Sara Correia: “É preciso cantar cada vírgula”.
Entrevistas - Setembro 07, 2018
São cinco da tarde e a Praça do Município é palco do soundcheck mais concorrido de Lisboa. São os turistas que dão descanso às sandálias, os lisboetas que, saídos do trabalho, aproveitam o repouso sem consumo mínimo.
E todos embalados pela guitarra de Diogo Clemente, a guitarra portuguesa de Ângelo Freire, a viola-baixo de Marino de Freitas e a percussão de Vicky Marques. Mal eles sabiam que ainda faltava a estrela maior: Sara Correia, nova fadista da praça que dia 14 de Setembro edita o seu disco homónimo de estreia e que ali se apresenta ao vivo no Sou do Fado, iniciativa do Museu do Fado com a EGEAC, que consta da programação do Lisboa na Rua.
No final do soundcheck, Levi Condinho de 77 anos levanta-se do seu lugar na segunda fila onde já estava sentado quando chegámos e vai até Sara dizer-lhe que foi “fantástica” e pedir um merecido autógrafo no seu caderno. E este não é um caderno qualquer, é o 65º da série de Levi, um melómano que tem recortes de jornais, críticas, autógrafos, bilhetes de músicos que viu ao vivo. “Tenho aqui as críticas de todos os maestros que vi na Gulbenkian, gosto de clássica, jazz e fado. É a primeira vez que oiço a Sara, acho que agora os instrumentos estavam a abafar um bocado a voz, mas eles acertam isso logo, ainda bem que vim cedo, a voz dela é magnífica, assim fico na segunda fila”, admite.
Não é só Levi Condinho que precisa de conhecer melhor Sara Correia. Precisamos todos. Nasceu em Marvila, tem 25 anos, uma vida em casas de fado e uma voz que vai daqui à Lua. E este disco homónimo, tocado integralmente neste concerto, é, afinal, quase o seu primeiro disco. Quase.
Encontrei um disco seu na internet chamado “Destino”. Esse é que é o seu primeiro disco, certo?
Sim, isso foi um prémio, quando ganhei a Grande Noite do Fado, em 2007, além da estatueta ofereciam também o primeiro disco. Foi gravado num dia, aceitei de partida, vai ficar sempre na minha história e marcou aquele momento.
Em 2007 tinha que idade?
Treze? Acho que é isso. É um disco com dez ou onze canções, não me lembro bem, sou muito despassarada.
Aos treze? Anda nisto há muito tempo.
Sim, canto há quinze. Comecei a trabalhar muito cedo em casas de fado… trabalhar, bom, não é bem trabalhar porque eu faço aquilo que gosto. Com dez anos já cantava em casas de fado ao fim-de-semana.
Como é que lá chegou? A sua família já era do fado?
Sim, vou aos fados desde os meus três anos. E aqui começa a história: a minha tia ganha a Grande Noite do Fado em 1997 e eu em 2007. É mesmo curioso. Lembro-me de ser miúda, e isto que vou contar é mesmo verídico: a minha tia cantou às seis da manhã e naquela altura não se vencia a Grande Noite do Fado por júri, era por palmas. Ficámos a dormir no Coliseu, aquilo era das nove da noite à nove da manhã.
Não foram poucas as madrugadas. Vinho, xailes, petiscos e vozeirões. Um quarteto que já deu provas de ser um belo formador de fadistas nesta cidade. Além da tia, Joana Correia, mulher essencial no trajeto da sobrinha, que sempre a carregou pelo braço, que sempre a deixou escutar, houve outra pessoa fundamental: Armando Tavares. Um homem que tem uma escola de fado em Chelas e que todos os dias às nove da noite ia buscar Sara a casa para a meter a cantar. Assim como se fosse treinar, como se fosse, como tantos outros, ao karaté ou ao ballet, com as devidas diferenças, claro, até porque os seus golpes eram outros.
É quase como um arquiteto que, não conseguindo um trabalho como arquiteto num determinado ateliê, vai para lá como rececionista.
Exato. A casa de fados é a igreja de qualquer fadista, ali é que acontece tudo, posso tropeçar, posso levar o xaile ao contrário, como fiz na Grande Noite do Fado.
E depois disso começou a utilizá-lo sempre ao contrário?
Não. mas já usei muitas coisas ao contrário, faz parte de mim.
Como é que foi o período desde essa vitória na Grande Noite do Fado, em 2007, até agora, onde vai editar o primeiro disco a valer e numa altura que o seu trabalho tem sido bastante elogiado.
Há uns quatro anos comecei a pensar em fazer um disco. Mas achei que ainda não estava pronta. Um ano depois, o Diogo Clemente, que me conhece de menina, disse-me que achava que estava na altura. Então foram três anos um bocado compridos, a pesquisa foi intensa, o que se vai gravar, o que se vai dizer, o que quero para mim.
Quando é que acontece o momento de viragem no meio disto?
