Em Marvila, paredes-meias com um café que ao sábado à noite se transforma em casa de fados "vão à escola" miúdos que encontraram numa bem sucedida nova geração de fadistas a motivação para a (re)descoberta da guitarra portuguesa e do fado.
"Silêncio que se vai cantar o fado". O jargão é sobejamente conhecido, mas na Associação Cultural O Fado (ACOF), quando o café do bairro se transfigura em casa de fados, a expressão tão tradicional quanto o próprio fado é substituída por um sibilante "psssstttt", lançado pelo apresentador do espectáculo e que atravessa a sala.
Na parede, os discos e fotografias de fadistas, mais ou menos conhecidos do grande público, vão sendo envoltos numa penumbra, à medida que as lâmpadas do tecto são substituídas por uma luz vermelha que dá o ambiente melancólico, quase triste, do fado.
E por entre algumas vozes veteranas, de clientes habituais da casa, a ACOF vai dando oportunidade aos mais novos, aspirantes a fadistas, que às segundas-feiras à noite vão à escola da associação, mesmo ali ao lado, para aperfeiçoar o estilo e a voz.
Ana Cristina Ramalhão, 16 anos, é a mais velha das alunas que numa noite se apresentaram a um público composto maioritariamente por residentes do bairro de Marvila. O interesse pelo fado vem de longe, "desde os três anos, por influência dos avós", que a levavam a casas de fado.
De xaile preto sobre os ombros e de olhos fechados como a tradição exige, Ana Cristina interpreta os dois fados a que tem direito antes de subirem ao palco outras duas alunas da ACOF, Diana Vilarinho, de apenas 10 anos, e Sara Liliana, que este ano participa pela primeira vez numa Grande Noite do Fado.
Mariza, Ana Moura, Raquel Tavares e Camané são alguns dos nomes mais citados pelo jovem grupo de alunos da ACOF, que vê no sucesso alcançado por esta nova geração um estímulo para se reencontrar com o fado, um género que andou muitos anos distante das preferências dos mais novos.
"Tenho notado um interesse crescente dos jovens pelo fado. Há, talvez, uns quinze anos a esta parte que não havia camadas jovens no fado e daí para a frente notou-se um crescimento muito grande", afirma o presidente da ACOF, Carlos Oliveira, que é também um dos principais impulsionadores da escola, criada com o objectivo de descobrir novos valores.
"Todos querem ser Anas Mouras e Camanés", diz Carlos Oliveira, que também encontra na nova geração a principal justificação para este renovado interesse pelo fado e recusa a ideia de que se trate de uma moda, de algo passageiro.
Ana Moura é a principal referência de Teresa Lopes, de 12 anos. Foi mesmo através da fadista que a aluna da ACOF descobriu o fado e o interesse em cantá-lo.
"Como fui vendo que até tinha jeito e me safava [a cantar], fui ouvindo mais CD`s, de fadistas diferentes e fui evoluindo", revela a jovem promessa que inclui também no seu leque de influências vozes da "velha escola do fado", como Amália Rodrigues, Lenita Gentil e Maria da Fé.
João Ramos, professor de viola na ACOF, com quarenta anos de ligação ao fado, não hesita em dizer que Teresa Lopes será a próxima Ana Moura e foi mesmo ao som dos fados da cantora, acompanhada pela viola do professor e pela guitarra portuguesa de Pedro Ferreira, que Teresa Lopes fez o seu ensaio.
Também João Ramos vê na nova geração a principal razão para a recente explosão e reafirmação do fado, mas condena-lhes a tendência para desvirtuarem aquilo a que chama o "fado, fado".
"Os miúdos gostam de ver esta malta nova cantar e tentam imitá-los em tudo, até nos gestos. Agora, precisávamos que eles não mudassem o alinhamento, porque aparecem a cantar "fado, fado" e depois ganham um certo crédito no mercado e o "fado, fado" já era", desabafa o professor de viola.
Pedro Ferreira também reconhece a importância dos mais recentes valores do fado para a dinamização de um género que parecia condenado e enaltece o trabalho de escolas como a da ACOF, que permitem um aperfeiçoamento das capacidades dos alunos.
"Acho que as escolas são um bom meio de desenvolvimento. Muitos miúdos vêem para aqui [escola da ACOF] e é o ponto de partida deles. Vê-se muita gente nova, o que acho muito importante", afirma.
Pedro Ferreira é ele próprio um representante da nova geração. Aos 31 anos acumula com a actividade profissional na área da Medicina Tropical as funções de guitarrista residente dos espectáculos de sábado da ACOF e professor de guitarra portuguesa na escola.
O gosto pelo fado e pela guitarra surgiu no final do curso, por intermédio de um dos nomes mais sonantes da área em Portugal.
"Conheci o António Chainho e eu que já tocava viola, achei que era um instrumento interessantíssimo [a guitarra portuguesa]. Comecei a aprender a tocar por influência dele", explica.
Pedro Ferreira, tal como João Ramos, não só acompanha os alunos que frequentam a escola para aperfeiçoar a voz, como também dá aulas de guitarra portuguesa. Na ACOF o jovem instrumentista acompanha alguns miúdos que querem permanecer no fado, outros que estão apenas de passagem, para a guitarra eléctrica e para o rock.
Bruno Monteiro, de 16 anos e Joaquim Gonzaga, de 12 são dois desses casos. Foram para a ACOF aprender a tocar viola, mas assim que as bases estiverem sólidas pensam trocar o som acústico pelo eléctrico e dedicar-se ao estilo que realmente gostam, o rock.
"É difícil pedir a miúdos de dez ou onze anos que se mantenham no fado, quando eles pensam "fado ouve o meu pai, ouve a minha avó", diz Pedro Ferreira a propósito das motivações dos alunos que procuram a escola.
João Ramos garante que, apesar da idade, ensinar os candidatos a violas e guitarristas acaba por ser fácil.
"Não é difícil ensiná-los se levarmos na desportiva. Eu alinho nas brincadeiras. Não há rigidez aqui, somos muito amigos uns dos outros. Ninguém corre atrás de ninguém, temos de fazer isto voluntariamente, sem obrigação de daqui a oito dias ter que saber o mi e o fá. Acho que é a melhor maneira de fazermos bons violas. E boas pessoas", afirma o professor da ACOF.
Talvez porque no meio esteja instituída a ideia de que o fado não se aprende, a ACOF é uma das poucas escolas de fado do país. Para além da escola de Marvila, que dirige, Carlos Oliveira só consegue identificar de memória outras três escolas semelhantes: uma em Benavente, outra em Alcochete e outra em Alverca.
Com cerca de 15 anos de existência, a ACOF debate-se agora com a necessidade de melhorar e tornar as instalações definitivas. A Câmara Municipal de Lisboa já manifestou intenção de desalojar a associação, mas a ACOF mantém a esperança na concretização de um protocolo com a câmara, já garantido verbalmente.