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Alfredo Marceneiro entrevistado por Carlos Conde

Interviews - Fevereiro 25, 2008
Alfredo Marceneiro comemora hoje mais um ano da sua eternidade. O Portal do Fado presta-lhe a devida homenagem e publica em exclusivo uma entrevista ao próprio conduzida pelo poeta Carlos Conde.

«Tem paciência Carlos Conde, mas tens que entrevistar o Alfredo Marceneiro. Entrevistá-lo e hoje mesmo. Preciso do original amanhã, sem falta, na redacção.
E ante a minha natural surpresa e consequente mas improfícua objecção, por tão rápida e seca intimativa, o João da Mata rematou, despedindo-se:
«Não sei. Arranja-te como puderes. Amanhã preciso da entrevista.»

Naquela casa típica do Bairro Alto, de ambiente simpático e acolhedor, cantava-se o fado. Figuras conhecidas no meio fadista discutiam os seus ídolos. Cantadeiras, cantadores e poetas, comentavam com certo frenesim, os últimos acontecimentos ocorridos no vasto panorama da mais lídima canção.
No seu modo, aparentemente sarcástico, lá estava, a um canto, sentado a uma das mesas, em amena cavaqueira com o meu distinto camarada Radamanto, o Alfredo Marceneiro.
Não revelei ao feliz autor do Fado-Cravo, a minha intenção. Seria loucura pensar nisso. Loucura e tempo perdido. O Radamanto sim; estava a par desta incumbência e já me havia preparado o terreno, sem o Alfredo dar por isso.
E foi assim, em ar de conversa, sem espantar a caça, que a entrevista começou.

Uma noite no Montanha…

Carlos Conde - Quando e como começaste a cantar ? – inquiri.
Alfredo Marceneiro - Há 36 anos. Tinha então 17. Era menino e moço. Até esta idade quase só me havia enlevado a ouvir cantar minha mãe. Ainda me lembro até duma quadra das muitas que ela invariavelmente cantava. Era esta:
Nasci nas praias do mar / Às fúrias do vento irado / Tinha por berço uma lancha / Por lençol o céu estrelado.

CC - E depois ?
AM - Fui aprendendo umas cantigas que eram corriqueiras na época, até que uma noite…
E após um lampejo de saudade, revelado no olhar, Alfredo prosseguiu:
- Até que uma noite, ia dizendo, fui convidado por uns amigos que já me haviam ouvido cantar em paródias próprias da idade, a ir ao Club Montanha. Tratava-se de uma festa grandiosa. A casa estava esgotada e os contratadores faziam negócio chorudo com os bilhetes antecipadamente adquiridos. Recusei a principio, mas depois de muito instado, fui. Ninguém me conhecia, é claro. Dirigia a festa o conhecido poeta Manuel Soares e, a certa altura, quando lhe fui apresentado, perguntou: - «Quem é este rapazinho? Como se chama? Que oficio tem?»
Satisfeitas estas perguntas e, passados momentos, coube-me a vez de ser apresentado ao público. Então o director da festa, esquecendo o meu apelido e visivelmente atrapalhado, anunciou: …
“Vai cantar a seguir o principiante Alfredo… Alfredo… Olhem não me ocorre o apelido. É Alfredo… Marceneiro…!
Cantei e agradei, felizmente. Fui aplaudido duma maneira febril, numa tal manifestação de carinho e simpatia, que – posso afirmá-lo – fez de mim um cantador…..

C.C – E o nome?
A.M – Olha, só te digo que ainda hoje sou o Alfredo… Marceneiro…

Para se vencer no Fado, não basta cantá-lo. É preciso senti-lo!

Aproveitando o seu próprio entusiasmo, aproveito a maré para lançar de novo a rede:

C.C – Quais eram os cantadores que predominavam nesse tempo?
A.M – O Francisco Viana, o Miguel Quintas, o António Lado, o João Maria dos Anjos, o Eduardo Aguiar, eu sei lá! – rematou Alfredo saudosamente.

