Raquel Tavares revela os recantos do seu "Bairro"
Diogo Clemente é «músico, compositor, poeta e produtor» deste Bairro que canta Raquel Tavares, e que pode bem consolidar o nome da fadista dentro e fora de portas. Hoje, quinta-feira, 15, o Bairro tem morada no jardim muncipal de Valença, em Espanha. No sábado, 17, em Nîmes, França. Depois, a 31 de Maio, em Arcos de Valdevez para o 2.º Ciclo Novos Fados. Os meses seguintes reservam passagens pelo Chile, Argentina e Polónia. Nos intervalos de tudo isso está em casa, no Bacalhau de Molho, em Lisboa.
O Portal do Fado aliou-se ao Rascunho e foi descobrir o que mais tem Raquel Tavares na voz, além do que encontramos gravado, e ainda sobre o que espera do novo disco e mesmo do fado.
Que Bairro vamos encontrar no novo trabalho?
Bairro não simboliza apenas aquilo a que chamamos bairro típico, é também o sítio onde cada um de nós nasceu, criou as suas raízes, a sua essência, os seus valores. É o berço de cada um de nós. O meu berço é o bairro do Alto Pina, muito embora tenha conhecido e vivido intensamente outros bairros, nomeadamente o bairro de Alfama, que é onde moro actualmente. E é de todas as recordações que tenho destes bairros que trata este disco. Os sítios por onde passei, as pessoas que conheci, as infindas noites de fado, o fado amador, as colectividades, as tasquinhas, os restaurantes que dão fado de quando em quando, enfim, retrata um pouco do meu percurso no fado ao longo destes 16 anos.
Alfama é só casa deste disco, ou já era do anterior e será do próximo?
Alfama é um bairro onde ainda se encontra uma Lisboa muito pura, onde sobrevivem algumas tradições muito características do nosso povo, onde toda a gente se conhece e se cumprimenta, onde se respira fado… Alfama faz parte de mim, sempre fez, e por isso está presente neste disco, no anterior, e estará em tudo o que eu fizer.
A nudez do fado está no amor por Lisboa?
Lisboa é a grande paixão da minha vida. É, muitas vezes, a minha grande fonte de inspiração, e por isso, acredito que a parte mais «nua» do meu fado, esteja na forma como eu vivo a minha cidade.
Foi fácil entrar no circuito nocturno do fado e passar daí para os discos?
Entrar no circuito nocturno do fado foi simples, eu era muito menina e, talvez por isso, toda a gente me convidava para ir às noites de fado que aconteciam por aí. Passar à fase dos discos, dos concertos, das entrevistas, da exposição, custou um pouco. Eu não estava habituada a tanto «movimento». Mas tive a sorte de ter pessoas do meu lado, que estão no meio há muitos anos e que me aconselharam da melhor maneira. No fundo, o mais importante é viver um dia de cada vez, sempre com muita serenidade e com a consciência de que hoje podemos estar no topo e, amanhã, por mil e um motivos, já não estar.
As casas de fado são importantes rampas de lançamento para novos fadistas. O que leva um fadista a «saltar» para fora das Casas de Fado?
Eu não sou a pessoa indicada para responder a esta questão porque continuo a cantar na casa de fado onde estou há três anos, no Bacalhau de Molho, e pretendo continuar. Quando não estou, é porque tenho concertos. Fora isso, é lá que canto.
Há algum papel a cumprir pela geração mais jovem de fadistas, como a da Raquel?
Creio que o nosso papel é fazermos o possível para que o fado seja ouvido sempre mais, por mais pessoas, em mais sítios, devemos dignificar os jovens poetas, músicos, compositores e, desta forma, trazer mais jovens ao fado. Devemos fazer o possível para que as gerações do fado anteriores saibam que foram muito importantes na nossa evolução, que nos deixaram bases riquíssimas, que nos inspiram e motivam.
Hoje, estão abertos novos caminhos para cantar o fado?
Eu acho que as portas estão abertas. Algumas já estavam, outras foram abrindo devagarinho. É um género musical que tem lugar em qualquer parte do mundo, as editoras já apostam mais, há cada vez mais gente a cantar, a tocar, a escrever, a compor. Os caminhos existem e devem ser usados com verdade e autenticidade.
