Mísia: No fado gosto só de cantar a vida, a morte e o que está no meio
Com quatro originais (de Amélia Muge, Mário Cláudio, Tiago Torres da Silva e da própria Mísia) a par de vários fados do repertório de Amália, e com participações vocais de Maria Bethânia, Martírio e do actor Rogério Samora, Para Amália é uma merecida “prenda” para uma voz eterna. Mísia vai apresentá-lo ao vivo sábado, 31 de Outubro, na Póvoa do Varzim, no Cine-Teatro Garrett, depois em Aveiro, no Teatro Aveirense, a 6 de Novembro, e por fim em Lisboa, no dia 14 de Novembro, no Cinema São Jorge, num concerto integrado no Misty Fest.
Como justifica esta sua “prenda a Amália” neste momento da sua carreira?
Fiz
o caminho inverso do que às vezes se faz (não é uma crítica, é uma
constatação), quando se começa uma carreira a cantar coisas da Amália.
Gravei a Lágrima no meu primeiro disco e canto-a, pontualmente,
mas tive sempre a prudência de não ir por aí. Até para poder ter,
primeiro, um caminho meu. Agora, sim, posso dizer ‘vou dar uma prenda à
Amália’, como dei uma prenda ao Carlos Paredes com o Canto [2003].
O facto de o primeiro disco ser só voz e piano tem ver com a forma como a Amália se relacionava com a linguagem dos poetas?
Sobretudo
com a maneira que a Amália tinha de ensaiar, com o Alain Oulman, por
exemplo. Ensaiava com o piano e depois é que passava para as guitarras. E
ao mesmo tempo isso também me livra de qualquer aproximação que pudesse
ser entendida por “imitação”, porque é bom uma pessoa encontrar o seu
próprio caminho e as suas próprias emoções, em frases que até podiam nem
ser das mais emotivas da Amália.
Piano e voz não é propriamente uma novidade no seu trabalho, basta lembrar Paixões diagonais com Maria João Pires a acompanhá-la…
Não é novo sequer na história do fado. Nunca fiz nada novo, só faço diferente.
Mesmo assim, é interessante esta regra de voz e piano em todo o primeiro disco.
Quando
fui para estúdio, tinha já a ideia de gravar alguns temas com piano.
Mas era para ser só um disco, depois é que me apercebi que teriam de ser
dois. O primeiro é um disco profundo, grave, tem um peso… O público vai
sofrer muito [risos].
Mais próximo do espírito do Fado Menor, não é?
Sim,
porque no fado eu gosto só de cantar a vida, a morte e o que está no
meio. Mais nada. As outras coisas acontecem, porque fazem parte do
género, mas são distracções. O disco com piano canta a vida, a morte,
canta o que eu gosto mesmo. O segundo é mais popular, tem mais fado
tradicional e tem uma coisa muito importante, que sempre esteve na minha
ideia inicial: pedir a autores que escrevam para alguém que já morreu.
O primeiro desses temas, Amália sempre e agora, foi escrito por Amélia Muge, com música de Mário Pacheco, e é cantado em dueto com Maria Bethânia…
O
poema da Amélia é uma coisa extraordinária. Mas como a Bethânia canta
num tom muito diferente do meu, tivemos que gravar a subir e a descer… A
ideia foi de um dos músicos e ela, que é uma amaliana pura, e gostou
muito de fazer essa participação. Eu já trabalho com a Bethânia há
muitos anos, desde os tempos da Expo, em 1998. Ela foi a minha convidada
no Afinidades e depois fizemos uma tournée no Brasil, no Canecão.
Amélia
começou a escrever fados para a Mísia, em finais dos anos 1990, e só
depois escreveu para outros fadistas. Como é que lhe sugeriu esta letra?
Telefonei-lhe,
estava em estúdio com o disco dela, e disse-me que não ia ser possível,
que tinha que ficar para outra vez. Mas no dia seguinte mandou-me isto.
E disse-me: ‘Parece que estavam a conduzir a minha mão, num impulso,
não tive que corrigir nada’. É como se a biografia da Amália continuasse
a ser escrita. Aliás continua, não por mim, mas por todas as pessoas
que continuam a fazer coisas em volta dela.
Outra boa surpresa é o poema de Mário Cláudio (Madrinha de nossas horas) no Fado Idanha, parece que foi escrito de propósito para essa música…
Ele
é um grande fã da Amália. No dia da morte dela mandou um poema para
mim, por fax (estava eu no Queen Elizabeth Hall), dizendo que só eu é
que podia cantar aquilo. Chamava-se Xaile de silêncio e foi
gravado no meu disco Ritual [2002]. Portanto, ele já tinha feito o
grande poema para a Amália depois de ela morrer. Agora escreveu este,
sem saber para que música é que o poema iria.
A escolha da música foi sua, depois?
Sim,
é sempre minha. A arquitectura das músicas e dos poemas é uma coisa que
eu gosto muito de fazer. E fica bem nesta, porque fala de coisas mais
físicas. O Xaile do silêncio era uma coisa mais filosófica e este pedia uma música com mais ritmo.
E o Tiago Torres da Silva? Desafiou-o também ou ele já tinha o poema escrito?
Foi muito difícil para o Tiago escrever [Amália que não existo].
Porque ele tinha uma relação pessoal muito forte com a Amália. Aliás,
nota-se que a letra é muito ambígua, não se sabe se é ele que está a
falar ou se sou eu. Uma das coisas que eu pedia era que não escrevessem
na primeira pessoa, porque não era uma coisa para a Mísia cantar, era
para a Amália.
E há, por fim, a sua letra, Uma lágrima por engano…
É
uma letra que brinca com os nomes dos fados, dos textos, mas acho que é
correcta. Como a Amália gostava muito das canções napolitanas,
tarantelas, o Fabrizio compôs para o piano e até julgava que ia tocá-la
assim na gravação. Eu é que disse que tinha que passar o arranjo para
guitarra e viola, porque esse fado entrava no segundo disco.
Gravado o disco, já arranjou tempo para o ouvir?
Estive
tão centrada nas coisas logísticas, que só agora, quando recebi o disco
e consegui sentar-me a ouvi-lo, é que comentei para mim mesma: gosto
mesmo deste meu disco! [risos] Acho que faz sentido, que ficou coerente.
A Amália tinha um talento múltiplo, em Portugal ainda não se conhecem
muitas coisas que ela fez na carreira dela. É verdade que esgotou todos
os adjectivos da crítica, foi considerada das maiores vozes do século
XX, mas o que eu mais gosto na Amália é sobretudo o que ela aprendeu.
Porque a voz, e ela tinha uma voz extraordinária, não é culpa nem mérito
de ninguém. Agora o que ela fez, como ela cresceu, o que ela aprendeu,
não sei quantas línguas, é incrível! Cantou o cancioneiro italiano, fez
teatro de Federico García Lorca, fez filmes, tudo! Se formos ver as
contemporâneas de Amália, uma Billie Holiday, uma Édith Piaf, estavam
fechadas no mundo delas. E a Amália já estava na “world music”, o que
era um sinal de grande contemporaneidade. Quando se faz tanta busca por
uma nova Amália, é preciso dizer que a nova Amália é a própria Amália
que ainda está por descobrir. Público