"O que é mais humano e nos corre nas veias": o fado de Ana Margarida Prado e João Monge
Entrevistas - Agosto 07, 2024
“Laço” é o surpreendente disco de estreia de uma voz amadurecida,
escrito por um dos poetas mais celebrados no cancioneiro português dos
últimos 40 anos.
Entre sardinhas e vinho, falámos com ambos.
João Monge (JM) — Já ouviste a rodela?
…o disco? Claro! Não imagino vir para aqui sem ouvir a rodela.
JM — Não serias o primeiro.
Acontece muito?
JM — Às vezes acho que já ninguém ouve nada.
Na verdade, ouvi em streaming. Só há pouco recebi a rodela e percebi que tem uma faixa escondida. O que me diz que pensaram nisto como uma rodela e não como uma playlist.
JM — Eh pá, eu, para ser sincero, não penso em nada.
Nem tudo é premeditado, é isso?
JM — Isso. Os mecanismos do mercado não me dizem nada. Nunca disseram. Sou do tempo em que a malta estava a gravar em estúdio, aparecia o AR da editora e perguntava: “Então qual é o single?” E eu pensava: estes gajos fazem com cada pergunta! Em vez de me perguntarem quem é que fez harmonia, como é que vamos levar isto para palco… qual é o single?! Quero lá saber! O single é um guarda-sol, põe todas as outras canções à sombra.
Preferes pensar no todo, na obra.
JM — Sim. E é uma chatice. Fazes um disco com 15 canções, depois as pessoas ouvem apenas uma na rádio até lhes furar o miolo. Pensa no Fausto, que morreu agora. Se perguntares a 20 pessoas por canções dele, todas te vão apontar as mesmas 5 ou 6, com sorte. Já aquela malta que tem discos dele em casa e os vai ouvindo como um todo, de vez em quando fica maravilhada com canções que nunca passaram em lado nenhum. Quando estou a escrever um disco, não penso em nada disso. A minha missão é escrever, depois haverá outro gajo que tem por missão vender. Eu não sou esse gajo.
Ana Margarida Prado (AMP) — Não pensaste tu, mas pensei eu. Essa ideia da faixa veio das minhas memórias de infância. Quando tinha um disco novo e ele chegava ao fim eu ficava à espera, a ver se se vinha lá mais alguma coisa oculta. Gosto dessa ideia de criar um disco como uma história que se conta, passo a passo, e que no fim ainda guarda um segredo para quem sabe esperar. Então sempre tive o sonho de fazer isto.
Como é que se encontraram?
AMP — Foi quando tive a ousadia de mandar um email ao João? Lembras-te?
JM — Não… Lembro-me que comi lulas recheadas. Só fixo as coisas importantes. Fui ter com ela a Campo de Ourique, depois de a ouvir não sei onde…
AMP — Ouviste-me em casa, que eu mandei-te uma gravação. Depois ligaste para irmos almoçar.
JM — Ah foi?! Bem, gostei muito do que ouvi, fui ter com ela, enfardei umas lulas recheadas deliciosas e acho que saiu aí o primeiro tema… não foi?
AMP — Não. A Rosa Brava vem mais tarde. Nessa altura tu desafiaste-me a gravar um disco inteiro para músicas do [Alfredo] Marceneiro. Isto foi há quase dez anos. E eu tive medo. Achei que na altura não tinha maturidade suficiente para aquilo.
Maturidade para gravar um disco ou para cantar Marceneiro?
AMP — Para cantar o Marceneiro. Mas pensando nisso, faltava-me maturidade para o disco também. Acho que já podia ter feito vários discos, mas também acho que este foi o momento certo para o fazer.
Sentiste-te madura, finalmente?
AMP — Acredito que as coisas acabam por chegar no momento certo. Acho que um fadista tem de viver da sua história, amadurecer aquilo que tem para contar, para ter verdade no seu canto.
Ainda é preciso sofrer para cantar fado?
AMP — Há quem diga que sim, que temos de passar maus bocados para sermos verdadeiros no que cantamos. Não acho que tenha de ser assim para toda a gente, nem saberia dizer. Mas no meu caso acredito que sim. Cada um tem as suas histórias, vive à sua maneira. Acho que é preciso caminho para chegar plenamente ao fado.
E o teu foi sofrido.
AMP — Sim. Não me quero expor, não preciso disso para justificar nada. Digo apenas que tive uma história que foi traumática para mim, que precisei de vários anos para digerir e depurar. E que só quando consegui realmente resolver aquilo dentro de mim é que me senti preparada para fazer este disco.
Curiosidade: até aqui foste conhecida como Ana Margarida, porquê acrescentar Prado?
AMP — Porque fui obrigada. Enfim, confesso que já há algum tempo achava que o meu nome precisava de alguma coisa, há anos que falava nisso. Mas fui obrigada, na verdade. Houve uma rapariga que registou o nome Ana Margarida como marca e me intimou a mudar.
O teu nome foi registado como marca?
AMP — Verdade.
Não imaginava que fosse possível.
AMP — Pois, imagina. Prado é um nome que acabou por surgir como homenagem à minha mãe. Prado vem da terra onde a minha mãe nasceu.
Não faz parte do teu nome civil?
AMP — Chamo-me Ana Margarida da Fonseca Ferreira Pinto. Nada que achasse que funcionava. A minha mãe nasceu na Quinta do Prado [Fundão]. E como foi dela que herdei o dom de cantar, decidi usar Prado como apelido.
