Cristina Branco - Ulisses

“Meu sonho voa além da poesia”, os sonhos musicados de Cristina voam além de qualquer plataforma imaginável. Não é que o vento e o sal da poesia não viajem também, mas falta-lhes as velas indestrutíveis de Ulisses – indiscutivelmente [para este coração arrebatado em sete] o álbum português do ano.
Cristina Branco pisa, com sandálias
de desejo e voz de cereja, os segredos dos mais arrojados
cavaleiros-andantes. Pisa com ternura até espremer todo o cristal do
vinho. Ulisses é, como “quarto de danças”, um espelho virado para o mar. Completo, profundo e misteriosamente belo.
A
base é uma superfície sólida, um triângulo infinito: voz que vive numa
caixa de lápis de cor e de chocolates, guitarra portuguesa arranhada
com uma inacreditável paixão e o piano a arrepiar caminho entre as
nuvens [caminho bem feito desde os tempos agitados pelo
experimentalismo de Amália Rodrigues, que queria o piano no
fado, e o agora tolerante-momento]. E, por falar em deuses, Amália
havia de gostar de conhecer Ulisses (e de ouvir Gaivota), não tenho dúvidas.
“A voz tolhida e franca” em Navio triste não
arrepia nem comove, deixa uma profunda cicatriz de lágrima, abala de
forma intolerável a imunidade lógica de qualquer humano. Ulisses é isso.
Cristina Branco não é fadista, é cantora completa. E apaixonada pelo que canta. Choro arrepia e comove (“ai barco que me levasse aos tesouros conquistados”), traz dentro “toda a saudade do mundo” – a árvore com asas não esquece a raiz.
Ulisses
é cumplicidade. Primeiro, instrumental – piano e guitarra passam ruídos
a ferro, deixam a lindeza sonora irrepreensível. Segundo, arrebatadora
complementaridade [arrepia e comove, novamente]: Cristina e Custódio Castelo (notável
compositor e sublime intérprete de guitarra portuguesa, de importância
nuclear na música apresentada por Cristina Branco) encarnam, em disco e em palco, as asas de uma mesma borboleta, livre e sonhadora.
Ulisses
sonha em qualquer língua, é cantado em inglês, castelhano, francês,
português com sotaque do outro lado do Atlântico, sempre na sombra da
embriaguez lusitana. Ulisses é poesia – há poetas com casa dentro de
cada palavra.
Ulisses é a navegação de amor infinito, uma mão onde tudo cabe, é “as aves todas do céu”.