Gisela João: um fado gaiato, sofrido e triunfante
Concertos - Janeiro 27, 2014
Num CCB superlotado, Gisela João cruzou densas emoções e uma jovial naturalidade numa grande noite fadista.
Repetiu, nos palcos, o caminho que a levou ao fado: de norte para sul, do Porto para Lisboa, da Casa da Música para o CCB. E se trazia nervos venceu-os, porque no final da segunda noite, com o grande auditório do CCB esgotado, Gisela João saiu em triunfo.
A cantora que diz “vim assim, rasteirinha” (ao explicar por que não trouxe saltos altos) agigantou-se no palco muito por força da sua maneira de agarrar o fado. Saia curta, ténis pretos, primeiro vestida de preto e depois de branco-pérola com uma capa que lhe dava um ar de personagem de BD, Gisela soube desde o início agarrar a plateia e levá-la para dentro das palavras, das histórias de cada fado. A voz dela vem bem de dentro e não se limita a sair pela garganta: é rosto, músculo, pernas, braços, mãos, o fado imprime-lhe emoções que se desenham cá fora, em gestos que noutros pareceriam desapropriados ou até ridículos mas que nela surgem tão naturais que a ninguém espantam. Gestos que a levam a percorrer o palco, a ajoelhar-se ou até a virar as costas ao público. Mas é a voz, rica nos graves e expressiva nos lances, que tudo comanda. E, tal como os improváveis vestidos que lhe seguiam os gestos sem um desajuste, como se fossem prolongamento da própria pele, também a voz, por mais sofrida, conseguiu sempre manter o brilho.
O concerto foi, como ela já avisara, o próprio disco. Inteiro, mas com as voltas trocadas. O que ele trouxe dos repertórios de Amália, Beatriz da Conceição, Manuel de Almeida ou Carlos Ramos, e tão bem gravou no disco de estreia, teve em palco demonstração sem réplica, que a cada vez os fados vão ganhando novos matizes. Madrugada sem sono, Vieste do fim do mundo e Meu amigo está longe, todos eles belíssimos, instalaram a solenidade necessária que o fado pedia. Mas a seguir vem o fado corrido de Antigamente e o ambiente tornou-se festivo. Para logo mergulhar no amor dilacerado de Voltaste ou Sei finalmente, com Gisela, de joelhos, a sofrer o fado.
Depois ficaram os três músicos (“os meus super-heróis”, como ela mais tarde os apresentou) para abraçarem com sabedoria e dinamismo o Canto de rua, de Carlos Paredes, música que, como as estações do ano, sabiamente se desdobra em alegria, melancolia e tristeza. Ricardo Parreira (guitarra portuguesa), Francisco Gaspar (baixo acústico) e Nelson Aleixo (viola de fado) deram conta do recado e receberam uma forte e merecida ovação no final.
Quando ela voltou, já de branco (mantendo a saia preta curta e os ténis pretos), foi para cantar Primavera triste (a boa marca de Aldina Duarte), (A casa da) Mariquinhas reinventada pela rapper Capicua e, antes de apresentar os músicos, o amor desmesurado de Sou tua. Mais uma vez, a festa depois da dor. Primeiro, com a rapsódia Malhões e vira e no final com o jovial Bailarico saloio, tendo pelo meio dois outros grandes momentos de fado: Maldição e Não venhas tarde, que ela cantou sentada, a ler a letra, como se lesse uma carta. Isto num cenário que primou pela contenção e pelo bom gosto, os três músicos distribuídos pelo palco, luzes que sugeriam lume e, no canto esquerdo, um espelho oval, uma mesa com copos de água e uma jarra de flores e uma cadeira, onde ela se sentou mais de uma vez, inclusive para cantar frente ao espelho.
No primeiro encore, com o disco já integralmente rodado, voltaram Madrugada sem sono (numa versão ainda mais pungente) e Antigamente, exuberante e gaiato. Como o público não desarmasse e as palmas cadenciadas continuassem, Gisela e os músicos voltaram para um segundo e último “encore”. Primeiro, com o imortal fado antigo: Julguei endoidecer, de Tristão da Silva e Júlio Proença (do repertório de Alcindo de Carvalho) e Naquela noite em Janeiro, de Francisco Ribeirinho e Acácio Gomes (do repertório de Argentina Santos). Depois com Bailarico saloio, para acabar em euforia.
No final, Gisela estava visivelmente emocionada mas feliz. Tinha enfrentado o público com uma surpreendente naturalidade, estilhaçando paradoxos (aparência pop em alma fadista, gestos enérgicos e lancinantes em lugar de um subtil recolhimento) e deixando clara uma vocação nata para os palcos. Quando lhe gritaram “És linda!” respondeu de forma desarmante: “Obrigada. Tu também”. E quando voltou a ouvir “És linda, mulher maldita!”, gracejou com a contradição. Jamais se atrapalhou, nem mesmo quando a voz se lhe abafou num nó ditado pela emoção (e isso sucedeu duas vezes na noite, uma delas no final de Meu amigo está longe).