Bela história.
JM — Sim. Merecia que se fizesse um fado sobre isso.
Ela já te inspirou um disco cheio deles.
JM — Escrever para ela era uma coisa que eu queria muito.
Segundo a Ana conta no disco, a determinada altura — creio que nesse encontro com lulas recheadas — terás dito “apaixonei-me pela tua voz…”
JM — Foi mesmo.
Acontece-te com frequência?
JM — Não. Sou muito esquisito com vozes. E depois o fado tem o que eu mais adoro e o que eu mais odeio.
Comecemos pelo que mais odeias.
JM — Uma coisa que não suporto — mas não consigo mesmo ouvir — é o fado marialva. Quando misturam fados, touros e cavalos, apetece-me fugir. Mas isso tem a ver com a escrita. Do ponto de vista do canto, o que não suporto é quando o fadista diz “façam silêncio” e depois desata a berrar na sala. Uma coisa é circo, outra coisa é fado.
Foi isso que te apaixonou na voz da Ana, a contenção?
JM — Também, sim. Não sei se reparaste, mas ela canta 17 temas e não dá um grito. Quando falo em gritos não me refiro só ao ato histriónico. Às vezes é dizer uma coisa que deve dizer-se na intimidade como se estivesse a falar para o Estádio da Luz. Entendes o que quero dizer?
Creio que sim. Na Rosa Brava, tema de abertura, há apenas uma vez em que a Ana vai buscar uma nota lá acima.
JM — Isso! E é quanto basta. No Fado Menor, a tal faixa oculta, ela tem das interpretações que mais me arrepiaram até hoje. Meteu a cabeça na letra, lá da maneira dela, e… deixa-me dizer assim: só depois de passar pela voz dela é que a letra ficou realmente escrita.
Essa Rosa Brava já soa a canção biográfica. Foi escrito a pensar na voz, mas também na vida de quem a ia cantar?
JM — Claro!
AMP — [começa a cantar] “Não pedi contas à vida / Não sei o que ela me quer/ Sou como a rosa nascida / Canto porque tem de ser”. Quando li isto, senti que o João me conhecia, realmente. [e chegam as sardinhas e o vinho à mesa]
O primeiro fado que escreveste foi para a Mísia. Paixões Diagonais, 1999…
JM — Sim.
…e o primeiro disco inteiro foi para a Aldina Duarte, 2006.
AMP — Isso, o Crua.
É-te fácil escrever do ponto de vista de uma mulher?
JM — Deve ser uma coisa muito natural em mim. Escrevi quatro peças de teatro e em todas elas a protagonista é sempre uma mulher. Não sei se há uma escrita no feminino… acho que agora nem se pode dizer isto. Mas há um universo feminino que puxa muito por mim, para a escrita.
Lembro-me do António Zambujo falar de um projeto que tinham, de fazer um disco inteiro escrito do ponto de vista de uma mulher.
JM — É verdade. Isso parou. Mas era uma bela ideia. Tenho um outro disco, já muito antigo, que escrevi para as Vozes da Rádio, o Mulheres, que é só sobre mulheres.
Mas não é escrito só na voz de mulheres.
JM — Pois, é diferente. Tenho uma canção nesse disco que fala de uma notícia que eu estava a ouvir. Uma mulher que era funcionária têxtil, engravidou e foi despedida. E eu tinha de meter uma canção a falar dessa senhora, porque me meteu uma impressão do caraças. Imagino a minha mãe a ser penalizada, castigada de alguma forma, por me ter. É absurdo mas aconteceu, acontece. E há uma certa dor no feminino, com séculos e séculos de história, que não se apagou apesar de todas as conquistas, e que eu não tenho problema nenhum em sentir.
AMP — Foi aí que eu te conheci, confesso. Comecei logo a cantar letras desse disco.
JM — Isto no fundo, escrever canções é uma forma como outra qualquer de colecionar pessoas. E eu gosto de colecionar pessoas. Tenho tido essa felicidade ao longo da minha vida.
AMP — Laço significa isso também para mim. A ideia do que nos une, o laço que me uniu ao João, que nos uniu a músicos e compositores, o cuidado com o outro que sinto em tudo o que toda esta gente que entrou no disco fez. Com este laço também aprendi um pouco mais sobre colecionar pessoas.
O disco tem uma geometria perfeita entre fados tradicionais e temas originais…
JM — Ah é?!
AMP — Não foi por acaso.
JM — Estou a saber agora!
AMP — Foi propositado.
JM — Que eu só soubesse agora?!
AMP — Não, que fosse assim. Eu queria este equilíbrio entre o tradicional e o novo. Não queria cair naquela ideia de ser tudo inédito, inovador, ousado e tal. Queria muito ter fados tradicionais, mas mostrar que os dois lados convivem em mim, que por um lado tenho uma matriz fadista muito vincada — queria deixar isso bastante claro — mas ao mesmo tempo mostrar que sou versátil, que gosto de cantar outras coisas.
JM — Há vários aspetos do disco em que a grande responsável é a Ana, não sou eu. Este é claramente um deles. Creio que isto começou com uma almoçarada aqui em Cacilhas…
Lá está: fixas sempre as coisas importantes.
JM — Isso.
AMP — Estávamos aqui com o José Peixoto, a comer sardinhas.
Vocês comem muitas sardinhas.