Foi salutar o papel de fadistas como Cristina Branco, Mísia ou Paulo Bragança na reinvenção do género?
Para mim, estes nomes surgem (e ainda bem que surgem), numa altura em que as pessoas estavam um pouco esquecidas de que tínhamos uma música que é só nossa e que nos caracteriza, e vieram dar um «abanão» àqueles que têm o dever de divulgar a nossa cultura: a televisão, a rádio, a imprensa, etc. Não quer dizer que não houvesse fado! Sempre houve, e bom! Nunca deixou de ser cantado! Mas estava esquecido aos olhos do grande público. Mas creio que nada foi reinventando. Eu não entendo aquela expressão do «novo fado». Para mim, isso não faz sentido. O que eu acredito que haja, são novas formas de abordar fado, mas o fado é o mesmo, não é outro.
Não se desvirtuou o fado?
Esta é uma questão complexa. O que para mim pode ser fado,
para outra pessoa pode não ser e vice-versa. Aqui falamos de emoção, e todos
podemos sentir de maneira diferente. Isso de discutir se é fado ou não, é muito
subjectivo. É claro que acho que, nos dias que correm, acontece chamar-se fado
a muitas coisas. Mas não é a mim que cabe fazer essa distinção.
O fado transformou-se num fenómeno de moda?
Não sei se será moda a expressão. Efectivamente, é mais cantado,
mais ouvido, mais divulgado, e eu não vejo mal nenhum nisso, pelo contrário.
Qual é a relevância de vencer o Prémio Revelação Amália
Rodrigues [em 2006]? Mudou alguma coisa?
Receber o Prémio foi uma grande surpresa porque nem sequer
me passou pela cabeça tal coisa. Foi importante porque me trouxe alguma
visibilidade, que é sempre a oportunidade que tenho de fazer chegar o meu fado
a mais algumas pessoas.
Quando canta fora de Portugal, quem vê na plateia? Emigrantes, ou o público é mais alargado?
Infelizmente, ainda não fiz nenhum concerto especialmente
para a comunidade portuguesa, mas estou muito ansiosa que chegue esse momento.
O que acontece é estar num concerto, algures na Europa, e no final de um fado
ouvir um «ah, fadista!» no meio do público. É uma sensação única! Há sempre um
português presente!
O fado é mais acarinhado dentro ou fora de portas?
O fado é acarinhado. Ponto. Cá, de uma forma, lá fora, de
outra, mas o importante é que é sempre bem recebido.
Qual foi a reacção do público ao álbum de estreia?
Foi muito boa. Fui muito acarinhada no meu primeiro álbum…
pelo grande público, pelos media, pelos fadistas etc. Sinto-me muito feliz em
relação a isso.
Como foi trabalhar com Custódio Castelo?
Foi uma honra! Tal como com o Jorge Fernando e o Filipe
Larsen. O Custódio é para mim um ídolo, no que diz respeito à guitarra
portuguesa. Foi um privilégio cantar com ele, e contar com a «magia» dele no
primeiro álbum.
E agora, no novo trabalho, o que levou Diogo Clemente para o Bairro?
O Diogo faz parte da minha história. Conhecemo-nos de toda a vida. Crescemos no mesmo meio, aprendemos da mesma maneira, temos os mesmos valores, e defendemos o mesmo fado. Temos uma cumplicidade enorme, daquelas que nem é preciso falar, basta olhar. E, desta forma, foi fácil dar vida a este Bairro. Neste álbum, ele está presente enquanto músico, compositor, poeta e produtor.
Quais são as expectativas para este novo trabalho?
Eu não gosto de criar grandes expectativas. Prefiro levar
tudo isto de uma forma tranquila e segura. É claro que espero que muita gente
venha conhecer o meu Bairro mas,
acima de tudo, o que quero é continuar a cantar. Cantar, cantar e cantar.
O que vai com a Raquel para digressão? Livros, discos, pessoas? Saudades?
Levo
sempre um livro, o meu Ipod, e muitas, muitas saudades de Lisboa.