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Frei Hermano da Câmara: o monge cantor

News - Dezembro 24, 2023
Frei Hermano da Câmara, o frade beneditino que, aos 89 anos, congrega e cumpre em si as três principais características do sacrobetismo: aristocracia, fé e fado.

Eia lá, no entanto e todavia, porque o seu pai detestava o fado, a que chamava "o enfado", como teve ocasião de confessar o filho de D. Vasco Manuel José de Figueiredo Cabral da Câmara e de Maria do Carmo de Magalhães e Meneses Villar, à conta dos quais Frei Hermano vem a ser, pelo lado paterno, neto do 3.º conde de Belmonte e, por via materna, neto do 3.º conde de Sobral e, também por esta via, ou veia, sobrinho-bisneto do 1.º conde de Alvelos e trineto 2.º visconde de Azenha e 1.º conde de Azenha.

Na página do Museu do Fado, descrevem-no também como tetraneto do rei D. João VI e aparentado com outras vozes de antiga nobreza, como Maria Teresa de Noronha, Vicente da Câmara, Luísa e Salvador Sobral e, como ninguém é perfeito, com Nuno da Câmara Pereira, famoso fadista maçon e engenheiro ambiental pela Universidade Lusófona (licenciatura anulada, caso nos tribunais) que, em 2022, trocou os apelidos Figueiredo Cabral pelos mais potentes Bragança e Bourbon, e revelou, do mesmo passo, possuir uma segunda família e até um filho-bebé, o pequeno Vasco António.

Talvez a ascendência azul explique aqueles ademanes todos com que Frei Hermano se dirige à plebe, afectação que, convenhamos, é típica dos grandes divos do palco, como ele. A coisa, no seu caso, é agravada pelo suplemento místico, pela pulsão transcendente que o leva a proclamar-se, não sem pontinha de vanitas, como um "Ungido do Senhor" e a dizer a uma amiga casada que, enquanto ela escolhera por companheiro uma criatura humana, ele apaixonara-se pelo próprio Criador do Universo.

Na Quinta da Alagoa, em Carcavelos, propriedade da sua família, entretanto cedida à Câmara de Cascais, que dela pouco cuidou e que hoje se encontra em miserável estado, alvo de sucessivas vandalizações ("E tudo o vento levou", diz ele, pesaroso), Hermano Vasco tinha um retiro fadista, com guitarras e cartazes de toiradas, e o próprio recorda que era frequentador regular das casas de canto da capital, como A Toca, de Carlos Ramos, A Tipóia, O Embuçado ou a Parreirinha.

Em 1955, gravara o primeiro disco, só comercializado em 1959, com a participação de Fontes Rocha, à guitarra, e de Joaquim do Vale e de Joel Pina, à viola. Chamava-se Sunset and Sentiment, e dele constava já o êxito "Colchetes d"Oiro". Em 1969, deu o seu primeiro recital, no Teatro Tivoli, em Lisboa, e, em 1972, recebeu o diaconado das mãos de D. António Ferreira Gomes, em cerimónia realizada na Sé Catedral do Porto. Também das mãos do bispo da Invicta, foi ordenado sacerdote em 1973, o ano em que editou o disco Fado da Despedida e que gravou, com o Quarteto 1111, o álbum Bruma Azul do Desejado, no qual participou o Coro da Escola Claustral de Singeverga, mosteiro onde Frei Hermano esteve vários anos, até fundar a sua própria comunidade, os Apóstolos de Santa Maria, dedicada ao apostolado através da música e cujos estatutos foram aprovados em 1990 pelo arcebispo de Braga, D. Eurico Dias Nogueira.

Vemo-lo de regresso aos palcos em 1977, no Teatro São Luiz, acompanhado pela Orquestra da Radiodifusão. No ano seguinte, lança o duplo álbum O Nazareno, um sucesso absoluto, que esgotou no próprio dia, pese ser o disco mais caro do mercado. Com produção de Mário Martins, O Nazareno inspirava-se nos Evangelhos e tinha Vítor de Sousa como narrador, além de um elenco de estrelas candentes: como anjo, Tomaz Cabral da Câmara, sobrinho de Frei Hermano (e, também como anjo, Carlos Quintas); como Virgem Maria, Luísa Vilarinho; como noivo, António Pinto Basto; como noiva, Teresa Siqueira; como Maria Madalena, Amália Rodrigues; como Judas, Horácio Santos; no papel da samaritana, Mara Abrantes, enquanto Mário Sargedas se desmultiplicava como Pedro, como João, como Pilatos e como o bom e o mau ladrão. No lugar de Cristo, Frei Hermano, obviamente.

Hoje, à distância de tantos anos - 45, sejamos precisos -, é difícil alcançar o impacto que O Nazareno teve, na altura, sobretudo porque a partir dele foram feitos cinco retumbantes espectáculos no Coliseu dos Recreios de Lisboa, com lotações esgotadas, vendas na candonga e até bilhetes falsificados, como então era costume nos jogos da bola. "Tal como Jesus foi conduzido pelo espírito do mal ao pináculo do Templo para ser tentado, também eu fui levado ao pináculo das tentações, aos píncaros da fama", escreve Frei Hermano, sempre irmanado com Cristo.

Tratou-se, como é óbvio, de uma versão lusitana e mais vincadamente eclesial do celebérrimo Jesus Christ Superstar, que Andrew Lloyd Weber e Tim Rice levaram aos palcos da Broadway em 1971 e que seria adaptado ao cinema dois anos depois, pela mão do realizador Norman Jewison.

O Nazareno, que ainda hoje Frei Hermano reconhece ser a sua opus magnum, inseria-se nesse movimento de popularização da mensagem evangélica através dos grandes meios de comunicação de massas, ao qual não foi alheio o spiritual awakening dos Anos 1960 e, no caso do catolicismo, a abertura trazida pelo Vaticano II.

Em 1983, inspirado pelo atentado em Fátima contra João Paulo II, lançou Totus Tuus - Uma Serenata Mística a Nossa Senhora, a que se seguiram discos como Missa Portuguesa, de 1994, Um Astro de Luz, de 1997, Vivo d'Arte, Vivo d'Amor, de 2003, ou Cantar É Rezar, de 2006, além de compilações e antologias que permitem perceber que, além de temas religiosos, Frei Hermano fez várias incursões pelo profano, nomeadamente de poetas portugueses como Miguel Torga, António Boto ou Pedro Homem de Melo, com destaque, quanto a este último, de O Rapaz da Camisola Verde, passível de várias leituras.

Após várias tournées em Portugal e no circuito da emigração, a sua última grande actuação aconteceu no final de 2014, num espectáculo baseado na obra O Nazareno, com encenação de Carlos Avilez, a partir do qual foram realizados três concertos: no Coliseu do Porto, no Coliseu Micaelense de Ponta Delgada e Campo Pequeno, em Lisboa.

Hoje com 89 anos, Frei Hermano da Câmara vive praticamente retirado. Na sua autobiografia, curiosamente, não transcreve apenas os comentários favoráveis à sua obra, mas também as críticas que lhe fizeram, por vezes bastante ácidas (ex., Desafinação Bíblica, nas páginas do Público, de 15/3/1992), e, com tolerância e desarmante humildade, diz acolher tanto os louvores como os reparos. Mesmo que não gostemos do estilo e da pose, apreciemos o homem, o ser humano Hermano, que nos merece inquestionável respeito, e até admiração.


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