C.C – Na tua longa carreira, nas lides de Fado, quais foram os cantadores que mais te sensibilizaram?
E Alfredo, rápido e convicto:
A.M – Vianinha, Campos e Proença.

C.C – E cantadeiras?
A.M – Maria do Carmo, Ercília e Amália. Devo, no entanto, confessar-te que admiro ao rubro a voz melodiosa e quente duma senhora ilustre que se chama Maria Teresa de Noronha.

C.C – Porque tens tão acentuada preferência por esses artistas? Não será também um pouco de influência de nomes? – aventei corajosamente.
A.M – Não me influo com facilidade – retorquiu. É que estes meus colegas cantam mais por temperamento íntimo do que por exteriorizações fúteis… Sentem como eu, as produções que cantam, e, para se vencer no fado, não basta cantá-lo. É preciso senti-lo!

Há cantadores com certa intuição e cantadeiras com certo jeitinho.

C.C - ….De modo que não morres de amores pela moderna geração fadista, salvo raras excepções, claro?... – sondei eu em ar de graça!
A.M - Admiro a gente moça, dou-lhe, sempre que posso, o meu melhor estimulo, rendo-lhe o meu carinho. Porém…
Pouca gente canta o fado. As modinhas, os viras e os tangos, dão conta dos fadistas, muito embora alguns julguem nisso uma tábua de salvação…
Ainda há dias ouvi a Maria Emília de Araújo. Confesso sinceramente que gostei imenso de a ouvir. Que belíssima cantadeira estaria ali, se cantasse só o Fado, por exemplo!

CC- O que não podes negar é que temos, presentemente uma plêiade de fadistas que não envergonha os do passado. – arrisquei eu a descobrir novos horizontes…
E Alfredo sarcasticamente:
AM- Sim, desde que os fadistas que tu dizes não se confundam com os cantadores a que eu me refiro. É que uma coisa é ser cantador e outra é ser fadista. Parece a mesma coisa, não parece? Pois não é…

CC- Queres dizer: Na tua opinião só se devia cantar o Fado nas casas de Fado, não é assim?
AM- Evidentemente. Eu também gosto de tangos, de viras e de modinhas, mas tudo no seu ambiente próprio.

CC- Mas há cantadores e cantadeiras que não cantam outra coisa, não é verdade?
AM- Sim. Há cantadores com certa intuição e cantadeiras com certo jeitinho…

Não sou «neura», como toda a gente diz. Sou franco como toda a gente sabe!

C.C - Achei graça à ironia e arrisquei:
Olha lá, Alfredo: não temes que as tuas palavras sejam tomadas como despeito?
A.M – Não! – acudiu prontamente.
Nunca pretendi fazer sombra fosse a quem fosse. Tenho cantado o que sei e como sei. É claro que o meu nome nem só a mim é devido. Grande parte dos meus êxitos, deve-se, e principalmente, ao repertório que, felizmente, tenho sabido seleccionar. Nem todos os poetas me servem…

C.C – Certamente que não tens poetas privativos…
A.M – É verdade que não; mas tenho, pelo menos, conseguido bom repertório dos que reputo melhores, como sejam o Henrique Rego, a quem devo a maioria dos meus êxitos, o Teles, o João da Mata, o Linhares Barbosa, o Britinho, o Radamanto, enfim, de nomes que, só por si, são autênticas garantias de êxito! Ao contrário de alguns colegas meus, aproveito as lições dos que sabem mais, e, nem por isso, valho menos…

C.C – Sobre guitarristas…
A.M – Também nem todos me agradam.

C.C – És exigente… - Comentei num sorriso.
A.M – Sou sincero, o que é diverso. Depois do Armandinho, o grande mestre, admiro José Marques, o guitarrista que mais me tem acompanhado, Jaime Santos, Fernando Freitas, Carvalhinho, Nery…

C.C – E?
A.M – Talvez outros… Há para aí tantos…

C.C – És autor de Fados – música; tens preferência por alguns deles?
A.M – Dos doze Fados que fiz, criei e gravei, prefiro o “Fado-Marcha”. O “Cravo” e o “Maria Marques”.

