Cuca Roseta: "Até quem não entende uma palavra sente o fado"
Neste momento, Cuca prepara-se para promover em Espanha o seu novo disco Rayana,
em que casa fado com flamenco. Mas já no final deste mês aguarda-a o
que decerto será um dos grandes momentos do ano, com a sua participação
nos dois concertos de Andrea Bocelli, em Lisboa.
Estamos a celebrar o 10 de Junho e a Cuca vai
estar em Cabo Verde. O que sente ao andar por esse mundo fora, a levar
um género musical que é tão identitário como o fado?
Sinto-me completamente embaixadora do nosso país e isso tem sido das
coisas mais bonitas que me tem acontecido ao longo da minha carreira.
Quando vamos lá fora levamos connosco uma tradição, através do fado, e
sinto que, com isso, conseguimos que dezenas de países se interessem
muito mais por Portugal do que acontecia antes. E isso é do mais bonito
que há nesta minha missão, neste meu trabalho, talvez neste meu dom.
Também me cativa muito cantar para as comunidades portuguesas, que estão
fora, porque o modo como elas nos recebem está muito envolvido em
saudade e amor, mas a verdade é que o fado mantém a força mesmo quando
cantamos para quem não percebe uma palavra do que estamos a dizer. É
algo de mágico para um país tão pequenino, sobre o qual os
norte-americanos perguntam se é uma região de Espanha.
Ainda?
Sim, é escandaloso. É em momentos como estes que eu me sinto mesmo
embaixadora e também muito revoltada. Chego a mostrar-lhes no mapa que a
Península Ibérica é composta por dois países independentes. Por isso é
que é tão incrível ver a nossa música chegar tão longe. Até porque o
português não é das línguas mais fáceis em termos musicais: É dura,
fechada, quando comparada com o castelhano, o italiano ou o português do
Brasil, que têm todas as vogais muito mais abertas. Mas, ainda assim, o
fado é património imaterial da Humanidade e eu não consigo deixar de me
maravilhar com o que vejo acontecer nas minhas viagens: Sinto mesmo que
é impossível não me sentir patriota quando penso no valor da nossa
tradição.
Vai estar agora em Cabo Verde. Como é a receção nos países lusófonos?
Os dois sítios que mais me surpreenderam ao ouvir fado foram Cabo Verde e
Cuba, talvez porque são países em que a música está mesmo em todo o
lado. Dançam o fado como eu nunca tinha visto. Cabo Verde tem uma doçura
imensa e uma relação fortíssima com a música, desde a senhora que vende
fruta e está a cantar até às crianças. Todas as pessoas tocam ou cantam
enquanto fazem as suas coisas e levam a sua vida para a frente.
E as mornas estão distantes do fado?
Não, são família. É um bocadinho como o flamenco e o tango. São diferentes formas de exprimir a mesma coisa.
E que coisa é essa?
Eu acho que é o grito do povo, o colocar na música a expressão das
mágoas. Foi assim que o fado nasceu: As mulheres saíam à rua, os homens
partiam para o mar, elas não sabiam quando é que eles voltavam, e se
voltavam. Nasce de classes muito populares e só de forma tardia é que
chega às elites. Mas tem essa origem ligada à saudade e à pobreza.
Para
si, a internacionalização começou muito cedo, quando, em 2007, entrou
no filme do realizador espanhol Carlos Saura (a cantar um clássico como Rua do Capelão). Como foi essa experiência?
Era muito novinha, hoje dá-me uma nostalgia muito grande quando revejo
esse filme. Na verdade, quando o filmei, tinha começado a cantar numa
casa de fados há muito pouco tempo. Foi um privilégio muito grande até
pela importância cultural que o cinema do Carlos Saura tem. Um dos
filmes dele que continua a inspirar-me muito chama se Ibéria. Gosto
muito do modo como ele filma a forma como aqueles artistas se entregam à
sua missão. Para mim, o Fados foi uma autêntica rampa de lançamento. Foi a partir da visibilidade que ele teve que recomeçámos a levar o fado para o exterior.
Gravou, em plena pandemia, um disco dedicado à Amália (Amália por Cuca Roseta), em que cantava alguns dos seus fados mais icónicos (Com que voz, Maria Lisboa, Barco Negro, Lágrima, Boa Nova, Fado Lisboeta...). Sente que foi Amália que internacionalizou o Fado?
Sem dúvida. Foi a Amália que nos deixou esta herança toda.
O que significa pessoalmente para si?
