Pedro Moutinho dá-nos a ouvir fados nossos
Há anos que o ouvem e aplaudem, mas raramente o terão ouvido num disco assim, de modo tão verdadeiro. Pedro Moutinho, irmão mais novo num trio de vozes notáveis (Camané, o mais velho, e Helder, o irmão do meio), tem em O Fado em Nós a sua jóia mais polida, o seu disco mais maduro até à data, a sua obra-prima. Nascido em Oeiras, em 11 de Novembro de 1976, gravou agora no Museu do Fado, voz e instrumentos a um só tempo, como nos momentos em que o fado é mais verdadeiro porque nasce ali, na perfeita comunhão de um instantâneo que não se repete. Depois de Primeiro Fado (2003), Encontro (2006), Um Copo de Sol (2009) e Lisboa Mora Aqui (2010), disco-colectânea que era mais do que isso, um rearrumar de fados sob nova temática, O Fado em Nós é o acerto de Pedro Moutinho com a sua alma fadista. E com que voz!
No disco anterior, a sua vocalização arriscava patamares altos, como se estivesse a distanciar-se do ponto em que a sua voz e a dos seus irmãos se parecem. Mas neste, onde se revela em tons mais graves, parece ter fixado a sua identidade. Sente isso?
Neste disco há uma
coisa muito importante: uma despreocupação com o canto. Estou a cantar
aqui de uma forma não-pensada, livre. Isso também tem a ver com a forma
como gravámos, todos ao mesmo tempo, e eu poder fechar os olhos como se
estivesse na casa de fados. A preocupação instrumental não é com o
arranjo, é com o acompanhamento. Há uma liberdade, muito difícil
conseguir em estúdio, que eu consegui neste disco.
Outra coisa que se sente aqui é uma interiorização muito grande dos fados, como se já os cantasse há imenso tempo. E no entanto parte deles são novos…
Estudei-os muito bem, estive horas e horas
de volta deles, a cantar sozinho, em casa. Fizemos dois ensaios antes de
começarmos a gravar. E o que eu fiz foi gravar esses ensaios, ouvi-los e
cantar por cima. Depois dava comigo a ir para aqui e para ali e a
cantá-los baixinho, para mim próprio. Houve letras em que precisei mesmo
do papel para me guiar, mas outras sabia-as de cor. E isso faz uma
grande diferença a nível das palavras, não tem nada a ver. Geralmente,
quando gravo um disco, tenho tendência para, quando vou cantar ao vivo,
cantar melhor do que gravei. Mas neste disco sinto, ao ouvi-lo, que
aquele é já o caminho. A interpretação que eu queria já lá está.
Ajuda-o o facto de os músicos serem os que já estão habituados a acompanhá-lo? O José Manuel Neto (guitarra), o Carlos Manuel Proença (viola), o Daniel Pinto (baixo)?
Eles são
muito fadistas. Já cá andam há muitos anos, têm muita experiência. E
para mim torna-se tudo mais fácil, há uma grande confiança, sinto-me em
casa. Dão-me calma. Há temas que precisam de um ambiente. Por exemplo:
do Meu amor sem direcção, com letra de Vasco de Lima Couto e música do fado tradicional, o Fado Tango, muito lento, fizemos quatro ou cinco takes e só conseguimos esse ambiente no último. Não é que os outros não tenham ficado bons… No Veio a saudade
até gravámos seis! Fomos ouvir o quarto e o quinto e o Carlos Manuel
Proença disse que faltava ali qualquer coisa. E o que era? Faltava o
silêncio. Porque são músicas que vivem muito do ambiente.
Como é que chegou a estes treze temas, a este repertório? Foi uma coisa pensada ao longo do tempo, teve um conceito por base?
Não, não foi muito pensado.
Mas a ideia do título, O Fado em Nós, tem algo por detrás. O que é?
Tem
por detrás um desejo meu. Que as pessoas, quando forem ouvir este
disco, encontrem um fado delas, algo com que se identifiquem.
Além do fado dos que tocam e cantam, também um fado dos que ouvem?
Um
fado dos que ouvem. Porque estamos a falar de um disco para o qual eu
fui buscar um passado que existe, na minha vida, no fado, através dos
fados tradicionais, através de cantar a Hermínia Silva ou o Carlos Ramos
(dois fados que não foram êxitos, que o grande público não conhece),
mas também olhar para o presente, para o que está a acontecer agora. E
aí vêm os poetas que eu tanto gosto, que é o caso da Amélia Muge e da
Manuela da Freitas, com as quais já tenho trabalhado, e também da Maria
do Rosário Pedreira, que para mim é uma estreia; eu já a adorava e
fiquei a adorar mais.
