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Elogio do Fado

Escutar e cantar o Fado é algo próximo de uma experiência mística. Um rito. O Fado, que reflecte sobre si, tem profunda consciência dessa ligação ao Sagrado (aliás, desde a origem, toda a música encontra-se ligada ao Sagrado).

Descreve-se a si mesmo como uma reza, portanto, comunicação com o divino: “Se tendes fé, corações, / cantai, cantai, a rezar. / Cantigas são orações / que se rezam a cantar.” Madalena de Melo, “Fado em Ré Maior”, 1928. E em “Quadras de barro”: “Fado é oração profana / dos dias de contrição / em que a fé não chega a Deus / mas Deus chega ao coração.” Essa reza chega a tornar-se literal, como em “Avé Maria Fadista”, uma letra de Gabriel de Oliveira... ver a letra aqui (Canta Amália, António Pinto Basto, Frei Hermano da Câmara). Mais recentemente, uma letra de Hortense Viegas César apela mesmo a uma Nossa Senhora do Fado: Quando a noite se avizinha/
E aceito que alguém me ajude// Vou rezar á capelinha/ Da Senhora da Saúde... ver a letra aqui (“Nossa Senhora do Fado”, canta Carlos Zel).

O Fado é uma penetração numa esfera mítica. Quando se canta ou escuta Fado, subtraímo-nos ao tempo cronológico do quotidiano, de tal maneira que vida e Fado parecem separados. Existe a vida e existe o Fado. Existe a vida e existe a Arte, que vive e se desenvolve, de certo modo, independentemente daquela: “Com tanto fado cantado / e tanta noite perdida / tenho mais anos de Fado / que propriamente de vida... ver a letra aqui (“Mais anos de Fado”, letra de Clemente Pereira, canta Júlio Peres).

Além de se perspectivar a si próprio, o Fado criou um universo seu, o que é um dos traços da grande arte. Criou as suas próprias personagens (algumas inspiradas em vidas reais, outras puramente inventadas), que ganharam vida, e de tal forma, que surgem de fado em fado, numa verdadeira saga. São gente que todos nós conhecemos. Sabemos a vida toda da Mariquinhas. Essa personagem é tão marcante que tem sido objecto de várias letras, nas quais se descrevem diversas fases da sua vida, até à morte. A Rosa Maria da Rua do Capelão, que até parecia que tinha virtude no dia procissão da Senhora da Saúde, também surge em mais do que uma letra. E há a Cesária, a Júlia Florista, a Maria Vitória, o Chico do Cachené… Personagens fortes que tomaram de assalto o imaginário português. Isso é o que acontece com as personagens da grande literatura: pensemos num Dom Quixote, num Hamlet, numa Madame Bovary, – chegamos a conhecê-los melhor do que a nós próprios.

O Fado tem também a sua própria geografia: a Mouraria, com a Rua do Capelão e a Capelinha da Senhora da Saúde, Alfama, com o Chafariz d’El-Rei, a Madragoa, o Bairro Alto, a Bica, a Graça cheia de graça; e ainda os retiros “fora de portas”, como o Ferro de Engomar. Alguns exemplos: “Alfama antiga dos nobres, / morada do velho Gama / e da primeira Nobreza, / hoje és morada dos pobres, / mas mesmo assim, velha Alfama, / mostras bem que és portuguesa... ver a letra aqui ,  “Alfama”, letra de Henrique Perry (canta Gabino Ferreira). 

“As ruas da Mouraria, / onde mora o nosso Fado / entristecem quem lá passa. / São estreitas para a alegria / mas, por condão malfadado, / são bem largas p’rá desgraça.” Letra de Fernando Teles (canta Fernando Maurício). A destruição da Mouraria, essa ferida que ainda hoje sangra no coração dos Lisboetas, foi profusa e sentidamente cantada no Fado: “Contaram-me ainda há pouco / que à noite, p’la Mouraria, / andava um fadista louco / sem saber o que dizia... ver a letra aqui , ” Domingos Gonçalves Costa, "Fadista Louco" (canta Tereza Silva de Carvalho, António Mourão e outros). “Ó Madragoa, das bernardas e das trinas, / dos padeiros, das varinas, / da tradição. / És a Lisboa que nos fala / doutra idade, / doutros tempos da cidade / que já lá vão…” Letra de José Galhardo (canta Lucília do Carmo).

A riqueza do Fado ainda vai para além de tudo isto: como muito bem afirma Maria Luísa Guerra na sua obra “Fado – Alma de um Povo”, possui “uma matriz filosófica”. Uma filosofia espontânea. Reflecte. Sobre si próprio, como vimos, e sobre a existência humana. Por isso, sendo tão português, toca os corações de tão diversos povos que sentem que, de alguma forma, ele lhes diz respeito. Profundamente português, logo, universal. Ao Fado interessa-lhe a condição humana, da qual é inalienável a experiência do sofrimento. Assim, canta o sofrimento. Acusaram-no então de ser “uma canção de vencidos”, uma “conformação com o cru e negro império do destino” (Rocha Peixoto). Isto porque, diziam, incitava à submissão perante o destino, a uma aceitação passiva do sofrimento: ”Bem pensado, todos temos nosso fado / e quem nasce mal fadado / melhor sorte não terá. / Fado é sorte e, do berço até à morte, / ninguém foge, por mais forte, / ao destino que Deus dá.” (Canta Amália).