JM — Exato [riso]. As sardinhas foram o arranque de construção do disco. As lulas foram o princípio de namoro. E sim, lembro-me de que, já nessa nessa altura, ela tinha essa preocupação de ter uma coisa e outra. E o que eu propus à Ana nessa sardinhada foi: eu trabalho à frente, escrevo as letras todas à frente e vou mandando. Depois, quem é que sabe de fado? São os fadistas. Então pegas naquilo que eu escrever e decides.
[Chegam mais sardinhas]
AMP — As palavras dele foram: eu escrevo o livro…
JM — E então eu ia escrever só com estruturas tradicionais, quadra, quintilha, sextilha, decassílabo, alexandrino, o que fosse. Depois entraria o departamento dela e dizia, “ah isto fica bem é no Fado Meia-Noite, ou no Fado Meia-Noite e Meia ou no que bem entenderam… E a proposta foi essa: se por acaso ela gostasse da letra e não encaixasse em nenhum fado tradicional do seu agrado, ficava selecionada para encomendarmos um original a um compositor que a gente escolhesse.
E como é que se fez essa colecção de pessoas?
AMP — Nós fomos falando sempre entre nós sobre quem gostaríamos de convidar. O Mário Laginha, por exemplo, era uma pessoa que eu sempre quis muito conseguir que compusesse para mim. A verdade é que quando pensei nele, imaginei aquele tipo de temas que ele fez com o João para o Camané…
E acabou a sair a harmonia mais arrevesada deste disco.
AMP — Claramente! E ainda bem! Acho que isso aconteceu porque o contacto foi feito pelo José Peixoto e isso poder tê-lo levado a imaginar outras paisagens. E ficou maravilhoso. Mesmo se minha expectativa inicial fosse mais nessa linha do que eles fizeram para o Camané, para o Helder Moutinho…
Ou para o Zambujo.
JM — Mas eu fiz alguma coisa com o Laginha para o Zambujo?!
Se não fizeram, enganaram toda a gente. Foram nomeados para um Grammy e tudo.
JM — Ah! O “Sem Palavras”… Verdade! Gosto muito de trabalhar com o Laginha. Acho que ele é um compositor de fados do outro mundo. Depois é aquele gajo que tem a naturalidade e a simplicidade dos génios. Podia estar aqui sentado connosco, de volta de sardinhas e fados, e depois ir para casa trabalhar Rachmaninov. Não tem fronteiras na cabeça.
AMP — O Mário foi de uma generosidade incrível. Quis vir a estúdio ensaiar connosco, dar os seus conselhos. Quando finalmente ficou bom, como ele tinha imaginado, dançámos em estúdio. Ele dizia que o tema tinha de ser dançável e no fim ficou. Por isso dançámos. O Vitorino foi outra pessoa de uma generosidade incrível.
O Vitorino compôs umas saias. De quem foi essa ideia?
AMP — Mais uma vez, vem da minha mãe. O João sabia disso, que eu adoro cantar modas da Beira Baixa, e ali as fronteiras são ténues. Esta nem foi preciso eu encomendar.
JM — Eu da Beira Baixa não pesco muito, então decidi fugir para o Alto Alentejo e escrever umas saias. Depois pedi ao Vitorino para musicar.
AMP — O Vitorino mandou a música e no início da gravação que nos enviou com ele a cantar, pede desculpa e diz qualquer coisa como “isto está mal tocado, mal cantado, está acabado de sair do forno, ainda queima na boca”. Achei aquilo delicioso.
JM — E no dia do lançamento do disco lá estavam o Laginha e o Vitorino na primeira fila. Isto parece pouco, mas isto é que é importante.
Colecionar pessoas.
JM — Colecionar pessoas.
Como surge o “Café” [composição do próprio João Monge] no meio disso tudo?
JM — Eh pá, enganei-me.
AMP — E essa já saiu depois do primeiro lote. Eu disse-lhe que faltava ali um tema ou dois com refrão. Depois escreveu a letra e a música e ficou tão boa que não havia volta a dar.
JM — Acontece-me com muita frequência escrever ao computador com a guitarra no colo. Vou escrevendo, cantando, tocando para ver como aquilo encaixa. Entretanto, eu tinha dado essa letra a um compositor em quem tínhamos pensado…
AMP — Isso nunca me disseste!
JM — Eu também não te digo tudo. Bom, entretanto a música saiu-me a escrever a letra e então liguei a esse compositor e disse: olha lá, o que é que tu achas? E o gajo disse que achava que estava bom. Mas enfim, é amigo, não se pode confiar.
AMP — E durante algum tempo achámos que essa é que iria ser o guarda-sol do disco.
Foi difícil escolher o single?
AMP — Foi, felizmente foi. E isso é das coisas que mais me orgulha neste disco.
[Chegam mais sardinhas]
Ouvimos-te a rir nesse tema.
AMP — “…rir sem saber de quê, como os embriagados…” [ri-se outra vez]. Saiu assim, onde se falava em rir, senti verdadeiramente vontade de rir. Não posso fazer melhor elogio ao texto. O João ouviu isso e fez questão que ficasse. Todos estes inputs foram fantásticos para eu tentar ser o mais verdadeira possível em estúdio. Porque hoje em dia há muito esta tendência para picar tudo, para ficar tudo perfeito. E depois aquilo não arrepia, de tão perfeito que fica. Estas partilhas com o João fizeram com que eu me sentisse mais segura a ser mais imperfeita.
