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Sara Correia: “O fado traz-nos a verdade da vida”

Entrevistas - Dezembro 09, 2023
Fadista editou novo “Liberdade” em outubro e anunciou os Coliseus de Lisboa e Porto para 2024. Sobre o novo trabalho, diz-se sentir mais livre e feliz do que nunca.

Agora chega então a sua “Liberdade”, disco onde fala de Chelas, da rebeldia e das raízes, acompanhada por convidados de luxo na escrita, de Pedro Abrunhosa e Joana Espadinha, de Carminho a Tiago Bettencourt ou Carolina Deslandes. Ao JN, conta como está mais segura e feliz do que nunca.

Leve-nos ao início; a como tudo começou quando a Sara era criança, no bairro de Chelas. Como nasceu a sua ligação ao fado?
Sou nascida e criada em Chelas, sim. E a minha família já tinha essa ligação ao fado, a minha tia já cantava, pelo que começou mesmo ali, no bairro, na rua, na casa dos meus avós...

Muitos não saberão, mas ouve-se muito fado em Chelas, não é?
Sempre, sempre. Há casas de fado, há escolas de fado em Chelas, há muitos fadistas vindos de lá. Só que as casas de fado como as conhecemos, com restaurantes, são em Alfama, Mouraria. Em Chelas também as há, mas não dessa forma. Então muitos fadistas começam em Chelas e vão depois para Alfama. Portanto em casa dos meus avós sempre se ouviu muito fado, desde pequenina que oiço a Dona Amália e outros fadistas. E com nove anos, decidi ir bater à porta de uma dessas escolas de fado, de uma querida pessoa que já não está entre nós, que foi quem primeiro acreditou em mim e me ajudou muito a fazer o meu caminho. E foi aí que comecei a decidir algumas coisas que tinha que perceber que não eram para a minha idade, e que comecei a perceber a importância que era o fado. O que continuou depois, o Fado é também uma procura constante na vida.

Ainda hoje?
Ainda hoje. E para o resto da vida. O fado é um mistério. Agora com 30 anos, acho que estou a viver uma boa fase da minha vida, portanto tenho certas coisas para dizer às pessoas. Aos 40 vou ter outras, aos 50 vou ter outras. E o fado é isso mesmo. É um caminho de história, ‘até que a voz me doa’.

Começando tão nova, nunca pensou em fazer outra coisa?
Não, é estranho, mas é a realidade. Como comecei muito cedo, tive logo a certeza que o que queria era cantar. E depois comecei a ser chamada para cantar nas casas de fado, então estava lá sete dias por semana, não deu para muito mais. Dai também o meu desenvolvimento enquanto fadista, porque cantar todos os dias é como tudo na vida, quanto mais se aperfeiçoa, melhores vamos ficando. Mas acredito que, mais do que cantar, o fado traz-nos uma maturidade como pessoas e traz-nos aquilo que é a verdade da vida, sem encantos cor-de-rosa.

E porque decidiu agora, nesta fase, dedicar um tema precisamente a Chelas?

Senti que com 30 anos já o podia fazer, porque sinto-me muito mais madura, sem medo de dizer de onde venho. Não é que alguma vez tenha tido, mas mostrar realmente de onde venho. Acima de tudo, nós temos que mostrar a nossa verdade; e as pessoas com quem cresci, as pessoas do bairro, são a minha gente, são as pessoas que fizeram de mim quem sou hoje. E quis prestar essa homenagem, porque Chelas também já me deu muito e tenho muita sorte de ter nascido ali, porque são pessoas que se ajudam mutuamente. Estamos sempre a ajudar-nos uns aos outros, o bairro tem essa característica. E quis mostrar também com a letra que Chelas não é só o que as pessoas pensam – como, sei lá, armas ….

Sente que ainda há muitas ideias preconcebidas?
Sim. E quis mostrar o contrário. Que todas as etnias se dão, todas as pessoas se dão, tanto crianças como adultos. Acho que é normal que as pessoas pensem assim, porque outrora realmente foi um bairro, se calhar, mais problemático. Mas em 30 anos, não me lembro de alguma vez ver alguma coisa fora do normal, nada. Então quis passar também essa mensagem, que é trazer as pessoas para o meu bairro, para perceberem que as gentes dali são boas, trabalham muito diariamente para conseguirem ter o seu ganha-pão ao final do mês, são boas pessoas. E essa foi a homenagem que quis prestar.

Estava a falar desta fase de se sentir mais vontade de falar nestas coisas e o disco chama-se “Liberdade”. Está tudo ligado, é porque sente-se de facto mais livre do que nunca?
Sim, sim. Este disco chama-se Liberdade exatamente por isso. Cheguei a um ponto da minha vida em que me sinto eu a 100%. Não sei se daqui a 10 anos vou dizer outra coisa, mas hoje sinto que tenho a maturidade e a força e a liberdade de ser a mulher que sou. E este disco, do início ao fim, tem vários gritos de liberdade, como com o tema do Zeca Afonso [a “Balada do Outono], ou o “Marias na Terra” que fala sobre uma mulher que vive na rua e como às vezes nós passamos pelas pessoas e nem as vemos. E quis mostrar o contrário, que temos que ser pessoas mais afáveis e ajudar os outros, ajudar o próximo.

Como surgiu a ideia de ir buscar a “Balada do Outono”?

Há uns tempos, fui convidada para fazer uma homenagem ao Zeca Afonso para a RTP1. Já conhecia muito bem todo o repertório, até porque tem muito a ver também com o fado, e cantei a “Balada do Outono” e o “Menino do Bairro Negro”. E quando cantei a “Balada”, só com guitarra portuguesa, disse logo, nesse dia, que aquele tema tinha de ir para o meu disco. E nem sabia ainda que ia fazer todo o sentido. Porque este disco foi construído de forma muito natural, com a linha que é de todos os temas falarem de um grito à liberdade e então realmente fez todo o sentido.