Tenho um fascínio muito grande. Era uma mulher muito destemida, muito
forte, que enfrentou sozinha muitas coisas. Eu estou agora a trabalhar
com o manager dela em França, Jean-Jacques Lafaye, que nunca mais
trabalhou com ninguém desde que a Amália morreu. Recentemente, ele foi
ver um concerto meu em Paris e diz que voltou a ter esperança. Isto
arrepiou-me tanto e nem vou dizer o que ele disse mais porque senão vão
dizer que sou uma convencida.
Ninguém diz isso. Conte-nos lá.
Está bem. Ele conta muitas histórias da Amália e diz que eu sou a neta
sonhada dela. Também me contou uma história dela que me marcou muito e
que me comove profundamente: Seis meses antes de morrer, numa homenagem
que lhe foi feita em Paris, ela ter-lhe-á perguntado se achava que os
portugueses gostavam dela. Isto emociona-me muito.
Ela tinha dúvidas?
Tinha. É inacreditável como é que uma mulher daquelas, que fez tanto
pelo país, tinha este tipo de sentimento. Também é verdade que levou com
muita gente a dizer que ela não era fadista, que era isto e era aquilo,
que não podia cantar grandes poetas. Estamos a falar de uma mulher que
levou o fado às elites e ao mundo, colocando-o ao lado de outros géneros
identitários como o flamenco ou o tango. Fê-lo sozinha, completamente
sozinha, com muita gente a dizer que ela não estava a cantar fado, que
era uma herege. E ela prosseguiu, apesar disso. Como é que permitimos
que esta mulher morresse sem saber se era amada ou não pelos
portugueses?
E a Cuca acha que ela não era amada?
Não sei, houve algumas homenagens, mas tenho a convicção de que só
percebemos efetivamente a sua dimensão, o seu contributo depois da sua
morte. Ficaria felicíssima com todas as homenagens que lhe foram feitas
entretanto mas penso que ela fez por Portugal o que muito poucos
fizeram.
Portugal hoje está na moda e então isso não acontecia, até por questões de isolamento político.
Exatamente. E era muito mais difícil viajar de avião naquela altura e
era uma mulher que andava pelo mundo acompanhada apenas pelos seus
músicos.
Mesmo numa realidade social tão diferente, as coisas ainda não são fáceis para as mulheres no fado. Ou é impressão minha?
Pois não, não é. Posso dizer que, por viajarmos muito, sentimos que o
nosso país é uma pequena aldeia, com o que isso tem de maravilhoso e
também de terrível. Sinto que ainda somos um país muito conservador e
também muito machista. Há que não ter medo de o dizer. Por isso, num
momento em que estão a acontecer coisas tão graves no mundo,
sentirmo-nos tão atacados, julgados como nós somos, é inacreditável. É
mesmo absurdo. As pessoas não nos conhecem pessoalmente. Só nos veem e
ouvem cantar e o julgamento que fazem porque vestimos determinada roupa
ou estamos na praia de biquíni é abusivo. Comigo implicavam porque não
usava xaile ou porque não vestia de preto. Ou ainda porque sou de
Cascais e não nasci num bairro típico de Lisboa. Era também porque tinha
um piercing e isso não era "permitido" a uma fadista. Hoje já não é
tanto assim. Acho que conquistei o meu lugar entre os portugueses, que é
o que mais interessa porque temos muitos concertos no estrangeiro mas
também muitos em território nacional. E é maravilhoso também porque as
pessoas cá adoram a nossa tradição. Seria ingrato da minha parte dizer
que não sou extremamente acarinhada quando canto cá mas...
Mas
teve a sua luta... Houve um momento em que teve de escrever na sua
conta de instagram, e cito-a: "Vamos lá ver meus senhores, vivemos de
uma forma livre, em que seja qual for a cultura onde nascemos cada um
tem o direito de vestir o que quiser e bem entender, desde os indígenas
aos que utilizam burca e não ser julgado ou criticado pela diferença".
Isto é pesado?
Tive a minha luta e tenho a certeza de que ainda sou discriminada por
alguns lobbies: Ou porque não sou de um bairro popular de Lisboa ou
porque visto roupas coloridas. Mas esses critérios nada têm a ver com o
Fado, não é? Eu costumo dizer que este está entre a performance e um
canto devocional.
De que maneira?
No sentido em que sendo uma performance, tem, no entanto, um lado muito
mais profundo. Os antigos diziam que o Fado era quase como uma prece, em
que as mulheres saíam e pediam ajuda a Deus para os seus problemas ou o
regresso de alguém que amavam. É uma coisa muito intimista. Quando eu
digo que tem algo de canto devocional, não quero com isso dizer que se
trate de uma coisa religiosa, mas por ser muito espiritual. Eu acho que
esta catarse que o fadista tem de fazer, ao ir à sua verdade, às suas
emoções e transformá-las em arte e beleza, tem a capacidade de
transformar também os outros. E transforma de uma forma incrível porque
comove e toca pessoas que não compreendem uma palavra de português.
