Uma meretriz na Mouraria: as origens do modo de vida a que chamamos fado
History of Fado - Fevereiro 11, 2025


No coração da Mouraria, a dois passos da Rua dos Cavaleiros, uma casa branca primorosamente recuperada destaca-se do casario que a rodeia. O que era originalmente um edifício residencial dividido em seis frações miseráveis – os arquitetos responsáveis pelo projeto de reabilitação (ateliê de José Adrião) referem que encontraram “diferentes problemas estruturais e escassas condições para habitar, nomeadamente deficientes instalações sanitárias e espaços úteis manifestamente exíguos” – é hoje um equipamento cultural moderno e um caso exemplar de recuperação do património edificado.
Trata-se da Casa da Severa, onde terá morrido aquela a quem é atribuída a criação do fado de Lisboa. A falta de condições da casa é de certo modo um espelho da vida da célebre fadista, o que por sua vez diz também muito acerca das origens deste género musical; inversamente, o novo projeto, luminoso e arejado, serve de metáfora ao rejuvenescimento que o fado conheceu nos últimos anos.
Uns magníficos olhos peninsulares
Filha de um homem cigano chamado Severo e de uma prostituta conhecida por ‘A Barbuda’, Maria Severa Onofriana nasceu na Madragoa, onde a sua mãe tinha uma taberna, em 1820.
“Era uma mulher sobre o trigueiro, magra, nervosa, e notável por uns magníficos olhos peninsulares. Em cima de uma mesa de jogo estava pousada uma guitarra, a companheira inseparável dos seus triunfos; e pendente da parede (sacrilégio vulgar nas casas daquela ordem) uma péssima gravura, representando o Senhor dos Passos da Graça!”, escreveu Luís Augusto Palmeirim no livro Os excêntricos do meu tempo.
Entre os amantes da Severa contava-se D. Francisco de Paula de Portugal e Castro, 13.º Conde de Vimioso, que a levava à tourada. Graças a essa ligação – mas também à sua voz e aos seus dotes com a guitarra, claro – a fadista conquistou notoriedade, atuando pelas tabernas dos bairros da cidade.
Origens árabes e populares
Eis, plasmadas na figura trágica da Severa, as origens do fado lisboeta: um género popular e sofrido, mas cujo encanto não deixa indiferentes as classes altas. Palmeirim, no seu encontro com a fadista, não deixou de notar a inusitada presença da “péssima gravura” do Senhor dos Passos da Graça na parede, um testemunho da religião naquele antro de licenciosidade, mas essa é apenas outra marca dos conflitos e contradições que foram forjando o fado.
Talvez não seja também mera coincidência o facto de este género musical ter nascido nas ruelas da Mouraria. De facto, tudo aponta para que a tradição árabe tenha constituído uma forte influência – bastaria recordar, por exemplo, que foram os mouriscos que trouxeram o oud (instrumento de cordas da família do alaúde e precursor da guitarra) para a Península Ibérica por volta do ano 800.
Segundo o estudioso da cultura árabe Adalberto Alves, a palavra fado vem justamente do árabe hadû, que significaria “cantilena de caravana”. “O fado é uma música urbana originária da antiga mouraria de Lisboa, a partir do canto árabe, e que só pôde popularizar-se e desenvolver-se depois do fim da Inquisição (1821)”, escreveu no Dicionário de Arabismos da Língua Portuguesa.
E continua: “O traje tradicional é escuro usando os homens um lenço ao pescoço e as mulheres um xaile, ambos de reminiscências mouriscas, tal como os instrumentos de acompanhamento, a guitarra e a viola, de ancestralidade muçulmana, enquanto desenvolvimentos do alaúde; exprime, predominantemente, nostalgia, saudade e destino (maktub!= está escrito!); sorte; fortuna; fatalidade; o fado está temática e morfologicamente aparentado com vários modos musicais do mundo muçulmano”, conclui o autor.
No limiar da legalidade
O ADN ferozmente popular do fado manteve-se pelo século XX adentro. E encontra-se resumido na pintura O Fado, de José Malhoa, terminada em 1910. Foi precisamente no bairro da Mouraria que Malhoa encontrou o casal protagonista do seu quadro: “Ela, a Adelaide da Facada, era uma prostituta; ele, o Amâncio, era um fadista e criminoso, um tipo extremamente turbulento, passava a vida preso”, como explicou em 2017 Carlos Branco Ferreyra, cirurgião de medicina geral e curador da exposição O mais profundo é a pele. Coleção de tatuagens 1910-1940, que teve lugar no Instituto de Medicinal Legal e Ciências Forenses.
“Originalmente, a Adelaide da Facada aparecia com as tatuagens que tinha no braço. Mas, quando ele terminou a pintura, o Rei D. Manuel II foi ver o quadro ao estúdio dele e disse-lhe: ‘Isto é uma vergonha, é tão feio, tire lá isso!’”. O pintor acolheu a sugestão real e repintou as tatuagens que havia no braço da prostituta. Todas menos uma, a mais discreta de todas: cinco pontos, que representam as cinco chagas de Cristo ou, em alternativa, uma pessoa presa entre as quatro paredes.
“Há uma associação recorrente entre o criminoso, o tatuado, a meretriz, o fado e a taberna”, notava na altura Carlos Branco.
O drama de todos os dias Mas há algo que parece não mudar: o sentimento de “nostalgia, saudade e destino” que referia Adalberto Alves. Seja a origem da palavra latina (fatum, como apontam as enciclopédias) ou árabe (hadû, como advoga o arabista), parece indiscutível que o fado está ligado à fatalidade.