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Mísia: No fado gosto só de cantar a vida, a morte e o que está no meio

Entrevistas - Outubro 31, 2015
Foram precisos mais de vinte anos de carreira para Mísia dedicar um disco inteiro a Amália. E valeu bem a espera. O disco, duplo, sai hoje: Para Amália.

Depois de vários discos gravados e no auge de uma carreira que já passou as duas décadas, Mísia dedica um disco a Amália. Não um, mas dois num só. No primeiro, acompanhada apenas ao piano por Fabrizio Romano (professor do conservatório em Nápoles, pianista com reconhecida carreira a solo), reuniu nove fados dos mais pungentes de Amália, com a assinatura de vários poetas; no segundo, é acompanhada à guitarra portuguesa e à viola por Luís Guerreiro e Daniel Pinto, que já a haviam acompanhado num Tributo a Amália, em Madrid. Tributo esse que ajudou a cimentar a ideia deste disco, ideia antiga mas que Mísia adiou por, apesar do seu amor pela arte de Amália, querer firmar primeiro um caminho pessoal e uma carreira consistente. Conseguido isso, Para Amália é um disco de grande fôlego, um trabalho notável, decantando o génio amaliano no saber acumulado por Mísia ao longo dos anos.

Com quatro originais (de Amélia Muge, Mário Cláudio, Tiago Torres da Silva e da própria Mísia) a par de vários fados do repertório de Amália, e com participações vocais de Maria Bethânia, Martírio e do actor Rogério Samora, Para Amália é uma merecida “prenda” para uma voz eterna. Mísia vai apresentá-lo ao vivo sábado, 31 de Outubro, na Póvoa do Varzim, no Cine-Teatro Garrett, depois em Aveiro, no Teatro Aveirense, a 6 de Novembro, e por fim em Lisboa, no dia 14 de Novembro, no Cinema São Jorge, num concerto integrado no Misty Fest.

Como justifica esta sua “prenda a Amália” neste momento da sua carreira?
Fiz o caminho inverso do que às vezes se faz (não é uma crítica, é uma constatação), quando se começa uma carreira a cantar coisas da Amália. Gravei a Lágrima no meu primeiro disco e canto-a, pontualmente, mas tive sempre a prudência de não ir por aí. Até para poder ter, primeiro, um caminho meu. Agora, sim, posso dizer ‘vou dar uma prenda à Amália’, como dei uma prenda ao Carlos Paredes com o Canto [2003].

 

O facto de o primeiro disco ser só voz e piano tem ver com a forma como a Amália se relacionava com a linguagem dos poetas?
Sobretudo com a maneira que a Amália tinha de ensaiar, com o Alain Oulman, por exemplo. Ensaiava com o piano e depois é que passava para as guitarras. E ao mesmo tempo isso também me livra de qualquer aproximação que pudesse ser entendida por “imitação”, porque é bom uma pessoa encontrar o seu próprio caminho e as suas próprias emoções, em frases que até podiam nem ser das mais emotivas da Amália.

 

Piano e voz não é propriamente uma novidade no seu trabalho, basta lembrar Paixões diagonais com Maria João Pires a acompanhá-la…
Não é novo sequer na história do fado. Nunca fiz nada novo, só faço diferente.

 

Mesmo assim, é interessante esta regra de voz e piano em todo o primeiro disco.
Quando fui para estúdio, tinha já a ideia de gravar alguns temas com piano. Mas era para ser só um disco, depois é que me apercebi que teriam de ser dois. O primeiro é um disco profundo, grave, tem um peso… O público vai sofrer muito [risos].

 

Mais próximo do espírito do Fado Menor, não é?
Sim, porque no fado eu gosto só de cantar a vida, a morte e o que está no meio. Mais nada. As outras coisas acontecem, porque fazem parte do género, mas são distracções. O disco com piano canta a vida, a morte, canta o que eu gosto mesmo. O segundo é mais popular, tem mais fado tradicional e tem uma coisa muito importante, que sempre esteve na minha ideia inicial: pedir a autores que escrevam para alguém que já morreu.

