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A vida do brasileiro que cantava o fado

Lucas Junot nasceu no Brasil e estudou em Coimbra nos anos 20. Gravou quatro discos de fado. Esta é uma história que Rui Lopes, também apaixonado pelo fado de Coimbra, conta com prazer.

Na rua dos Coutinhos, junto à Sé Velha, em Coimbra, mais precisamente no número 3, há uma placa que informa ter ali vivido o estudante universitário Lucas Junot, 1902-1968. Em 1997, Rui Lopes, natural de uma freguesia de Abrantes, foi, também ele, estudar para Coimbra e, passando certo dia na dita rua, tomou nota mental do que ali estava escrito. 'Nunca até àquele momento tinha ouvido falar de tal personagem', conta Rui Lopes, que entretanto se fez historiador e no próximo dia 13 lança a fotobiografia do estudante brasileiro que cantou Coimbra. Esse mesmo – Lucas Junot.

Nasce a 20 de Janeiro de 1902 na cidade de Santos, estado de S. Paulo, filho de portugueses que, como tantos outros, atravessaram o Atlântico em busca de uma vida menos má. A família regressa a Portugal em 1914. Lucas tem 12 anos. Conclui os estudos na Escola Primária Anexa da Sé Velha, segue para o Liceu Dr. José Falcão e, após alguma indecisão sobre o curso, estuda Matemática na universidade.

Deve ser verdade que Matemática e Música andam de mãos dadas pois é então que o brasileiro pega na guitarra e dá uso à voz. Tal como Rui Lopes, que também aprendeu a tocar guitarra quando foi estudar para Coimbra. Não vem à baila a assiduidade académica do historiador mas não há dúvida de que Junot falta às aulas quando começa a acompanhar a gente do fado.

'Entre tantos brasileiros que aqui estudaram ele foi o único que se interessou a sério pelo fado de Coimbra', sublinha Rui Lopes, a quem acorre de súbito a lembrança de 'há cerca de um mês ter encontrado duas raparigas da tuna feminina Mondeguinas que falavam português do Brasil'.

Já Lucas Junot cantava sem qualquer sotaque. Não há vogal acentuada à maneira do povo irmão ou consoante enrolada quando a voz maviosa que entoa: 'Eu ouvi de Santa Clara/ Gemidos de alguém que chora/ Era a rainha pedindo/ Por mim a Nossa Senhora'. O poema, musicado por Francisco Menano, do fado de Santa Clara é de autoria do próprio Junot. Surgiu, afirma Rui Lopes, 'de forma espontânea quando ele ia a passar na ponte de Santa Clara' e do outro lado viu o mosteiro onde está sepultada a Rainha Santa Isabel.

Os fados ‘de Santa Clara’, ‘dos Passarinhos’ e ‘Sepúlveda’ são apenas alguns entre os que deixou gravados em quatro discos de 78 rotações. 'Ele e o Menano pertencem à primeira década de ouro do fado de Coimbra, nos anos 20', esclarece o autor da fotobiografia. O lirismo corre-lhes no sangue e transparece na voz de prolongados e e inquietantes agudos de Junot. Ele e Menano são os últimos dos líricos, antes da ‘revolução’ que Artur Paredes, pai de Carlos, e Eduardo Bettencourt – 'açoriano e não madeirense' – trouxeram ao fado/canção de Coimbra.

O primeiro momento na história do livro propriamente ‘lido’ pode ter sido aquele em que Rui Lopes repara na placa sobre o número 3 da rua dos Coutinhos. Mas o incentivo para começar a trabalhar na fotobiografia do estudante brasileiro que cantava fado de Coimbra só surgiu em 2005, 'durante uma conversa no Instituto de Paleografia e Diplomática'. Organizava-se a VII Semana Cultural da Universidade de Coimbra, subordinada ao tema ‘O Abraço Lusófono’ e falava--se de antigos estudantes oriundos dos Países Africanos de Expressão Oficial Portuguesa. É bem sabido que, por exemplo, Agostinho Neto, que foi presidente da Angola após a Independência, estudou Medicina em Coimbra em 1948. E estudantes brasileiros? – perguntaram. Foi então que Rui Lopes, estudioso da história do fado/canção de Coimbra, decidiu aprofundar a vida e obra de Lucas Junot.

