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Gisela João: "Honestamente cheguei a pensar que ia deixar a música..."

Entrevistas - Fevereiro 26, 2025
Cantora fala do disco 'Inquieta', confessa as suas dores, lembra o início da carreira e diz que já pensou desistir

Não há palavra que melhor pudesse traduzir a personalidade da Gisela João do que o título deste disco: 'Inquieta'. Como é que o apresentaria?

(risos). Só quem me conhece muito bem sabe que eu sou uma pessoa muito inquieta e este disco é mais uma representação minha. Uma das grandes lutas da minha vida é tentar garantir a mim própria que fiz o que me era possível para viver a minha liberdade e conseguir instigar os outros a serem livres e a lutarem pela sua própria liberdade. Para mim é quase uma missão de vida e este disco é uma imagem disso.

Já disse que passou por tempos difíceis. Voltou a reencontrar o seu caminho?

Depois da pandemia o mundo mudou muito e nesta indústria da música mudou ainda mais. Em 2022 eu não sabia o que ia fazer. Honestamente cheguei a pensar que ia deixar a música e dedicar-me a outra coisa qualquer. Aquele período foi muito sombrio para mim e não há nada como nos sentirmos felizes.

E naquele período não se sentia feliz?

Não, mas este disco voltou a trazer-me a felicidade.

Este disco é uma homenagem ao 25 de Abril, um marco na nossa história à qual todos devemos reconhecimento. Esta foi a forma da Gisela saldar a sua 'dívida'?

Desde que me conheço que a liberdade é uma coisa que defendo com unhas e dentes, mas perante as notícias que nos envolvem e que nos chegam até do nosso bairro, eu precisava de fazer ouvir a minha voz. Às vezes as pessoas andam meio dormentes e sem forças para lutar e isso estava a acontecer-me. Este disco faz-me sentir agora que tenho voz e que tenho resposta para aquelas coisas hediondas que às vezes vou ouvindo ou que vou vendo acontecer. Sinto que falo por mim e por todos.

Pela exposição e pela visibilidade que tem, um artista deve estar mais inquieto do que qualquer outro cidadão, precisamente por poder chamar a atenção dos outros?

Não. Acho isso até meio perigoso. Ninguém pode criar obrigado. Eu enquanto artista, por ter um espaço público para falar, gosto de criar da forma mais livre possível.

Como é que foi pegar em canções tão emblemáticas de Zeca Afonso, Sérgio Godinho, José Mário Branco ou Paulo de Carvalho e torná-las suas?

Foi incrível, porque são músicas que conheço desde que me lembro de existir. São músicas que sempre falaram comigo e que eu precisava de gravar porque o mundo precisa delas. E aconteceu uma coisa muito engraçada. Geralmente ir para estúdio é algo que me deixa muito nervosa e insegura, mas com este disco foi muito diferente, porque fui para estúdio muito feliz.

Mas na hora de gravar, estas canções não pesaram?

Claro que senti o peso de gravar estes autores, que para mim são poetas, mas também não pensei muito nisso. A mim o que me interessa são sempre as histórias que estou a contar. A minha grande preocupação foi sempre: "o que é que este poema precisa que eu lhe dê?".

E o que é que a Gisela descobriu em si por conta destas gravações?


Confesso que para gravar o 'E Depois do Adeus' e porque eu não queria fazer uma imitação do Paulo de Carvalho, quando li e reli aquele texto percebi, a determinada altura, que ele estava a falar de mim. E eu acho que hoje em dia faz muita falta nós questionarmo-nos e percebermos o que andamos a fazer, quem deixámos para trás e para onde vamos.

A Gisela João passa sempre a imagem de uma pessoa alegre e humorada, mas depois há qualquer coisa na sua voz que transporta sempre muita dor, e este disco não é exceção. De onde é que vem essa dor?

Eu vou buscar à minha vida e à vida que vejo ser vivida à minha volta. Eu costumo dizer que disfarço muito bem. As pessoas têm a ideia de mim que estou sempre a rir e a brincar, mas isso não quer dizer que seja necessariamente verdade ou que seja o que vai cá dentro. Eu opto por rir porque é sempre bom e contagiante, mas cá dentro vai sempre muito barulho. Eu costumo dizer que nunca tenho silêncio na minha cabeça.

Mas isso por conta de quê?