Como funciona a criação? Tem um rol de estrelas nos compositores convidados, é o Diogo Clemente [produtor] que os junta, é a Sara?
Este disco foi muito a minha procura, com muita ajuda do Diogo também, porque canto muita coisa pelo Diogo. O Diogo para mim é um dos maiores compositores. Desde sempre o acho, não sei se também pode ser pela cumplicidade que tenho com ele, mas gosto muito da forma como ele escreve e como passa as coisas cá para fora. E tenho a sorte de ser o meu melhor amigo. Portanto, há coisas que canto que sei que foram feitas para mim. E depois, procurei pessoas com quem já tenho alguma ligação. A Carolina Deslandes, a Carminho, que conheço desde pequenina... Portanto, foi fácil conseguir juntar tudo de forma que ficasse uma história, do início ao fim. Com o Tiago Bettencourt, a mesma coisa. Liguei e disse-lhe: ‘Tiago, preciso de uma música. Quero muito falar sobre a minha rebeldia, porque sou muito rebelde, mas ao mesmo tempo também sou muito tímida. Tenho as duas vertentes’. E o “Ser Rebelde” fala das várias formas do que é ser rebelde e livre. Ao fim e ao cabo, no fim de tudo, a história é sempre ser livre.

Como artista, qual é a parte de que mais gosta? Essa parte de criação, da gravação ou depois na estrada?
A estrada. Gosto muito de gravar álbuns, do estúdio, cantar pela primeira vez, ou pela segunda ou terceira. Mas depois contar a história ao vivo é arrebatador. É outra coisa. É contar a mesma história mil vezes e nunca se cansar dela.

E como é levar o Fado ao mundo? Há algum povo que já tenha surpreendido, pela adesão aos seus concertos?
Sim, todos, cada vez mais. Na Coreia do Sul, na Índia, América Latina, tem sido incrível... E o fado merece. Acima de tudo, o fado é uma música que chega a qualquer pessoa pela sua intensidade e pela carga que traz. Tem realmente o poder de ser algo extraordinário e mágico, para quem o ouve.

Sente que pessoas de culturas tão dispares entendem o fado da mesma maneira que nós?

Sim. Mesmo não entendendo muitas vezes a letra! Porque... Não é só a letra. O corpo também canta, as expressões cantam, os músicos... A dor, a forma como se entoa as coisas. Acho que as pessoas entendem quando estou a cantar algo que me dói. Ou quando estou a cantar algo alegre. Às vezes fico a pensar, ‘como é que as pessoas estão a chorar?’ É porque consegui, mesmo que elas não entendessem, conseguir passar a minha mensagem. E isso é o fado, ele tem este poder.

Já conseguiu tanto, ainda é cedo para um balanço, mas o que lhe falta fazer?
Ui, tenho tanta coisa para fazer. Já conquistei algumas coisas que nunca mais vão sair, e sou muito grata por isso. Já fui nomeada para um Grammy Latino aos 28 anos, quer dizer, para mim já ganhei, já foi um feito muito grande. É o reconhecimento de um trabalho desde pequenina e sabe muito bem. E agora anunciar os Coliseus, ou cantar na Union Chapel em Londres, fazer vários teatros pela América Latina. Tem sido inacreditável e sou muito feliz.

Quais os próximos passos imediatos? Agora os Coliseus, foi um grande anúncio, e depois?
Agora vou viver este disco. E cantar sempre até chegar aos Coliseus. Não vou parar. Tenho o “The Voice” também, portanto vai ser sempre uma constante labuta.

Gosta desse papel, de avaliar outras vozes?
É assim: eu gosto. É muito difícil. Estou no “The Voice” não é para... não digo que seja para ganhar. Acho que é muito bom conseguir passar para as pessoas que estão comigo, para os mais novos e também para os mais velhos, que quero ser um apoio para elas, dar força e levá-las a algum lado no sentido de se descobrirem como artistas. É esse o meu papel, ser mentora é nesse sentido. É apoiá-los, poder ajudar-lhe em tudo o que puder. Não é fácil.

Falando em artistas, já colaborou com tantos, com quem mais gostava de colaborar?
Vou falar nos portugueses primeiro, porque nós temos excelentes artistas em Portugal. Falta-me muito gravar uma música com a Carolina Deslandes. Com a [Bárbara] Tinoco, vai acontecer também. Mas tenho várias pessoas pelas quais tenho uma grande admiração. O Dino d’Santiago, o Sam the Kid, pessoas com quem cresci, que me viram crescer também e que admiro imenso. O Rui Veloso, o grande Pedro Abrunhosa. Lá fora, posso dizer que gosto muito da Billie Eilish. É uma artista que me diz muito, porque além de escrever e cantar, também tem ali qualquer coisa. A Rosalía... outra mulher de força. Gosto muito de mulheres que tenham vozes de grito, não sei explicar. É um conjunto, para mim. Às vezes até podem não ter grande voz, sabe? Porque cantar não é só ter grande voz. É um conjunto de coisas.

Há alguma coisa sobre a Sara que as pessoas não saibam e que as possa surpreender?
Não sei...é a primeira vez que me estou a mostrar ao público na televisão e para mim é difícil até porque quero muito que as pessoas me reconheçam pela minha música. Hoje em dia, é-se muito mais difícil conhecer as pessoas, os artistas, pelo que são. Mas diria que sou muito... intensa.

O disco fecha com o “Ser Rebelde”. Acha que é, uma rebelde?
Eterna. Eterna rebelde. Vou ser sempre. Na vida, na música... Porque acho que ser rebelde dá forças e tira os medos.
JN


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