JM — Apesar de ser o primeiro disco, ela tem uma identidade musical enorme. Tem uma coisa que me agrada… enfim, tem várias, mas a primeira coisa em que pensei quando a ouvi foi “parece que estou a ouvir rádio AM!” Parece que estou a ouvir uma voz de 1950. Incrível! Acho que é uma voz antiga.
AMP — Podia até ficar preocupada com isso de me chamarem antiga. Mas acho que é bonito.
Soa-me a grande elogio.
AMP — A mim também.
Estas 17 canções são tudo o que foi escrito?
JM — Não ficou nada na gaveta. Continuo a não ter nada na gaveta. Por exemplo, agora não estou a escrever nada. A última coisa que escrevi foi a última letra para o disco da Ana.
Faz falta o pousio?
JM — Faz falta o impulso. Sei lá, daqui a bocado chego a casa, liga-me alguém a desafiar e pronto. Funciono muito por impulso.
Não há uma disciplina?
JM — Não. Tenho disciplina com a leitura, com a escrita não. Gostaria que quem ouvisse uma letra minha tivesse a sensação de que eu demorei tanto tempo a escrevê-la como se demorou a cantá-la. Entendes?
Ser um poeta dos três minutos.
JM — Mais ou menos isso. Gostava que ficasse a sensação de que tudo saiu como uma brisa. Sobretudo no fado. Porque há temas que me são mais confortáveis de escrever em fado do que noutro tipo de música
Por exemplo…
JM — A morte.
Porquê?
JM — Porque sei que se escrever sobre a morte, estes gajos, os fadistas, matam-me com o cantar. E é isso que eu quero. Enquanto que se for um gajo desses que enche a MEO Arena, às tantas ainda me escangalho a rir.
O fado precisa de quê? Sobriedade?
JM — É por aí. Não é ser sisudo. Não pode é ser circo. Tentamos meter no fado tudo o que é mais humano e nos corre nas veias, que é mais transversal à humanidade. A morte, o luto, a perda, a saudade, a distância, o amor e o desamor, tudo isso são grandes temáticas do fado. A dificuldade está em escrever sobre isso tentando não recorrer à linguagem de meados do século XX. Percebes o que quero dizer?
Não completamente.
JM — Como é que se fala disto hoje sem soar a plástico e sendo genuíno e franco ao mesmo tempo? O fado tem esse desafio. Escrevi para a Ana sobre a saudade, a perda, sobre o desencontro. E ela deu sentido a tudo isso.
A Ana vai daqui hoje com uma mala cheia de piropos.
AMP — Estou a adorar, continuem.
JM — Para mim é difícil escrever para fado.
AMP — Mas não é o que mais gostas?
JM — Não posso dizer que seja. Mas preciso disto. Por exemplo, agora acabei de escrever para ti, quando é que vou voltar a escrever para fado? Quando estiver à rasca para escrever para fado.
O que é isso de estar à rasca para escrever?
JM — É virem-me estas temáticas à cabeça e precisar de arrumar isso na voz de alguém que cante isto por inteiro, que cante isso… olha, como a Ana canta.
E sai mais um piropo.
Parece que o João te fez todas as vontades, Ana.
AMP — Não me posso queixar. Por exemplo, disse-lhe também que queria muito ter uma marcha neste disco. E ele, que é um querido, aceitou. O Pedro de Castro fez primeiro a melodia e depois o João escreveu a letra. Já aceitou quase todos os meus pedidos.
JM — Quase todos?!
AMP — No Maria Matos, para cantar com o Laginha, além do tema que ele compôs, queria outro. E vou dizer-te outra coisa: há um fado que eu não gravei, mas ficou-me aqui atravessado. Faltam-me um fadão neste disco…
JM — Já te tinha dito que ela era chata, certo?
Julgo que sim.
AMP — Falta-me um Fado Tango, que é dos fados que eu mais gosto de cantar e que..
JM — Mas eu já escrevi a letra ou não?
AMP — Ainda não.
JM — Só me arranjas trabalho. Temos de pensar nisso. O que precisas decidir é o que vais cantar no concerto, se é o disco apenas ou se vais meter entulho.
AMP — Não quero entulho. Mas se não me escreveres um tango, vou ter de meter lá outro tango.
JM — Isso é o síndrome do azulejo amarelo.
AMP — Quê?!
JM — É simples. Imagina que tens uma cozinha toda forrada de azul e apenas com um azulejo amarelo. A tua cozinha é linda de morrer e não há visita nenhuma que entre e não pergunte pelo azulejo amarelo. Há discos onde as letras são todas minhas menos uma e depois só se fala dela. “Porquê apenas uma letra de outra pessoa?” É o que vai acontecer.
AMP — Adorava poder cantar um Fado Tango só com o Laginha ao piano.
JM — Pronto, é isto há quatro anos. O disco começou com dez temas, já vai com 17 e agora quer que eu faça mais um.
AMP — É um concerto. Se fossem só 10 temas tinha de acrescentar mais entulho. Para mim, este disco sempre foi pensado como um concerto. Se é para continuar a ser “Ana Margarida Prado canta João Monge”, preciso de um tango.
JM — [suspira] Olha… eu dou-te uma letra de tango, que eu escrevi, já foi cantada…
AMP — Hum… qual? Não sei, tenho de ver. Já me ouviste cantar um tango?
JM — Não me lembro.
AMP — Vou mandar-te uma gravação.
