Kátia Guerreiro - Fado Maior
Ambos os casos atestam bem, contudo, de uma alteração significativa da atitude da juventude portuguesa dos anos 90 relativamente ao Fado, quando comparada com o que sucedera nas décadas de 70 e 80, em que fazia parte de uma cultura dominante nos sectores mais jovens, sobretudo nos que tinham uma intervenção política mais activa, uma certa recusa da herança fadista como qualquer coisa que viam como intrinsecamente associado ao Estado Novo. Hoje, estabilizada a sociedade democrática, esta polémica esvaziou-se de conteúdo e o Fado reaparece como aquilo que, afinal de contas, sempre foi, independentemente de quaisquer tentativas de manipulação política, e são cada vez mais os novos fadistas que já nasceram depois do 25 de Abril e que descobrem nesta linguagem tudo o que ela pode ter de profundamente identificável de um olhar português sobre o mundo, sobre os outros e sobre nós próprios.
Kátia Guerreiro é uma destas novas intérpretes surgidas nos últimos anos, e penso que aqueles que ouvirem este disco concordarão comigo em que se trata sem dúvida de uma das vozes fadistas mais sedutoras da sua geração e uma das que tudo indica poderem vir a ter seguramente no panorama do Fado um futuro mais destacado A sua voz prende-nos logo quando a ouvimos pela primeira vez, com um timbre espesso, quente, carregado de emoção autêntica, capaz de ora murmurarem tom de confissão, ora gritar dores apaixonadas em que não sentimos nenhum artifício interpretativo mas apenas uma fortíssima capacidade de comunicação dramática.
É evidente a filiação assumida de Kátia Guerreiro numa tradição amaliana, desde logo pelo próprio repertório, que retoma alguns dos fados mais emblemáticos da fase final de Amália, em especial os do álbum Lágrima, e por isso inclui alguns dos mais belos poemas da cantora. Mas se essa filiação se estende também a muitos aspectos da própria abordagem interpretativa, como certos traços da colocação de voz ou do uso da ornamentação melódica que nos podem soar familiares, Kátia não se reduz de modo algum a uma postura seguidista, e imprime a cada momento uma tal autenticidade expressiva ao seu canto que ficamos suspensos da sua voz enquanto nos conta estas histórias tristes de saudade e amargura, num registo em que é patente, ao mesmo tempo, um certo pudor de expressão poética que se impõe pela delicadeza das meias tintas.
Este é um primeiro disco para ouvir com muita atenção Estou plenamente convencido de que se lhe seguirão muitos mais, num percurso artístico que começa de forma excelente e se anuncia ainda mais prometedor, num universo do Fado que, felizmente parece entrar com o pé direito no século XXI.