Da vida. Eu sou uma pessoa muito inquieta e que tem sempre muitas perguntas a fazer. Vejamos bem como está o mundo à nossa volta e as notícias que recebemos todos os dias. Se não pusermos um sorriso na cara as coisas ficam ainda mais difíceis. Eu sinto que a grande estupidez da minha vida foram aqueles tempos em que era criança ou adolescente e ansiava pela vida adulta para poder fazer o que queria. Mas eu sabia que era exatamente o oposto, eu posso fazer o que quero é quando sou criança ou adolescente. Quando somos adultos já não podemos fazer o que queremos porque somos confrontados com uma luta diária.

Mas já disse que no seu fado não há espaço para o lamento e para a mulher desgraçadinha!


Sim. Desgraças infelizmente todos temos na vida, mas chateia-me que fosse sempre alocada à mulher a condição de desgraçadinha. Falar dos problemas é uma coisa, ser desgraçadinha é outra.

O fado ainda tem muito colado esse rótulo, quase como um anátema, sobre quem o canta?

Eu acho que temos muitas mulheres no fado que foram provando que isso não é assim.

Falava da sua infância e adolescência. Passam agora 25 anos desde que começou a cantar fado em Barcelos. Como que sentimento é que hoje olha para aquela Gisela?


Com muito orgulho dela. Aquela miúda andava meio perdida, a tentar não se afogar, sem saber ainda muito bem por onde ir. Sabia que estava sozinha e que tinha de trabalhar muito. A verdade é que conseguiu se virar e descobrir o caminho dela. Hoje acho que o meu caminho é muito único e isso deixa-me muito orgulhosa.

Mas que memórias tem daquela fase?

Lembro-me de cantar a cappella noites inteiras sem músicos. Lembro-me de ter uns sapatos verdes que comprei com dinheiro que andei a juntar durante muito tempo, porque queria cantar com eles. Mas lembro-me de já estar na sala do restaurante a pensar que a luz não podia estar daquela forma ou como é que os músicos estavam vestidos. Lembro-me que não pensava só em cantar e que já pensava no todo, que as palavras cantadas precisavam de uma estética e de um ambiente. Lembro-me que quando me diziam que eu devia ir para Lisboa eu respondia até de forma muito violenta: "O que é que eu vou para lá fazer? estão lá os famosos todos!".

E hoje é uma dessas famosas!

Eu costumo dizer que sou famosa para os meus gatos. Eu chego a casa e eles estão à minha espera todos felizes por me verem (risos). Eu sou conhecida porque a minha profissão me traz isso mas eu sou uma pessoa como as outras.

No disco 'Aurora' dizia que o tempo estava a passar muito depressa. Está mais apaziguada com o tempo?

Isso é uma coisa que me consome. Ultimamente tenho pensado muito sobre o tema que não recuperamos. Há uma ideia errada de que é o tempo que passa. Mas não. Somos nós que vamos passamos.

Ainda acha que é a vida que a vive a si?

Eu acho que é muito fácil sermos vividos pela vida mas eu hoje acho que já me sinto mais senhora do meu tempo.

E o que é que faz do seu tempo, para além da música?

Eu estou sempre a criar coisas. Não sei viver sem ser a criar. Ainda para este disco, por exemplo, estive a criar merchandising, mas de vez em quando também ando por casa a tricotar, a bordar, a fazer crochê ou a desenhar. Se houver um dia em que eu não tenha nada para fazer é certo que vai ser um dia que vou começar a chatear toda a gente (risos).

E consegue arranjar tempo para ir a casa, a Barcelos?

Sim. Nos últimos tempos tenho conseguido bastante e é por isso que é muito bom termos algum controle sobre o tempo.

E neste momento a Gisela João já deve ser herói em Barcelos não?

Eu não posso falar pelos outros, mas posso dizer que sou muito acarinhada.

E como é que o núcleo mais restrito de família e amigos recebem a Gisela quando regressa a casa?

Há pouco tempo mostrava uma música a uma amiga minha que me dizia: "a gente até esquece que tu fazes estas coisas". Para elas eu sou a mesma Gisela de sempre.

E esse casamento sai ou não? [cantora namora com o músico Justin Stanton]

Eu não sei. Eu já me sinto casada (risos). Eu sei lá o que é que é estar casada.

Quando chegou ao fado disse que sentiu que "abanou as paredes da casa". Alguns anos depois que lugar acha que ocupa hoje no fado?

Não sei. Acho que essa pergunta não é para me fazer a mim. Acho que o meu lugar é muito meu. Fiz um caminho de desconstrução e sempre muito novo e vanguardista e isso deixa-me muito satisfeita.

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