JM — [suspiro enfático] O pior é que eu acabo sempre a fazer o que ela quer, percebes?
[Numa das mesas ao lado começam a cantar os “Parabéns a Você”]
JM — Olha, canta esta e diz que a letra é minha.
João Monge (JM) — Já ouviste a rodela?
…o disco? Claro! Não imagino vir para aqui sem ouvir a rodela.
JM — Não serias o primeiro.
Acontece muito?
JM — Às vezes acho que já ninguém ouve nada.
Na verdade, ouvi em streaming. Só há pouco recebi a rodela e percebi que tem uma faixa escondida. O que me diz que pensaram nisto como uma rodela e não como uma playlist.
JM — Eh pá, eu, para ser sincero, não penso em nada.
Nem tudo é premeditado, é isso?
JM — Isso. Os mecanismos do mercado não me dizem nada. Nunca disseram. Sou do tempo em que a malta estava a gravar em estúdio, aparecia o AR da editora e perguntava: “Então qual é o single?” E eu pensava: estes gajos fazem com cada pergunta! Em vez de me perguntarem quem é que fez harmonia, como é que vamos levar isto para palco… qual é o single?! Quero lá saber! O single é um guarda-sol, põe todas as outras canções à sombra.
Preferes pensar no todo, na obra.
JM — Sim. E é uma chatice. Fazes um disco com 15 canções, depois as pessoas ouvem apenas uma na rádio até lhes furar o miolo. Pensa no Fausto, que morreu agora. Se perguntares a 20 pessoas por canções dele, todas te vão apontar as mesmas 5 ou 6, com sorte. Já aquela malta que tem discos dele em casa e os vai ouvindo como um todo, de vez em quando fica maravilhada com canções que nunca passaram em lado nenhum. Quando estou a escrever um disco, não penso em nada disso. A minha missão é escrever, depois haverá outro gajo que tem por missão vender. Eu não sou esse gajo.
Ana Margarida Prado (AMP) — Não pensaste tu, mas pensei eu. Essa ideia da faixa veio das minhas memórias de infância. Quando tinha um disco novo e ele chegava ao fim eu ficava à espera, a ver se se vinha lá mais alguma coisa oculta. Gosto dessa ideia de criar um disco como uma história que se conta, passo a passo, e que no fim ainda guarda um segredo para quem sabe esperar. Então sempre tive o sonho de fazer isto.
Como é que se encontraram?
AMP — Foi quando tive a ousadia de mandar um email ao João? Lembras-te?
JM — Não… Lembro-me que comi lulas recheadas. Só fixo as coisas importantes. Fui ter com ela a Campo de Ourique, depois de a ouvir não sei onde…
AMP — Ouviste-me em casa, que eu mandei-te uma gravação. Depois ligaste para irmos almoçar.
JM — Ah foi?! Bem, gostei muito do que ouvi, fui ter com ela, enfardei umas lulas recheadas deliciosas e acho que saiu aí o primeiro tema… não foi?
AMP — Não. A Rosa Brava vem mais tarde. Nessa altura tu desafiaste-me a gravar um disco inteiro para músicas do [Alfredo] Marceneiro. Isto foi há quase dez anos. E eu tive medo. Achei que na altura não tinha maturidade suficiente para aquilo.
Maturidade para gravar um disco ou para cantar Marceneiro?
AMP — Para cantar o Marceneiro. Mas pensando nisso, faltava-me maturidade para o disco também. Acho que já podia ter feito vários discos, mas também acho que este foi o momento certo para o fazer.
Sentiste-te madura, finalmente?
AMP — Acredito que as coisas acabam por chegar no momento certo. Acho que um fadista tem de viver da sua história, amadurecer aquilo que tem para contar, para ter verdade no seu canto.
Ainda é preciso sofrer para cantar fado?
AMP — Há quem diga que sim, que temos de passar maus bocados para sermos verdadeiros no que cantamos. Não acho que tenha de ser assim para toda a gente, nem saberia dizer. Mas no meu caso acredito que sim. Cada um tem as suas histórias, vive à sua maneira. Acho que é preciso caminho para chegar plenamente ao fado.
E o teu foi sofrido.
AMP — Sim. Não me quero expor, não preciso disso para justificar nada. Digo apenas que tive uma história que foi traumática para mim, que precisei de vários anos para digerir e depurar. E que só quando consegui realmente resolver aquilo dentro de mim é que me senti preparada para fazer este disco.
Curiosidade: até aqui foste conhecida como Ana Margarida, porquê acrescentar Prado?
AMP — Porque fui obrigada. Enfim, confesso que já há algum tempo achava que o meu nome precisava de alguma coisa, há anos que falava nisso. Mas fui obrigada, na verdade. Houve uma rapariga que registou o nome Ana Margarida como marca e me intimou a mudar.
O teu nome foi registado como marca?
AMP — Verdade.
Não imaginava que fosse possível.
AMP — Pois, imagina. Prado é um nome que acabou por surgir como homenagem à minha mãe. Prado vem da terra onde a minha mãe nasceu.
Não faz parte do teu nome civil?
AMP — Chamo-me Ana Margarida da Fonseca Ferreira Pinto. Nada que achasse que funcionava. A minha mãe nasceu na Quinta do Prado [Fundão]. E como foi dela que herdei o dom de cantar, decidi usar Prado como apelido.
Bela história.
JM — Sim. Merecia que se fizesse um fado sobre isso.
Ela já te inspirou um disco cheio deles.
