Esteve pelas costuras a Casa Guilhermina que Ana Moura levou ao Coliseu
Concertos - Março 20, 2023
Quando vamos a casa de uma pessoa, ficamos a saber tudo sobre ela e
sobre os que a rodeiam. Mais de três de mil de nós fomos esta noite à
casa de Ana Moura, a tal Casa Guilhermina.
Coliseu dos Recreios | Lisboa | 19.03.2023
Na serventia da casa esteve o seu quarteto de instrumentistas, incluindo a super-estrela da guitarra portuguesa Gaspar Varela, e um corpo de quatro dançarinos.
Junto à Casa Guilhermina, há um palmeiral e ouve-se música africana. Não é só uma casa de fados. Talvez a Casa Guilhermina - nome do álbum que enche quase por completo o alinhamento da atuação - seja uma herdade e até uma arena, atendendo à megalomania pop com afinidades com Rosalía, onde a tradição de um género antigo se revoluciona, sem ser extraída. Há uma produção enorme com monumentalidade visual que testa a flexibilidade do Coliseu, com uma grande tela de imagens camaleónica, danças coreografadas, um palco com várias elevações, além de outros engenhos, neste espetáculo de quase duas horas, que mereceu uma enchente de levar a sala a rebentar pelas costuras.
Ao entrar-se esta noite no Coliseu dos Recreios, não parece estar-se num ambiente de um concerto de fado, com um DJ a animar a contagem crescente para o espetáculo, além da plateia ser em pé e não sentada, como se estivéssemos num espetáculo pop. Nesses muitos minutos antes do concerto, vemos um ecrã com seis planos simultâneos, quatro de uma vivenda apetecível: um de um berço, outro de uma piscina bem protegida por um arvoredo. O único sinal de vida é o gato a passear-se na zona exterior da casa. Outros dois planos são do Coliseu dos Recreios, ou uma forma de se chamar de Casa Guilhermina só por uma noite. Já estamos em casa de Ana Moura, portanto.
Quando os músicos entram em palco, a primeira grande ovação vai para Gaspar Varela, que estava de camisola de alças, lenço ao pescoço, reconhecível à distância pelo seu cabelo encaracolado. Os músicos estão fixados no fundo, deixando o centro do palco para uma dança com adufes dos quatro dançarinos. Quando Ana Moura entra em palco de branco, qual anjo endiabrado, começa com o seu fado mais próximo de tal, mas com as suas batidas folclóricas pungentes, em 'Janela Escancarada'. Depois, desfada-se em 'Andorinhas', com a roda em agitação frenética dos quatro dançarinos.
No primeiro discurso da noite, Ana Moura está visivelmente emocionada, assumindo o nervosismo perante a presença da família, mas mostrando desde logo a sua vontade em dançar. “Vai ser um concerto irrepetível”, diz, cheia de convicção, Ana Moura.
Cada canção tem o seu cenário. 'Corridinha' cheira a cachupa, tendo-se montado uma mesa que parece um altar, com o ecrã com imagens de comidas. Em 'Estranha Forma de Vida', o ambiente torna-se mais solene, entregue ao fado mais espiritual e austero embora neomilenar, sem os dançarinos e com a tela descida a faiscar branquidão.
O virtual e o real confundem-se quando Pedro Mafama toma o palco, para cantar de forma agachada o seu 'Linda Forma de Morrer', num dueto com a visão de Ana Moura no ecrã, enquanto choram a distância um do outro. Tal como na cronologia biográfica de ambos, o segundo capítulo deste romance é também neste concerto o tema 'Agarra em Mim'.
'Jacarandá' é dedicado por Ana Moura ao seu amigo Prince, “uma das pessoas mais incríveis que já conheci”, relembrando um pressentimento do falecido músico: “Um dia ainda hei de ouvir a tua música com um beat”. 'Jacarandá' dá razão a Prince, numa selva de pop elétrónica onde o fado fica perdido em parte incerta. Em 'Calunga', ouve-se um sample fantasmagórico do Bonga dos anos 70, onde Ana Moura vem com nova roupa, vestindo e mexendo-se como uma dançarina de ventre.
É tão raro Ana Moura mexer no seu baú histórico que, quando o faz, já o presente o tomou, como acontece com 'Desfado', que foi tocado no Coliseu de forma mais africanada. Só Ana Moura é mais leal na forma, cantando com a sua famosa pose de lado. 'Trigo' é outro fado no canto que é pop no arranjo, ao contrário de 'Nossa Senhora das Dores', onde Ana Moura volta ao berço do fado, a cantar sentada numa cama de ferros. O tema mereceu de Ana Moura uma dedicatória a Maria da Fé, a sua "madrinha do fado".
O angolano Paulo Flores faz com Ana Moura dois duetos, em 'Mázia' e, já em sua casa, um semba, enquanto lá atrás Gaspar Varela é o que mais dança, aproveitando a pontual folga da guitarra portuguesa.
O tema 'Sozinha Lá Fora' é levado à letra por Ana Moura, que o canta fora do palco, sozinha no meio da arena do Coliseu, num momento de maior intimidade que antecede os minutos mais etnográficos do instrumental 'Fandango', num sapateado folclórico a homenagear a região ribatejana de Ana Moura.
"Foi um prazer ter-vos em casa", desabafa a simpática anfitriã da "Casa Guilhermina", antes de se despedir com o fado dos trópicos 'Arraial Triste'. Para o encore, regressou sozinha, para cantar à capela 'Sou do Fado, Sou Fadista', e arrepiar a multidão com a sua força vocal, imobilizando corpos (coisa rara nesta noite) para um momento exclusivo de alma. A fechar o concerto, Ana Moura chama todos os intervenientes a palco, incluindo Mafama, Paulo Flores e os quatro dançarinos, para cantar pela segunda vez 'Mázia'. A artista sai do palco a recriar sons de bicharada exótica, um hábito vocal que, pelos vistos, lhe tem dado algum gosto. Dado o prognóstico pela cantora no início do espetáculo, ele confirmou-se: foi um “concerto irrepetível”.
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