C.C – Canta-se hoje mais que antigamente?
A.M – Mais, talvez. Melhor, não.

C.C – Neste ponto, parece que estás um pouco em desarmonia com os teus colegas. Quase todos dizem o contrário…
A.M – Não me interessa o que os outros pensam e menos me preocupa o que eles dizem. Até te posso afirmar que o verdadeiro Fado castiço começou a ser esquecido desde que fechou o “Retiro da Severa”. Desde esse tempo que verdadeiros simpatizantes da Canção Nacional, como o escritor Rocha Martins, o poeta António Botto e outros, perderam o gosto de entrar em casas da especialidade. O falecido Fernando de Oliveira, que era um verdadeiro entusiasta, disse-me pouco tempo antes de morrer: “Amigo Alfredo, hoje poucas vezes se ouve o Fado”. E tinha razão o conhecido cavaleiro!

C.C – As tuas palavras não irão ferir susceptibilidades? Não estará, nas tuas afirmações, aliás, desassombradas, uma certa dose da tua “neura” ? – disse eu em ar de gracejo, a um sinal do Radamanto.
A.M – Não sou “neura”, como toda a gente diz; sou franco, como toda a gente sabe!

No Fado não tolero nem reconheço patrões. O meu patrão é o meu público!

C.C – Onde gostas mais de cantar?
A.M – Entre os meus amigos.

C.C – E são muitos, concordo. Porém isso não basta a um cantador profissional…
A.M – Sei onde pretendes chegar, mas, ás vezes, é preferível sacrificar a parte material ao prazer dos admiradores. Ganha-se mais com isso, embora não pareça…
Cantar de vontade é muito diferente que cantar por obrigação.

C.C – Não te seduz, nesse caso, o cumprimento obrigatório de certas empresas?
O meu interpelado fixou-me por momentos para responder vigorosamente:
A.M – Não! No Fado não reconheço nem tolero patrões. O meu patrão é o meu público, que sempre me tem distinguido e acarinhado!

Gosto muito do Fado, mas vivo do meu emprego. Não sacrifico este em holocausto àquele!

C.C - A conversa ia animada. Aproveitei para despistar a pergunta: - Entendes que um cantador profissional deve viver exclusivamente do Fado?
A.M – Julgo que não. O meio é pobre. Não dá para certos luxos…

C.C – No entanto as duas coisas…
A.M – São possíveis – atalhou. A questão está em dar mais espaço à primeira. O próprio artista ganha com isso. “Queima-se” menos e impõe-se mais.

C.C – A propósito: é por esse motivo que andas tão arredio dos tablados?
E a resposta veio pronta, relampejante:
A.M – Gosto muito do Fado, mas vivo do meu emprego. Não sacrifico este em holocausto àquele!

Os maus poetas são impertinentes, mas os bons são intrujões!

C.C - É preciso conhecer bem de perto o Alfredo Duarte, marceneiro de oficio e cantador de fados, aprofundar o seu feitio e, - porque não dizê-lo – tolerar um pouco a sua “revolta”. Arriscámos:
- A que se deve atribuir a pobreza relativa das letras que para aí se cantam? Certamente aos teus colegas, que não capricham em as seleccionar, não é assim? – Então o conhecido cantador, que há pouco havia exalçado alguns poetas, teve este “desarrincanço” genial:
A.M – A culpa dos maus versos que se ouvem com frequência, não é da maioria dos meus colegas, entendeste? A maior parte deles vê-se a braços para melhorar o seu repertório, mesmo sem olhar a preço. Há muito quem faça versos, mas… E rematando:
Os maus poetas do Fado são impertinentes, mas, os bons, são intrujões. Fartam-se de prometer e de faltar…

C.C – Levantou-se. Um grupo de admiradores do Alfredo convidou-o a cantar. Antes, porém, tentei sacudi-lo com a derradeira pergunta:
- E se eu tornasse públicas as tuas declarações?
A.M – Não penses nisso. Nunca mais te falava! – E começou a cantar…
Carlos Conde in Guitarra de Portugal - 1946


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