JM — Escrever para ela era uma coisa que eu queria muito.
Segundo a Ana conta no disco, a determinada altura — creio que nesse encontro com lulas recheadas — terás dito “apaixonei-me pela tua voz…”
JM — Foi mesmo.
Acontece-te com frequência?
JM — Não. Sou muito esquisito com vozes. E depois o fado tem o que eu mais adoro e o que eu mais odeio.
Comecemos pelo que mais odeias.
JM — Uma coisa que não suporto — mas não consigo mesmo ouvir — é o fado marialva. Quando misturam fados, touros e cavalos, apetece-me fugir. Mas isso tem a ver com a escrita. Do ponto de vista do canto, o que não suporto é quando o fadista diz “façam silêncio” e depois desata a berrar na sala. Uma coisa é circo, outra coisa é fado.
Foi isso que te apaixonou na voz da Ana, a contenção?
JM — Também, sim. Não sei se reparaste, mas ela canta 17 temas e não dá um grito. Quando falo em gritos não me refiro só ao ato histriónico. Às vezes é dizer uma coisa que deve dizer-se na intimidade como se estivesse a falar para o Estádio da Luz. Entendes o que quero dizer?
Creio que sim. Na Rosa Brava, tema de abertura, há apenas uma vez em que a Ana vai buscar uma nota lá acima.
JM — Isso! E é quanto basta. No Fado Menor, a tal faixa oculta, ela tem das interpretações que mais me arrepiaram até hoje. Meteu a cabeça na letra, lá da maneira dela, e… deixa-me dizer assim: só depois de passar pela voz dela é que a letra ficou realmente escrita.
Essa Rosa Brava já soa a canção biográfica. Foi escrito a pensar na voz, mas também na vida de quem a ia cantar?
JM — Claro!
AMP — [começa a cantar] “Não pedi contas à vida / Não sei o que ela me quer/ Sou como a rosa nascida / Canto porque tem de ser”. Quando li isto, senti que o João me conhecia, realmente. [e chegam as sardinhas e o vinho à mesa]
O primeiro fado que escreveste foi para a Mísia. Paixões Diagonais, 1999…
JM — Sim.
…e o primeiro disco inteiro foi para a Aldina Duarte, 2006.
AMP — Isso, o Crua.
É-te fácil escrever do ponto de vista de uma mulher?
JM — Deve ser uma coisa muito natural em mim. Escrevi quatro peças de teatro e em todas elas a protagonista é sempre uma mulher. Não sei se há uma escrita no feminino… acho que agora nem se pode dizer isto. Mas há um universo feminino que puxa muito por mim, para a escrita.
Lembro-me do António Zambujo falar de um projeto que tinham, de fazer um disco inteiro escrito do ponto de vista de uma mulher.
JM — É verdade. Isso parou. Mas era uma bela ideia. Tenho um outro disco, já muito antigo, que escrevi para as Vozes da Rádio, o Mulheres, que é só sobre mulheres.
Mas não é escrito só na voz de mulheres.
JM — Pois, é diferente. Tenho uma canção nesse disco que fala de uma notícia que eu estava a ouvir. Uma mulher que era funcionária têxtil, engravidou e foi despedida. E eu tinha de meter uma canção a falar dessa senhora, porque me meteu uma impressão do caraças. Imagino a minha mãe a ser penalizada, castigada de alguma forma, por me ter. É absurdo mas aconteceu, acontece. E há uma certa dor no feminino, com séculos e séculos de história, que não se apagou apesar de todas as conquistas, e que eu não tenho problema nenhum em sentir.
AMP — Foi aí que eu te conheci, confesso. Comecei logo a cantar letras desse disco.
JM — Isto no fundo, escrever canções é uma forma como outra qualquer de colecionar pessoas. E eu gosto de colecionar pessoas. Tenho tido essa felicidade ao longo da minha vida.
AMP — Laço significa isso também para mim. A ideia do que nos une, o laço que me uniu ao João, que nos uniu a músicos e compositores, o cuidado com o outro que sinto em tudo o que toda esta gente que entrou no disco fez. Com este laço também aprendi um pouco mais sobre colecionar pessoas.
O disco tem uma geometria perfeita entre fados tradicionais e temas originais…
JM — Ah é?!
AMP — Não foi por acaso.
JM — Estou a saber agora!
AMP — Foi propositado.
JM — Que eu só soubesse agora?!
AMP — Não, que fosse assim. Eu queria este equilíbrio entre o tradicional e o novo. Não queria cair naquela ideia de ser tudo inédito, inovador, ousado e tal. Queria muito ter fados tradicionais, mas mostrar que os dois lados convivem em mim, que por um lado tenho uma matriz fadista muito vincada — queria deixar isso bastante claro — mas ao mesmo tempo mostrar que sou versátil, que gosto de cantar outras coisas.
JM — Há vários aspetos do disco em que a grande responsável é a Ana, não sou eu. Este é claramente um deles. Creio que isto começou com uma almoçarada aqui em Cacilhas…
Lá está: fixas sempre as coisas importantes.
JM — Isso.
AMP — Estávamos aqui com o José Peixoto, a comer sardinhas.
Vocês comem muitas sardinhas.
JM — Exato [riso]. As sardinhas foram o arranque de construção do disco. As lulas foram o princípio de namoro. E sim, lembro-me de que, já nessa nessa altura, ela tinha essa preocupação de ter uma coisa e outra. E o que eu propus à Ana nessa sardinhada foi: eu trabalho à frente, escrevo as letras todas à frente e vou mandando. Depois, quem é que sabe de fado? São os fadistas. Então pegas naquilo que eu escrever e decides.
