana Gerturdes Severa, a 'Barbuda', mãe de Severa].
Mas quer a mãe da Severa, quer a própria Severa fazem a sua vida em Lisboa!
Sim, a mãe da Severa, que já casou tarde, com vinte e tal anos, em 1815, veio para Lisboa por volta de 1817 à procura de uma melhor vida... que não encontrou.
Sabendo que a Severa morreu com apenas 26 anos e sabendo que há tão pouca informação sobre ela, nem imagens nem registos sonoros, o que acha que fez o seu nome chegar com tanta força até aos dias de hoje?
Há aqui várias coisas. Primeiro, ela não morreu jovem. Esse é outro dos mitos. Na idade em que ela morreu, em 1846, já era uma mulher madura. Não podemos é transportar para aquele período aquilo que é hoje a nossa compreensão sobre a esperança de vida. Nós temos, por exemplo, um documento que atesta que ela entrou na prostituição por volta dos doze anos.
Como é que chegaram a essa conclusão?
Conseguimos um documento que prova que há um pedido do pai e do padre local para ela ir para a Casa Pia para não cair na prostituição. Como isso não aconteceu acreditamos, por isso, que foi nessa altura que começou a prostituir-se. Estamos a falar de alguém que viveu provavelmente 16 anos a vender o corpo.
E a Severa chegou a casar?
Nós não encontrámos nenhum documento que o comprovasse. Mas isso também não era normal, porque ela até era uma prostituta de terceira categoria.
Como assim?
Naquele tempo a primeira categoria de prostituta era a mulher que era amante de alguém. A segunda categoria era a mulher que vivia em casas onde era explorada e a terceira categoria era a prostituta de rua, onde se enquadrava a Severa. Isso percebe-se bem pelas voltas que ela dava por Lisboa à procura de clientes, voltas essas que estavam sempre condicionadas às leis higiénicas da cidade que determinavam que as prostitutas só podiam andar em determinados sítios.
E ela andava por onde?
A Severa andava entre Campo Santana e Anjos e por aí abaixo até à praça da Figueira, fora o momento em que ela vive no Bairro Alto por imposição da câmara às prostitutas. Eu só espero que isto não tire alguma poesia, mas parece-me interessante referir que a Severa também foi produto de uma paisagem de exclusão.
Mas ela não teve uma relação privilegiada com um conde?
A leitura que eu faço é que a relação com o 13º Conde de Vimioso [Francisco de Paula de Portugal e Castro] não era amor. Ela e a mãe deviam ser exploradas por ele, porque viviam em casas que lhe pertenciam sem nunca pagarem.
Mas voltando atrás, o que acha que fez o nome de uma figura tão marginal perdurar no tempo?
Ela chega aos dias de hoje por várias razões, uma delas por causa de uma história de amor não correspondida, e que é algo que está inscrito no ADN do fado. Mas há outras coisas. Ela deverá ter sido uma figura marcante, curiosamente por causa dos olhos. Em todas as descrições que são feitas dela, falam-se em "olhos de fogo", o que pode indiciar que havia ali uma forte personalidade. E é curioso que, após a sua morte, surgem um conjunto de fados populares sobre a tragédia desta mulher que morre de amores e é isso que se vai inscrevendo na história do fado. E depois a partir de 1860 surge mesmo uma narrativa ficcionada, particularmente na dramaturgia, que vai construindo a figura da Severa. Finalmente em 1901, surge então a peça que o Júlio Dantas leva a palco e que vai catapultar em definitivo o seu nome.
Consegue-se perceber quando ela começou a cantar fado?
Há uma coisa que também importa referir. Nós dizemos que ela foi a primeira fadista, mas é preciso perceber o que era uma fadista em 1830. Fadista era sobretudo uma marginal. O que podemos dizer é que ela pertence à primeira geração daquilo a que mais tarde vimos a reconhecer como fado. Mas isso leva-nos a discutir sobre a origem do fado e isso já é outra coisa.
Não digo que fosse negra, mas não devia estar muito longe. Tinha provavelmente aquilo a que se chama uma pele trigueira.
Explique lá um bocadinho melhor essa descendência de escravos?
Eu entendo que isso suscite alguma curiosidade, mas eu costumo dizer que, de alguma forma, todos nós devemos ter um mililitro de sangue negro de certeza. Os antepassados da Severa mais longínquos que encontrámos são um casal de escravos que se casa por volta de 1688. São quatro ou cinco gerações para trás. Têm vários filhos, entre as quais uma filha chamada Luzia, ‘a Preta’, que já era uma escrava forra, liberta, mas que continuou a trabalhar para os mesmo patrões que eram a família Manso, de Ponte de Sôr. [A Luzia teve, por seu turno, vários filhos e, é numa linha de descendência, que acaba por nascer, em 1791 Ana Gerturdes Severa, a 'Barbuda', mãe de Severa].
Mas quer a mãe da Severa, quer a própria Severa fazem a sua vida em Lisboa!
Sim, a mãe da Severa, que já casou tarde, com vinte e tal anos, em 1815, veio para Lisboa por volta de 1817 à procura de uma melhor vida... que não encontrou.
