Duarte - Venham mais vinte 2004-2024
Discos - Fevereiro 18, 2025

Olha-se para trás, faz-se contas àquilo que se concretizou e àquilo que ficou por concluir, toma-se uma consciência mais clara do caminho que se foi percorrendo, percebendo melhor aquilo que levou do ponto A até ao B, ao C e a todos os outros que o alfabeto permita nomear.
Com o fadista Duarte aconteceu o mesmo, ao ver aproximar-se a marca dos 20 anos de carreira. Só que, no seu caso muito particular, o balanço que decidiu empreender assume um duplo sentido. Na verdade, mais até do que um olhar para trás e uma celebração do caminho que fez dele uma das mais notáveis vozes do fado de hoje, aquilo que o move em Venham Mais Vinte 2004-2024 é uma mirada dirigida para a frente. O balanço, aqui, é sobretudo equivalente ao momento de dar uns passos atrás, ganhar espaço para a corrida e saltar em frente. Assumindo, talvez mais do que nunca, o risco desse salto. A experiência tem também destas coisas – minimiza as incertezas, aguça a ousadia, ajuda a uma definição mais inteira de quem se é, sem medo das opiniões de terceiros e sem o peso de querer adivinhar o que outras cabeças gostariam que fossem os passos seguintes.
Venham Mais Vinte, numa alusão evidente a José Afonso, é também um título feito dessa mesma vontade de imaginar que virá depois, sem pensar demasiado naquilo que já foi – porque o passado, quer queiramos quer não, carregamo-lo sempre connosco. E é, em vez da habitual celebração e do costumeiro “o melhor de”, um disco de risco assumido. Em vez de comprazimento, Duarte quis a ousadia. Em vez de dar palmadinhas nas costas de si mesmo, Duarte quer antes empurrar-se e ver onde vai cair.
Por isso, até quando viaja ao passado, não é para o deixar intacto. Em Venham Mais Vinte, reencontramos dois dos temas mais marcantes destas suas duas décadas nos discos (a estreia, Fados Meus, é de 2004), nos palcos e nas casas de fados, vemo-nos de novo perante “Reviravolta” e “Maria da Solidão”. Só que olhados com as lentes do presente (e, quem sabe, do futuro): “Reviravolta” mantém a sua toada (rítmica e melódica popular), mas é esculpido agora por programações electrónicas de Mema e uma guitarra eléctrica que irrompe indomada pela canção, abrindo-a para novos sentidos. “Maria da Solidão” volta ao ninho, reúne-se de novo ao seu criador original, num belíssimo dueto com Vitorino, dois alentejanos a cantarem uma solidão feminina embalada por um piano, tocado por Filipe Raposo, que é todo um belo tratado em melancolia.
Sem qualquer tipo de calculismo (tão presente na música que hoje se produz), Duarte mostra-se no fado e fora dele, num universo musical amplo e pessoal, no qual tanto cabem guitarras eléctricas como harpas, programações electrónicas como acordeões, além das inevitáveis cordas do fado (guitarra portuguesa, viola e baixo). E tanto ciranda o fado a rasar o tango (em “Likes”) quanto a bossa nova segundo o modelo de Tom Jobim (em “Obrigado”, com João Pitta e Pedro Segundo), tanto visita os ecos da folk norte-americana (em “Estado Limite”) quanto se alinha com a música tradicional portuguesa (em “Não Importou que Ficasse”, com Filipe Raposo) ou arrebata numa interpretação esplendorosa do Fado Menor do Porto, voz e contrabaixo numa lenta dança a lembrar o universo de José Mário Branco (em “Meus Olhos que por Alguém”). E, claro, “Do Vagar”, verbo definidor do modo de encarar os dias no Alentejo e também mote para Évora 2027 – Capital Europeia da Cultura, redescobrimos, ainda e sempre, a sua umbilical ligação ao cante alentejano, partilhada com Ricardo Ribeiro, Pedro Calado e Grupo de Cantares de Évora.
Em Venham Mais Vinte, Duarte volta a cantar sobre a vacuidade da cultura contemporânea em “Likes”, apontando o dedo a uma indústria cultural (e musical, em específico) mais preocupada em avolumar likes e seguidores do que em criar um discurso artístico relevante; canta um “Obrigado” (letra de Cláudia Lucas Chéu) a quem lhe estragou a capacidade de amar, consequência (temporária) de algum amor caído em desgraça; canta o irónico despeito, escrito por João Carlos Barros, de quem não se poupa a, com a elegância possível, mandar o seu antigo objecto de amor para o diabo que a carregue (as emoções nem sempre são as mais elevadas e a raiva, não finjamos que não, faz parte das nossas vidas e deve ter lugar na música).
Gonçalo Frota