[Chegam mais sardinhas]
AMP — As palavras dele foram: eu escrevo o livro…
JM — E então eu ia escrever só com estruturas tradicionais, quadra, quintilha, sextilha, decassílabo, alexandrino, o que fosse. Depois entraria o departamento dela e dizia, “ah isto fica bem é no Fado Meia-Noite, ou no Fado Meia-Noite e Meia ou no que bem entenderam… E a proposta foi essa: se por acaso ela gostasse da letra e não encaixasse em nenhum fado tradicional do seu agrado, ficava selecionada para encomendarmos um original a um compositor que a gente escolhesse.
E como é que se fez essa colecção de pessoas?
AMP — Nós fomos falando sempre entre nós sobre quem gostaríamos de convidar. O Mário Laginha, por exemplo, era uma pessoa que eu sempre quis muito conseguir que compusesse para mim. A verdade é que quando pensei nele, imaginei aquele tipo de temas que ele fez com o João para o Camané…
E acabou a sair a harmonia mais arrevesada deste disco.
AMP — Claramente! E ainda bem! Acho que isso aconteceu porque o contacto foi feito pelo José Peixoto e isso poder tê-lo levado a imaginar outras paisagens. E ficou maravilhoso. Mesmo se minha expectativa inicial fosse mais nessa linha do que eles fizeram para o Camané, para o Helder Moutinho…
Ou para o Zambujo.
JM — Mas eu fiz alguma coisa com o Laginha para o Zambujo?!
Se não fizeram, enganaram toda a gente. Foram nomeados para um Grammy e tudo.
JM — Ah! O “Sem Palavras”… Verdade! Gosto muito de trabalhar com o Laginha. Acho que ele é um compositor de fados do outro mundo. Depois é aquele gajo que tem a naturalidade e a simplicidade dos génios. Podia estar aqui sentado connosco, de volta de sardinhas e fados, e depois ir para casa trabalhar Rachmaninov. Não tem fronteiras na cabeça.
AMP — O Mário foi de uma generosidade incrível. Quis vir a estúdio ensaiar connosco, dar os seus conselhos. Quando finalmente ficou bom, como ele tinha imaginado, dançámos em estúdio. Ele dizia que o tema tinha de ser dançável e no fim ficou. Por isso dançámos. O Vitorino foi outra pessoa de uma generosidade incrível.
O Vitorino compôs umas saias. De quem foi essa ideia?
AMP — Mais uma vez, vem da minha mãe. O João sabia disso, que eu adoro cantar modas da Beira Baixa, e ali as fronteiras são ténues. Esta nem foi preciso eu encomendar.
JM — Eu da Beira Baixa não pesco muito, então decidi fugir para o Alto Alentejo e escrever umas saias. Depois pedi ao Vitorino para musicar.
AMP — O Vitorino mandou a música e no início da gravação que nos enviou com ele a cantar, pede desculpa e diz qualquer coisa como “isto está mal tocado, mal cantado, está acabado de sair do forno, ainda queima na boca”. Achei aquilo delicioso.
JM — E no dia do lançamento do disco lá estavam o Laginha e o Vitorino na primeira fila. Isto parece pouco, mas isto é que é importante.
Colecionar pessoas.
JM — Colecionar pessoas.
Como surge o “Café” [composição do próprio João Monge] no meio disso tudo?
JM — Eh pá, enganei-me.
AMP — E essa já saiu depois do primeiro lote. Eu disse-lhe que faltava ali um tema ou dois com refrão. Depois escreveu a letra e a música e ficou tão boa que não havia volta a dar.
JM — Acontece-me com muita frequência escrever ao computador com a guitarra no colo. Vou escrevendo, cantando, tocando para ver como aquilo encaixa. Entretanto, eu tinha dado essa letra a um compositor em quem tínhamos pensado…
AMP — Isso nunca me disseste!
JM — Eu também não te digo tudo. Bom, entretanto a música saiu-me a escrever a letra e então liguei a esse compositor e disse: olha lá, o que é que tu achas? E o gajo disse que achava que estava bom. Mas enfim, é amigo, não se pode confiar.
AMP — E durante algum tempo achámos que essa é que iria ser o guarda-sol do disco.
Foi difícil escolher o single?
AMP — Foi, felizmente foi. E isso é das coisas que mais me orgulha neste disco.
[Chegam mais sardinhas]
Ouvimos-te a rir nesse tema.
AMP — “…rir sem saber de quê, como os embriagados…” [ri-se outra vez]. Saiu assim, onde se falava em rir, senti verdadeiramente vontade de rir. Não posso fazer melhor elogio ao texto. O João ouviu isso e fez questão que ficasse. Todos estes inputs foram fantásticos para eu tentar ser o mais verdadeira possível em estúdio. Porque hoje em dia há muito esta tendência para picar tudo, para ficar tudo perfeito. E depois aquilo não arrepia, de tão perfeito que fica. Estas partilhas com o João fizeram com que eu me sentisse mais segura a ser mais imperfeita.
JM — Apesar de ser o primeiro disco, ela tem uma identidade musical enorme. Tem uma coisa que me agrada… enfim, tem várias, mas a primeira coisa em que pensei quando a ouvi foi “parece que estou a ouvir rádio AM!” Parece que estou a ouvir uma voz de 1950. Incrível! Acho que é uma voz antiga.