Fui uma vez cantar à Tasca do Chico, casa onde vou desde sempre, mas naquela noite correu muito bem, cantei cinco fados seguidos e foi assim uma loucura, já não houve mais fados, acabou a noite. E juro que não sabia que lá estava alguém da editora. Cheguei lá fora e vieram falar comigo. Marcámos uma reunião e aqui estou eu.
No final do soundcheck, Levi Condinho de 77 anos levanta-se do seu lugar na segunda fila onde já estava sentado quando chegámos e vai até Sara dizer-lhe que foi “fantástica” e pedir um merecido autógrafo no seu caderno. E este não é um caderno qualquer, é o 65º da série de Levi, um melómano que tem recortes de jornais, críticas, autógrafos, bilhetes de músicos que viu ao vivo. “Tenho aqui as críticas de todos os maestros que vi na Gulbenkian, gosto de clássica, jazz e fado. É a primeira vez que oiço a Sara, acho que agora os instrumentos estavam a abafar um bocado a voz, mas eles acertam isso logo, ainda bem que vim cedo, a voz dela é magnífica, assim fico na segunda fila”, admite.
Não é só Levi Condinho que precisa de conhecer melhor Sara Correia. Precisamos todos. Nasceu em Marvila, tem 25 anos, uma vida em casas de fado e uma voz que vai daqui à Lua. E este disco homónimo, tocado integralmente neste concerto, é, afinal, quase o seu primeiro disco. Quase.
Encontrei um disco seu na internet chamado “Destino”. Esse é que é o seu primeiro disco, certo?
Sim, isso foi um prémio, quando ganhei a Grande Noite do Fado, em 2007, além da estatueta ofereciam também o primeiro disco. Foi gravado num dia, aceitei de partida, vai ficar sempre na minha história e marcou aquele momento.
Em 2007 tinha que idade?
Treze? Acho que é isso. É um disco com dez ou onze canções, não me lembro bem, sou muito despassarada.
Aos treze? Anda nisto há muito tempo.
Sim, canto há quinze. Comecei a trabalhar muito cedo em casas de fado… trabalhar, bom, não é bem trabalhar porque eu faço aquilo que gosto. Com dez anos já cantava em casas de fado ao fim-de-semana.
Como é que lá chegou? A sua família já era do fado?
Sim, vou aos fados desde os meus três anos. E aqui começa a história: a minha tia ganha a Grande Noite do Fado em 1997 e eu em 2007. É mesmo curioso. Lembro-me de ser miúda, e isto que vou contar é mesmo verídico: a minha tia cantou às seis da manhã e naquela altura não se vencia a Grande Noite do Fado por júri, era por palmas. Ficámos a dormir no Coliseu, aquilo era das nove da noite à nove da manhã.
Não foram poucas as madrugadas. Vinho, xailes, petiscos e vozeirões. Um quarteto que já deu provas de ser um belo formador de fadistas nesta cidade. Além da tia, Joana Correia, mulher essencial no trajeto da sobrinha, que sempre a carregou pelo braço, que sempre a deixou escutar, houve outra pessoa fundamental: Armando Tavares. Um homem que tem uma escola de fado em Chelas e que todos os dias às nove da noite ia buscar Sara a casa para a meter a cantar. Assim como se fosse treinar, como se fosse, como tantos outros, ao karaté ou ao ballet, com as devidas diferenças, claro, até porque os seus golpes eram outros.
É quase como um arquiteto que, não conseguindo um trabalho como arquiteto num determinado ateliê, vai para lá como rececionista.
Exato. A casa de fados é a igreja de qualquer fadista, ali é que acontece tudo, posso tropeçar, posso levar o xaile ao contrário, como fiz na Grande Noite do Fado.
E depois disso começou a utilizá-lo sempre ao contrário?
Não. mas já usei muitas coisas ao contrário, faz parte de mim.
Como é que foi o período desde essa vitória na Grande Noite do Fado, em 2007, até agora, onde vai editar o primeiro disco a valer e numa altura que o seu trabalho tem sido bastante elogiado.
Há uns quatro anos comecei a pensar em fazer um disco. Mas achei que ainda não estava pronta. Um ano depois, o Diogo Clemente, que me conhece de menina, disse-me que achava que estava na altura. Então foram três anos um bocado compridos, a pesquisa foi intensa, o que se vai gravar, o que se vai dizer, o que quero para mim.
Quando é que acontece o momento de viragem no meio disto?
Fui uma vez cantar à Tasca do Chico, casa onde vou desde sempre, mas naquela noite correu muito bem, cantei cinco fados seguidos e foi assim uma loucura, já não houve mais fados, acabou a noite. E juro que não sabia que lá estava alguém da editora. Cheguei lá fora e vieram falar comigo. Marcámos uma reunião e aqui estou eu.
Dizia que a casa de fados é como uma igreja para um fadista. Neste momento a Sara está a largar um bocado a igreja, certo?
Não, vou à missa todos os domingos. Preciso de ir, todos os fadistas precisam. É onde acontece realmente fado, não há um alinhamento, as coisas acontecem naturalmente, portanto não vou deixar de ir, sempre que tiver um bocado vou.
O que digo é que a sua agenda está seguramente mais preenchida, ensaios, entrevistas, promoção. Como é que está a lidar com isso?