Tendo terminado, em 1927, o curso e já casado com Eugénia, o matemático e fadista parte para Angola, onde lhe nasce o primeiro filho. Se, pouco depois, regressa a Portugal é por ter sido bafejado pela sorte grande – em 1928 ganha a Lotaria do Natal. Mais tarde sobra-lhe ainda dinheiro para, com a mulher e já três filhos, rumar ao Brasil, onde trabalha como jornalista em Santos e foi investigador de matérias relacionadas com a Meteorologia e a Astronomia.

Em busca de informação e imagens que documentassem a vida de Lucas Junot, o historiador Rui Lopes enviou uma série de e-mails para todos aqueles que, em Santos, poderiam ajudá-lo. Sem grande resultado. Ninguém sabia do paradeiro da família de Junot. Até ao dia em que um chefe de polícia, luso-descendente e casado com uma portuguesa, se mobilizou para localizar os descendentes de quem também tinha raízes em Portugal. Lucas Junot nunca foi de ficar muito tempo no mesmo sítio e, ao que parece, os seus netos também não. Tinham-se mudado para o Mato Grosso do Sul, 'do outro lado do Brasil'. Feito o contacto, tudo correu sobre rodas. 'Passado um mês enviaram-me toda a documentação.' E, ironia das ironias, depois de tanto tempo sem resposta, Rui Lopes descobriu que um dos netos de Junot vivia há 17 anos em Portugal. Em Portimão.

Lucas Junot 'não estava muito preocupado em gravar e fazer uma carreira' – acredita Rui Lopes –, mas não esquece Coimbra. É membro da Tertúlia Académica no Brasil, canta o fado de Coimbra para os amigos e garante que antes de morrer há-de ver a cidade outra vez. E assim foi. Regressa em 1967. Morre um ano depois, no Brasil.

Em 1969, mesmo à entrada da rua dos Coutinhos, na casa onde Lucas Junot morou enquanto estudante, foi colocada uma placa alusiva. Nem isso o salvou do esquecimento – não fosse, décadas mais tarde, um estudante que também tocava guitarra, gostava como poucos do fado de Coimbra e a quem interessava a história desta forma de cantar ter passado naquela rua e esforçado os olhos para ler o que ali estava escrito. 'É uma figura pouco conhecida em Portugal e, pelo que pude aperceber-me, também no Brasil.' É verdade que em Santos existe uma rua com o nome dele. Mas em terra de samba, o fado não vinga. E também por lá, hão-de ser poucos os que dão atenção às placas. Mesmo às que guardam boas histórias.

O SONHO DE REVER COIMBRA

Lucas Rodrigues Junot nasce no dia 20 de Janeiro de 1902 na cidade de Santos, estado brasileiro de S. Paulo. Os pais, José Maria Rodrigues Junot, natural de Cadaixo, Miranda do Corvo, e Adelaide da Conceição Franco Rodrigues, que nasceu em Dois Portos, concelho de Torres Vedras, tinham emigrado para o Brasil no final do século XIX. Fixam-se em Santos e abrem uma mercearia. Em 1914, a família regressa a Portugal e passa a viver em Coimbra. É nesta cidade que Lucas estuda até obter a licenciatura em Matemática. Lá conhece também aquela que vem a ser a sua mulher, Eugénia Cecília Gaupin de Sousa, uma 'alfacinha de gema'. Os dois partem para Angola. Lucas ganha a sorte grande e volta com a mulher e os três filhos a Portugal. Por pouco tempo. Pouco depois instala-se no Brasil. Nunca esquece a cidade do Mondego. Em Santos continua a cantar o fado de Coimbra para os amigos. Trabalha primeiro como jornalista. Ensina Matemática. Torna-se assistente do Observatório Astronómico de S. Paulo. Trabalha também nos Serviços de Meteorologia. Morre em 1968. Depois de rever Coimbra.
Isabel Ramos


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