AMP — Podia até ficar preocupada com isso de me chamarem antiga. Mas acho que é bonito.
Soa-me a grande elogio.
AMP — A mim também.
Estas 17 canções são tudo o que foi escrito?
JM — Não ficou nada na gaveta. Continuo a não ter nada na gaveta. Por exemplo, agora não estou a escrever nada. A última coisa que escrevi foi a última letra para o disco da Ana.
Faz falta o pousio?
JM — Faz falta o impulso. Sei lá, daqui a bocado chego a casa, liga-me alguém a desafiar e pronto. Funciono muito por impulso.
Não há uma disciplina?
JM — Não. Tenho disciplina com a leitura, com a escrita não. Gostaria que quem ouvisse uma letra minha tivesse a sensação de que eu demorei tanto tempo a escrevê-la como se demorou a cantá-la. Entendes?
Ser um poeta dos três minutos.
JM — Mais ou menos isso. Gostava que ficasse a sensação de que tudo saiu como uma brisa. Sobretudo no fado. Porque há temas que me são mais confortáveis de escrever em fado do que noutro tipo de música
Por exemplo…
JM — A morte.
Porquê?
JM — Porque sei que se escrever sobre a morte, estes gajos, os fadistas, matam-me com o cantar. E é isso que eu quero. Enquanto que se for um gajo desses que enche a MEO Arena, às tantas ainda me escangalho a rir.
O fado precisa de quê? Sobriedade?
JM — É por aí. Não é ser sisudo. Não pode é ser circo. Tentamos meter no fado tudo o que é mais humano e nos corre nas veias, que é mais transversal à humanidade. A morte, o luto, a perda, a saudade, a distância, o amor e o desamor, tudo isso são grandes temáticas do fado. A dificuldade está em escrever sobre isso tentando não recorrer à linguagem de meados do século XX. Percebes o que quero dizer?
Não completamente.
JM — Como é que se fala disto hoje sem soar a plástico e sendo genuíno e franco ao mesmo tempo? O fado tem esse desafio. Escrevi para a Ana sobre a saudade, a perda, sobre o desencontro. E ela deu sentido a tudo isso.
A Ana vai daqui hoje com uma mala cheia de piropos.
AMP — Estou a adorar, continuem.
JM — Para mim é difícil escrever para fado.
AMP — Mas não é o que mais gostas?
JM — Não posso dizer que seja. Mas preciso disto. Por exemplo, agora acabei de escrever para ti, quando é que vou voltar a escrever para fado? Quando estiver à rasca para escrever para fado.
O que é isso de estar à rasca para escrever?
JM — É virem-me estas temáticas à cabeça e precisar de arrumar isso na voz de alguém que cante isto por inteiro, que cante isso… olha, como a Ana canta.
E sai mais um piropo.
AMP — Estou a apontá-los todos.
AMP — Não me posso queixar. Por exemplo, disse-lhe também que queria muito ter uma marcha neste disco. E ele, que é um querido, aceitou. O Pedro de Castro fez primeiro a melodia e depois o João escreveu a letra. Já aceitou quase todos os meus pedidos.
JM — Quase todos?!
AMP — No Maria Matos, para cantar com o Laginha, além do tema que ele compôs, queria outro. E vou dizer-te outra coisa: há um fado que eu não gravei, mas ficou-me aqui atravessado. Faltam-me um fadão neste disco…
JM — Já te tinha dito que ela era chata, certo?
Julgo que sim.
AMP — Falta-me um Fado Tango, que é dos fados que eu mais gosto de cantar e que..
JM — Mas eu já escrevi a letra ou não?
AMP — Ainda não.
JM — Só me arranjas trabalho. Temos de pensar nisso. O que precisas decidir é o que vais cantar no concerto, se é o disco apenas ou se vais meter entulho.
AMP — Não quero entulho. Mas se não me escreveres um tango, vou ter de meter lá outro tango.
JM — Isso é o síndrome do azulejo amarelo.
AMP — Quê?!
JM — É simples. Imagina que tens uma cozinha toda forrada de azul e apenas com um azulejo amarelo. A tua cozinha é linda de morrer e não há visita nenhuma que entre e não pergunte pelo azulejo amarelo. Há discos onde as letras são todas minhas menos uma e depois só se fala dela. “Porquê apenas uma letra de outra pessoa?” É o que vai acontecer.
AMP — Adorava poder cantar um Fado Tango só com o Laginha ao piano.
JM — Pronto, é isto há quatro anos. O disco começou com dez temas, já vai com 17 e agora quer que eu faça mais um.
AMP — É um concerto. Se fossem só 10 temas tinha de acrescentar mais entulho. Para mim, este disco sempre foi pensado como um concerto. Se é para continuar a ser “Ana Margarida Prado canta João Monge”, preciso de um tango.
JM — [suspira] Olha… eu dou-te uma letra de tango, que eu escrevi, já foi cantada…
AMP — Hum… qual? Não sei, tenho de ver. Já me ouviste cantar um tango?
JM — Não me lembro.
AMP — Vou mandar-te uma gravação.
JM — [suspiro enfático] O pior é que eu acabo sempre a fazer o que ela quer, percebes?
[Numa das mesas ao lado começam a cantar os “Parabéns a Você”]
JM — Olha, canta esta e diz que a letra é minha.
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