Sabendo que a Severa morreu com apenas 26 anos e sabendo que há tão pouca informação sobre ela, nem imagens nem registos sonoros, o que acha que fez o seu nome chegar com tanta força até aos dias de hoje?
Há aqui várias coisas. Primeiro, ela não morreu jovem. Esse é outro dos mitos. Na idade em que ela morreu, em 1846, já era uma mulher madura. Não podemos é transportar para aquele período aquilo que é hoje a nossa compreensão sobre a esperança de vida. Nós temos, por exemplo, um documento que atesta que ela entrou na prostituição por volta dos doze anos.
Como é que chegaram a essa conclusão?
Conseguimos um documento que prova que há um pedido do pai e do padre local para ela ir para a Casa Pia para não cair na prostituição. Como isso não aconteceu acreditamos, por isso, que foi nessa altura que começou a prostituir-se. Estamos a falar de alguém que viveu provavelmente 16 anos a vender o corpo.
E a Severa chegou a casar?
Nós não encontrámos nenhum documento que o comprovasse. Mas isso também não era normal, porque ela até era uma prostituta de terceira categoria.
Como assim?
Naquele tempo a primeira categoria de prostituta era a mulher que era amante de alguém. A segunda categoria era a mulher que vivia em casas onde era explorada e a terceira categoria era a prostituta de rua, onde se enquadrava a Severa. Isso percebe-se bem pelas voltas que ela dava por Lisboa à procura de clientes, voltas essas que estavam sempre condicionadas às leis higiénicas da cidade que determinavam que as prostitutas só podiam andar em determinados sítios.
E ela andava por onde?
A Severa andava entre Campo Santana e Anjos e por aí abaixo até à praça da Figueira, fora o momento em que ela vive no Bairro Alto por imposição da câmara às prostitutas. Eu só espero que isto não tire alguma poesia, mas parece-me interessante referir que a Severa também foi produto de uma paisagem de exclusão.
Mas ela não teve uma relação privilegiada com um conde?
A leitura que eu faço é que a relação com o 13º Conde de Vimioso [Francisco de Paula de Portugal e Castro] não era amor. Ela e a mãe deviam ser exploradas por ele, porque viviam em casas que lhe pertenciam sem nunca pagarem.
Mas voltando atrás, o que acha que fez o nome de uma figura tão marginal perdurar no tempo?
Ela chega aos dias de hoje por várias razões, uma delas por causa de uma história de amor não correspondida, e que é algo que está inscrito no ADN do fado. Mas há outras coisas. Ela deverá ter sido uma figura marcante, curiosamente por causa dos olhos. Em todas as descrições que são feitas dela, falam-se em "olhos de fogo", o que pode indiciar que havia ali uma forte personalidade. E é curioso que, após a sua morte, surgem um conjunto de fados populares sobre a tragédia desta mulher que morre de amores e é isso que se vai inscrevendo na história do fado. E depois a partir de 1860 surge mesmo uma narrativa ficcionada, particularmente na dramaturgia, que vai construindo a figura da Severa. Finalmente em 1901, surge então a peça que o Júlio Dantas leva a palco e que vai catapultar em definitivo o seu nome.
Consegue-se perceber quando ela começou a cantar fado?
Há uma coisa que também importa referir. Nós dizemos que ela foi a primeira fadista, mas é preciso perceber o que era uma fadista em 1830. Fadista era sobretudo uma marginal. O que podemos dizer é que ela pertence à primeira geração daquilo a que mais tarde vimos a reconhecer como fado. Mas isso leva-nos a discutir sobre a origem do fado e isso já é outra coisa.
Mas conseguimos precisar com que idade ela começa a cantar?
Conseguimos dizer que ela terá começado a cantar por volta de 1830. Aos 10/12 anos seguramente que ela já cantaria.
Quanto tempo levaram a concluir esta obra e que tipo de investigação e pesquisas fizeram?
Este trabalho começou a ser feito há cerca de três anos e meio. Houve muito trabalho de arquivo que nos permitiu traçar o mapa genealógico da Severa. Há dez anos houve uma primeira tentativa mas ficou muito incompleta. Tivemos uma pessoa da equipa a fazer todos os levantamentos de documentação, assentos de nascimento, de morte e de casamento que nos permitiu reconstituir em parte, desde 1690 até à morte da Severa a sua árvore genealógica. Ou seja, conseguimos reconstruir quase duzentos anos do seu percurso biográfico, desde os antepassados escravos, até às suas sucessivas libertações.
Conseguimos dizer que ela terá começado a cantar por volta de 1830. Aos 10/12 anos seguramente que ela já cantaria.
Quanto tempo levaram a concluir esta obra e que tipo de investigação e pesquisas fizeram?
Este trabalho começou a ser feito há cerca de três anos e meio. Houve muito trabalho de arquivo que nos permitiu traçar o mapa genealógico da Severa. Há dez anos houve uma primeira tentativa mas ficou muito incompleta. Tivemos uma pessoa da equipa a fazer todos os levantamentos de documentação, assentos de nascimento, de morte e de casamento que nos permitiu reconstituir em parte, desde 1690 até à morte da Severa a sua árvore genealógica. Ou seja, conseguimos reconstruir quase duzentos anos do seu percurso biográfico, desde os antepassados escravos, até às suas sucessivas libertações.