 

O primeiro desses temas, Amália sempre e agora, foi escrito por Amélia Muge, com música de Mário Pacheco, e é cantado em dueto com Maria Bethânia…
O poema da Amélia é uma coisa extraordinária. Mas como a Bethânia canta num tom muito diferente do meu, tivemos que gravar a subir e a descer… A ideia foi de um dos músicos e ela, que é uma amaliana pura, e gostou muito de fazer essa participação. Eu já trabalho com a Bethânia há muitos anos, desde os tempos da Expo, em 1998. Ela foi a minha convidada no Afinidades e depois fizemos uma tournée no Brasil, no Canecão.

 

Amélia começou a escrever fados para a Mísia, em finais dos anos 1990, e só depois escreveu para outros fadistas. Como é que lhe sugeriu esta letra?
Telefonei-lhe, estava em estúdio com o disco dela, e disse-me que não ia ser possível, que tinha que ficar para outra vez. Mas no dia seguinte mandou-me isto. E disse-me: ‘Parece que estavam a conduzir a minha mão, num impulso, não tive que corrigir nada’. É como se a biografia da Amália continuasse a ser escrita. Aliás continua, não por mim, mas por todas as pessoas que continuam a fazer coisas em volta dela.

 

Outra boa surpresa é o poema de Mário Cláudio (Madrinha de nossas horas) no Fado Idanha, parece que foi escrito de propósito para essa música…
Ele é um grande fã da Amália. No dia da morte dela mandou um poema para mim, por fax (estava eu no Queen Elizabeth Hall), dizendo que só eu é que podia cantar aquilo. Chamava-se Xaile de silêncio e foi gravado no meu disco Ritual [2002]. Portanto, ele já tinha feito o grande poema para a Amália depois de ela morrer. Agora escreveu este, sem saber para que música é que o poema iria.

 

A escolha da música foi sua, depois?
Sim, é sempre minha. A arquitectura das músicas e dos poemas é uma coisa que eu gosto muito de fazer. E fica bem nesta, porque fala de coisas mais físicas. O Xaile do silêncio era uma coisa mais filosófica e este pedia uma música com mais ritmo.

 

E o Tiago Torres da Silva? Desafiou-o também ou ele já tinha o poema escrito?
Foi muito difícil para o Tiago escrever [Amália que não existo]. Porque ele tinha uma relação pessoal muito forte com a Amália. Aliás, nota-se que a letra é muito ambígua, não se sabe se é ele que está a falar ou se sou eu. Uma das coisas que eu pedia era que não escrevessem na primeira pessoa, porque não era uma coisa para a Mísia cantar, era para a Amália.

 

E há, por fim, a sua letra, Uma lágrima por engano…
É uma letra que brinca com os nomes dos fados, dos textos, mas acho que é correcta. Como a Amália gostava muito das canções napolitanas, tarantelas, o Fabrizio compôs para o piano e até julgava que ia tocá-la assim na gravação. Eu é que disse que tinha que passar o arranjo para guitarra e viola, porque esse fado entrava no segundo disco.

 

Gravado o disco, já arranjou tempo para o ouvir?
Estive tão centrada nas coisas logísticas, que só agora, quando recebi o disco e consegui sentar-me a ouvi-lo, é que comentei para mim mesma: gosto mesmo deste meu disco! [risos] Acho que faz sentido, que ficou coerente. A Amália tinha um talento múltiplo, em Portugal ainda não se conhecem muitas coisas que ela fez na carreira dela. É verdade que esgotou todos os adjectivos da crítica, foi considerada das maiores vozes do século XX, mas o que eu mais gosto na Amália é sobretudo o que ela aprendeu. Porque a voz, e ela tinha uma voz extraordinária, não é culpa nem mérito de ninguém. Agora o que ela fez, como ela cresceu, o que ela aprendeu, não sei quantas línguas, é incrível! Cantou o cancioneiro italiano, fez teatro de Federico García Lorca, fez filmes, tudo! Se formos ver as contemporâneas de Amália, uma Billie Holiday, uma Édith Piaf, estavam fechadas no mundo delas. E a Amália já estava na “world music”, o que era um sinal de grande contemporaneidade. Quando se faz tanta busca por uma nova Amália, é preciso dizer que a nova Amália é a própria Amália que ainda está por descobrir. Público



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