No entanto, não é esta a mensagem mais escutada no Fado. O que mais se escuta é que o Fado tem uma função paliativa contra o sofrimento. O Fado é uma sua sublimação. Recusando-se sempre a negar a existência do sofrimento, o Fado incita sobretudo a transformá-lo em Arte, a transformá-lo em Fado (tal como Deus que, quando "entristeceu, fez as canções portuguesas" e o marinheiro que, "estando triste, cantava."). Haverá mensagem mais positiva? “Quando a minh’alma padece / e de saudade ando louca, / o Fado logo aparece / a bailar na minha boca. / Se sofro do mesmo jeito / mágoas que a boca não diz, / encosto a guitarra ao peito, / canto o Fado e sou feliz.” (Adelino dos Santos e Domingos G. da Costa).

“O fadinho a soluçar / faz de nós afugentar / a ideia da própria morte. / Mata a dor, mata a tristeza, / o Fado é bendita reza / dos desgraçados sem sorte.” Letra de Pedro Bandeira e Álvaro Leal, “Maldito Fado”, (canta Hermínia Silva).

“Mais uma noite de Fado, / mais uma noite perdida / para lembrar o passado / que não esquece mais na vida. // Quando um fadista a sofrer / tem memória do passado, / o seu desejo era ter / mais uma noite de Fado.” Popular, “Fado Pechincha” (Maria Albertina).

“Há para o sofrimento um bom remédio, afinal, / é cantar no momento, ninguém se lembra do mal. / Não custa mesmo nada, / tentem fazer como eu: / uma guitarra afinada, uma voz bem timbrada e a tudo esqueceu... ver a letra aqui , “Canto o Fado”, letra de João Nobre (canta José da Câmara Pereira e outros).

O Fado, porém, ao qual interessa tudo quanto é humano, canta também a alegria, as toiradas nas tardes doiradas, a rambóia, as patuscadas... 
A consciência, muito fadista, de forças maiores do que nós, da morte, do acaso, de que tudo muda irrevogavelmente, significa lucidez. Não significa ser-se “um vencido”. Significa, pelo contrário, que se viveu, que se aprendeu a aproveitar melhor o que de positivo acontece. Essa lucidez é essencial para distinguir o que realmente importa do que é insignificante e perspectivar melhor o rumo a seguir. Se não há essa consciência, não será mais fácil ao “destino” pregar uma finta e apanhar o incauto? Vencida, a Lucília do Carmo, com aquela proa? Vencida, a Berta Cardoso, com aquele vozeirão? O Marceneiro, com aquele peito de galo? A Amália, astro que refulge no inteiro universo? Eu diria antes: Fado – canção de convencidos. Têm todos ar de quem não deixa que lhes pisem os pés. E ainda bem! Foi por ter consciência do seu valor que o Fado não se deixou espezinhar, apesar de ter sido tão vilipendiado e de ter começado por baixo, pelas vielas recônditas “onde a pobreza é rainha.”

A “altivez” e “valentia” fadistas são muitas vezes cantadas: “Fadistas, eu amo o Fado, / essa canção genial / que dá nome à nossa grei. / Ser fadista é ser honrado, / ser fadista em Portugal / é ser português de lei. // Sem ter lança nem arnês, / o fadista dedicado / combate com galhardia. / Defende com altivez / o seu ideal, o Fado, / sua Pátria, a Mouraria. // Povo nobre e imortal, / nunca pensei mal do Fado, / não penso nem pensarei. / Adoro o Fado dolente, / essa canção genial / que dá nome à nossa grei.” (“Ser Fadista”, gravado por Adelina Fernandes em 1928.)

E, num outro fado, igualmente intitulado “Ser Fadista”, cantavam Alfredo Marceneiro e o seu filho, Duarte Júnior, uma letra de Armando Neves: “Deixar de cantar não posso / o Fado, com altivez, / porque o Fado é muito nosso, / porque é muito português. // Canto com amor profundo, / com afecto sem igual / e eu mostro orgulhoso ao mundo / a canção de Portugal. // Eu sei bem que há mais canções / de sentimento e valor, / mas os nossos corações / sentem o Fado melhor. // Pois o Fado que rebrilha / nesta alma portuguesa / tem não sei que maravilha, / tem não sei quê de beleza. // Sempre o Fado há-de existir / enquanto houver ao luar / uma alma p’ra sentir, / um coração para amar. // Vê-o por fora o turista / que aquele Fado maldiz. / Sou cantador e fadista / p’ra honrar o meu país.” 

E ainda esta: “O Fado de antigamente / tinha vida, tinha cor. / Era cantado somente / por fadistas de valor. // Toda a gente que o cantava / tinha fama de valente. / Não se desmoralizava, / o Fado d’antigamente. // Num tempo em que toda a gente /o cantava por amor, / com desmedido primor / em renhidas desgarradas / e em alegres patuscadas, / tinha vida, tinha cor. // O Fado dava nas vistas / mas não era deprimente. / Por consagrados fadistas / era cantado somente. (…).” ,“Fado de Antigamente”, letra de Gabriel de Oliveira (canta Jorge Silva). 



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Comentários
+1 #1 Okawa Ryuko 2012-04-08 15:27 Muito obrigada. Só um pequeno reparo. O título é "Elogio do Fado" e não O Elogio do Fado. e um pedido: podia inserir o link para o meu blogue? Sucesso para este seu portal! Citação
+1 #2 Portal do Fado 2012-04-08 15:41 Cara Okawa Ryuko
Vamos corrigir o título do artigo. O link para o seu blogue está no próprio nome (do autor) no final do artigo. Como o seu artigo é um pouco longo iremos publicá-lo periodicamente em partes!

PS.: Nós é que agradecemos o seu excelente artigo!
Citação
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