Júlio Resende
Arquivo - Novembro 23, 2015


Só os grandes pianistas conseguem fazer esquecer o instrumento, suspendendo-o em música pura. Júlio Resende conseguiu apanhar não só o fado e o fado da Amália como a própria Amália a cantar. Também Amália tocava muito mais do que o fado.
Quando se tem tanta lata como Júlio Resende é preciso muito talento e muita inconsciência. A inconsciência é a coragem dos sobredotados: é tal o entusiasmo de fazer o inadmissível que não resta lugar para o medo.
Claro que Júlio Resende não é a Amália em piano. A Amália em piano é uma coisa que não existe. O que ele faz é levar a Amália que traz dentro dele cá para fora, para o meio da gente, onde chega como música diferente que faz lembrar o prazer e a dor de ouvir Amália a cantar.
Quando toca Júlio Resende não vai buscar nada à Amália, ao fado ou à música. Tudo isso já lá está dentro dele, sentido e desejado como só ele consegue. Não existem, milagrosamente, quaisquer escrúpulos estéticos ou cuidados de manutenção de fronteiras entre formas de música. Não há nem o vício estéril do purismo nem a promiscuidade dengosa da fusão. Não há homenagem.
A música de Júlio Resende é um nascimento. Conhecemos os pais e a família mas sabemos já que não vai sair a ninguém. É aquilo com que se sonha sempre: uma música nova de uma só pessoa.Miguel Esteves Cardoso