Mas desenganem-se os que pensam que ela veio tomar o lugar de alguém. Gisela João veio apenas ajudar a engrandecer uma geração onde já brilham muitos e bons fadistas. Apesar da luz que irradia, não deixará outros na sombra. É que se havia um lugar para ela, estava vago. Porque não há mais ninguém assim.Nuno Pacheco
A cantora que diz “vim assim, rasteirinha” (ao explicar por que não trouxe saltos altos) agigantou-se no palco muito por força da sua maneira de agarrar o fado. Saia curta, ténis pretos, primeiro vestida de preto e depois de branco-pérola com uma capa que lhe dava um ar de personagem de BD, Gisela soube desde o início agarrar a plateia e levá-la para dentro das palavras, das histórias de cada fado. A voz dela vem bem de dentro e não se limita a sair pela garganta: é rosto, músculo, pernas, braços, mãos, o fado imprime-lhe emoções que se desenham cá fora, em gestos que noutros pareceriam desapropriados ou até ridículos mas que nela surgem tão naturais que a ninguém espantam. Gestos que a levam a percorrer o palco, a ajoelhar-se ou até a virar as costas ao público. Mas é a voz, rica nos graves e expressiva nos lances, que tudo comanda. E, tal como os improváveis vestidos que lhe seguiam os gestos sem um desajuste, como se fossem prolongamento da própria pele, também a voz, por mais sofrida, conseguiu sempre manter o brilho.
O concerto foi, como ela já avisara, o próprio disco. Inteiro, mas com as voltas trocadas. O que ele trouxe dos repertórios de Amália, Beatriz da Conceição, Manuel de Almeida ou Carlos Ramos, e tão bem gravou no disco de estreia, teve em palco demonstração sem réplica, que a cada vez os fados vão ganhando novos matizes. Madrugada sem sono, Vieste do fim do mundo e Meu amigo está longe, todos eles belíssimos, instalaram a solenidade necessária que o fado pedia. Mas a seguir vem o fado corrido de Antigamente e o ambiente tornou-se festivo. Para logo mergulhar no amor dilacerado de Voltaste ou Sei finalmente, com Gisela, de joelhos, a sofrer o fado.
Depois ficaram os três músicos (“os meus super-heróis”, como ela mais tarde os apresentou) para abraçarem com sabedoria e dinamismo o Canto de rua, de Carlos Paredes, música que, como as estações do ano, sabiamente se desdobra em alegria, melancolia e tristeza. Ricardo Parreira (guitarra portuguesa), Francisco Gaspar (baixo acústico) e Nelson Aleixo (viola de fado) deram conta do recado e receberam uma forte e merecida ovação no final.
Quando ela voltou, já de branco (mantendo a saia preta curta e os ténis pretos), foi para cantar Primavera triste (a boa marca de Aldina Duarte), (A casa da) Mariquinhas reinventada pela rapper Capicua e, antes de apresentar os músicos, o amor desmesurado de Sou tua. Mais uma vez, a festa depois da dor. Primeiro, com a rapsódia Malhões e vira e no final com o jovial Bailarico saloio, tendo pelo meio dois outros grandes momentos de fado: Maldição e Não venhas tarde, que ela cantou sentada, a ler a letra, como se lesse uma carta. Isto num cenário que primou pela contenção e pelo bom gosto, os três músicos distribuídos pelo palco, luzes que sugeriam lume e, no canto esquerdo, um espelho oval, uma mesa com copos de água e uma jarra de flores e uma cadeira, onde ela se sentou mais de uma vez, inclusive para cantar frente ao espelho.
No primeiro encore, com o disco já integralmente rodado, voltaram Madrugada sem sono (numa versão ainda mais pungente) e Antigamente, exuberante e gaiato. Como o público não desarmasse e as palmas cadenciadas continuassem, Gisela e os músicos voltaram para um segundo e último “encore”. Primeiro, com o imortal fado antigo: Julguei endoidecer, de Tristão da Silva e Júlio Proença (do repertório de Alcindo de Carvalho) e Naquela noite em Janeiro, de Francisco Ribeirinho e Acácio Gomes (do repertório de Argentina Santos). Depois com Bailarico saloio, para acabar em euforia.
No final, Gisela estava visivelmente emocionada mas feliz. Tinha enfrentado o público com uma surpreendente naturalidade, estilhaçando paradoxos (aparência pop em alma fadista, gestos enérgicos e lancinantes em lugar de um subtil recolhimento) e deixando clara uma vocação nata para os palcos. Quando lhe gritaram “És linda!” respondeu de forma desarmante: “Obrigada. Tu também”. E quando voltou a ouvir “És linda, mulher maldita!”, gracejou com a contradição. Jamais se atrapalhou, nem mesmo quando a voz se lhe abafou num nó ditado pela emoção (e isso sucedeu duas vezes na noite, uma delas no final de Meu amigo está longe).
Mas desenganem-se os que pensam que ela veio tomar o lugar de alguém. Gisela João veio apenas ajudar a engrandecer uma geração onde já brilham muitos e bons fadistas. Apesar da luz que irradia, não deixará outros na sombra. É que se havia um lugar para ela, estava vago. Porque não há mais ninguém assim.Nuno Pacheco
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