Alguns fados do repertório mais antigo vieram por via familiar, do seu pai?
O
meu pai teve uma grande influência no meu crescimento e na minha
aprendizagem como fadista e no conhecimento dos fados tradicionais. Eu
sou capaz de identificar a maioria dos fados tradicionais só por ouvir a
melodia e dizer: este é o Fado Tango, ou o Fado Lenitivo, o Corrido, o
Mouraria, o Licas, há tantos… E isso vem do meu pai. Ele sabia o nome de
praticamente todos os fados tradicionais.
Mas em relação às escolhas para este disco?
Aqui
fui à procura de fados que não têm sido gravados e dos quais gostava
muito – há muito do meu gosto neste disco. O Fado Amora não tem sido
muito gravado, o Fado Cigano praticamente ninguém o gravou. A letra de Se me dão a solidão
já existia, mas com outras músicas tradicionais, e eu pensei que ficava
muito bem com a música do Fado Cigano. O Fado da Saudade [aplicado à
letra de Maria do Rosário Pedreira, em Ao Deus dará], foi muito
difícil encontrar os herdeiros, para as autorizações. Porque não é
cantado nas casas de fado. É um fado de quadras, composto pelo
Sapateirinho da Bica.
Há, a meio do disco, uma junção curiosa: Fernando Pessoa e Armandinho…
Eu
disse à Amélia Muge: adorava cantar alguma coisa do Fernando Pessoa,
mas está tudo muito gravado. E ela foi buscar um livro de quadras e, do
meio daquele livro, escolheu cinco. E eu escolhi o Fado da Adiça, que
também não é gravado hoje em dia.
As letras novas foram feitas a pedido? Ou algumas já estavam escritas?
Algumas.
A Manuela de Freitas, por exemplo, envia-me letras e pergunta: ‘O que é
que achas? Fiz estas e acho que têm a ver contigo.’ Isso sucedeu com Sem querer e com Apenas uma história. Agora Só um beijo
foi uma ideia que eu lhe dei. Disse-lhe que gostava muito da palavra
“beijo” e ela fez essa letra, esses trocadilhos que eu adoro.
E parece uma sequência do Fado da Contradição, que a antecede no disco. Aliás, esse fado, sendo antigo, parece escrito por Manuela de Freitas…
É
verdade. Descobri-o num arquivo e, ao ver a letra, eu diria que era da
Manuela de Freitas, pela linguagem. Mas é um fado muito antigo, salvo
erro dos anos 1940/50. Já o fado que vem a seguir, Um carnaval,
do João Braga, falei com ele e ele incentivou-me a gravá-lo. É um pouco
uma mistura entre o Fado da Horas e algumas nuances africanas, de
morna. E a letra é do Alexandre O’Neill.
Os dois temas de Amélia Muge, foram pedidos especificamente?
O Leva-me contigo
foi ideia dela. Aliás, já estava pronto desde o disco anterior, mas
acabou por não entrar. Sugeri-lhe fazer dele um tema mais lento e ela
fez esta música lindíssima. Já o Fado em Nós teve a ver com o
disco e é uma estreia da Amélia a escrever para o fado tradicional. Ela
conseguiu pôr neste tema um pouco daquilo que é todo o disco.
Ela escreveu depois de ouvir a melodia?
Não.
Fez-me sextilhas. Depois sugeriu-me dois fados, que eram um pouco mais
lentos. Experimentei, mas achei que ficaria melhor num outro, o Fado Zé
Negro. E ela ouviu e deu-me razão. Porque as palavras entoam naquela
melodia, naquelas notas. E depois… Eu cresci no fado tradicional, adoro
fado tradicional. Independentemente de cantar fado musicado e temas
diferentes, o fado tradicional faz parte do mundo fadista, de todos os
fadistas. Nas casas de fado, a maioria dos fados ali cantados são
tradicionais. Eu sei que isso vai sempre assim, enquanto existirem casas
de fado e fadistas. Assumo isso como parte de mim. Como se estivesse cá
dentro. É meu. E é muito bom sentir isso. Sinto que me encontrei e que
cada vez me encontro mais.
Como é que classificaria este seu disco, perante alguém que não o conheça?
Acima
de tudo, é um disco de fado autêntico. Não quer ser outra coisa além
disso. Foi o que eu procurei fazer, acima de tudo. E estou muito feliz
com o resultado. Público