Já lhe aconteceu isso?
Já, várias vezes. Vi muitas pessoas sentirem-se tocadas pela energia
desta nossa música e eu consigo entender isso. Aconteceu-me uma vez na
Polónia, em que fui interpelada por uma senhora que chorava
compulsivamente e que me dizia: "As mulheres neste país não se podem
exprimir. Nós não podemos chegar aqui e dar-te um abraço ou um beijo. E
tu chegas aqui e exprimes-te em liberdade." É isto que é o fado, o
flamenco, o tango. O nosso é mais contido. Recentemente gravei um disco
de fado e flamenco e formei a noção do que têm de diferente mas também
de comum.
E que pontos são esses?
O flamenco é um grito de alma mas que reclama. O fado não reclama, é
mais uma aceitação de que a vida tem altos e baixos. O flamenco não, tem
aquela garra toda. São diferenças que têm a ver com as próprias
culturas, nós somos mais contidos e os espanhóis são muito mais
extrovertidos. Mas o fado tem este lado de prece, que me apaixona
completamente. Eu quando cantava pop, nos Toranja sobretudo, gostava,
mas não ligava muito. A minha mãe perguntava-me se eu queria tornar-me
cantora, fazer disso profissão, e eu dizia que não, nem pensar. Quando
comecei a cantar no Musicais, todas as segunda-feiras, a fazer covers,
era eu que escolhia as músicas todas e gostava muito delas, mas nunca
senti que queria aquilo. Aliás, quando se converteu numa rotina, comecei
a odiar.
Com o fado foi diferente?
Totalmente. Posso estar com febre, ter dormido duas horas e pensar: "Não
sei como é que vou conseguir cantar" mas assim que entro no palco,
transfiguro-me. Hoje posso dizer que trabalho na minha paixão. É a única
coisa que suporta febres, noites mal dormidas. No dia em que a minha
avó morreu, tinha um concerto e fui cantar à mesma. Estive uma série de
tempo a chorar no camarim e depois cheguei ao concerto e ninguém sentiu
que se passava alguma coisa com a intérprete. Aquelas pessoas que
pagaram bilhete não tinham de ter um espetáculo pior porque a minha avó
tinha morrido nesse dia. The show must go on, mas porque há
paixão. Há uma missão. Eu sinto-me um canal de transmissão. Não importa o
que se passa cá dentro. É preciso que os nossos sentimentos se
transformem em beleza. O meu destino levou-me para os palcos e, depois
de tantos anos, o palco é mesmo a minha casa, é onde consigo conectar-me
comigo mesma e passar aos outros a voz e a mensagem. É uma missão muito
bonita quando a assumimos com a humildade de sermos apenas um
instrumento, como pura forma de partilha. Não uma coisa do ego. O fado é
isto. É fascinante e é nosso.
A Cuca também escreve e é autora de vários temas seus. Esse lado também surgiu naturalmente?
Sou fadista, sempre me considerei fadista, mas não sou uma fadista
tradicional. Em todos os meus discos tinha sempre um tema meu. Não era
muito comum no fado as pessoas comporem e escreverem as suas músicas,
mas eu fiz isso desde nova. Portanto, inicialmente, as pessoas
estranharam, mas acabaram por aceitar. O meu público chegou mesmo a
pedir-me "faz mais músicas, faz um disco só teu", e assim aconteceu com o
disco Meu, que foi o sétimo disco. Por outro lado, permite-me ter uma
autonomia financeira que quem é só intérprete não tem, porque tenho os
meus direitos de autor. Isso também não é muito bem visto quando somos
mulheres A misoginia e o preconceito persistem. As mulheres livres ainda
incomodam muita gente. Uma mulher a cantar bem vestida e sensual não
tem de ver diminuído o seu valor e talento. O fado não é o visual de
quem o canta, é outra coisa. É algo que vem da alma. E cada interprete é
diferente.
No final deste mês vai cantar com Andrea Bocelli, em Lisboa. O que é que espera destes dois concertos?
Já me emocionei duas vezes só com a ideia. Quando começo a ensaiar as
músicas que vou cantar com ele, já me dá assim uma alegria e uma enorme
gratidão. Para além do mais, esta é a primeira vez em que ele convida
alguém para cantar duas músicas e não só uma. Também serei a primeira a
cantar músicas que fazem parte do repertório dele e não um tema extra em
que ele se adapta a uma cantora, o que tem sido mais um desafio para
mim. Descobri que a minha voz tem um lado lírico, que nunca explorei.
Acho que vai ser um dia muito especial e uma revelação também para mim.
Mais uma.
DN