Olha, estou muito feliz. Claro que é cansativo, sobretudo da voz, mas sempre foi o que quis, portanto estou preparada e vamos a isso. Estou bastante ansiosa, mal consigo dormir, são demasiadas coisas.
E tem sido apresentada como a nova grande voz do fado, coisa que não é nova.
E vai voltar a acontecer. Nem sei, se queres que te diga, nem sei. Ainda estou a perceber isto tudo, mas é maravilhoso, quero, se possível, contaminar as novas gerações, que elas venham à procura do fado.
Ao mesmo tempo há uma estratégia comercial grande, que está sempre à procura dessa tal nova voz. Compreende que está dentro desta lógica?
Claro, mas não deixo de ser fadista. Não estou muito preocupada com isso, sei o que consigo transmitir às pessoas. Relativamente a esse lado, convém que exista, porque é uma ajuda efetiva para mim.
Não, vou à missa todos os domingos. Preciso de ir, todos os fadistas precisam. É onde acontece realmente fado, não há um alinhamento, as coisas acontecem naturalmente, portanto não vou deixar de ir, sempre que tiver um bocado vou.
O que digo é que a sua agenda está seguramente mais preenchida, ensaios, entrevistas, promoção. Como é que está a lidar com isso?
Olha, estou muito feliz. Claro que é cansativo, sobretudo da voz, mas sempre foi o que quis, portanto estou preparada e vamos a isso. Estou bastante ansiosa, mal consigo dormir, são demasiadas coisas.
E tem sido apresentada como a nova grande voz do fado, coisa que não é nova.
E vai voltar a acontecer. Nem sei, se queres que te diga, nem sei. Ainda estou a perceber isto tudo, mas é maravilhoso, quero, se possível, contaminar as novas gerações, que elas venham à procura do fado.
Ao mesmo tempo há uma estratégia comercial grande, que está sempre à procura dessa tal nova voz. Compreende que está dentro desta lógica?
Claro, mas não deixo de ser fadista. Não estou muito preocupada com isso, sei o que consigo transmitir às pessoas. Relativamente a esse lado, convém que exista, porque é uma ajuda efetiva para mim.
Acha importante ter um “bom ar”?
Muito.
E acha que tem?
Às vezes. Há umas manhãs em que duvido bastante.
De manhã não conta.
Ainda bem. Essa canção, “O Meu Bom Ar”, é uma letra do Diogo Clemente pela qual me apaixonei de primeira. Há aí uma historiazinha minha… não interessa, todos nós já passámos coisas que nos deixaram tristes, mais em baixo, e a mim interessa-me falar do amor, aquele amor difícil.
Há um fácil?
Um amor? Sim, o de agora é bom. Bom, por enquanto estou bem, tenho 25 anos e estou bem. A minha história de vida não é muito fácil, mas pronto, isso deu-me maturidade mais cedo, provavelmente não cantaria assim. Portanto, o meu bom ar é só de vez em quando.
Muito.
E acha que tem?
Às vezes. Há umas manhãs em que duvido bastante.
De manhã não conta.
Ainda bem. Essa canção, “O Meu Bom Ar”, é uma letra do Diogo Clemente pela qual me apaixonei de primeira. Há aí uma historiazinha minha… não interessa, todos nós já passámos coisas que nos deixaram tristes, mais em baixo, e a mim interessa-me falar do amor, aquele amor difícil.
Há um fácil?
Um amor? Sim, o de agora é bom. Bom, por enquanto estou bem, tenho 25 anos e estou bem. A minha história de vida não é muito fácil, mas pronto, isso deu-me maturidade mais cedo, provavelmente não cantaria assim. Portanto, o meu bom ar é só de vez em quando.
Acha que corre o risco de assustar alguns conservadores, com estes temas mais alegres?
Talvez. Mas repara, há coisas com as quais também não concordo. Cresci com gente que tinha algumas regras, mas as coisas têm vindo a evoluir. A Amália Rodrigues fez tudo, não venho aqui inventar nada. Mas não tenho medo, gosto do meu trabalho e isso é o mais importante. O meu canto é o fado tradicional, é o que mais gosto de fazer, mas também gosto de cantar coisas mais alegres.
E quais são essas coisas de que não gosta?
Não gosto de ver fadistas a cantar de calças de ganga. Faz-me um bocado confusão.
Então também é conservadora.
Sim, um bocadinho, nestas coisas sou um bocadinho. Há que ter um meio termo, ter um bocado de noção do que estamos a fazer tudo bem, que o fado tem várias formas de se vestir… também não gosto, por exemplo, daquilo de pegar numa letra só por pegar e não dizê-la bem.
A dicção?
Sim, é preciso cantar cada vírgula. Nem todos têm de fazer isto assim, mas para mim é assim que deve ser feito. Acho que a nova geração de fadistas podia procurar mais as casas de fado, os fadistas conceituados, os que se sentam ao nosso lado para nos ajudar.
A coisa lá foi escoando, Sara foi tirando os sapatos – “não sinto os pés, porra”, disse no final angustiado com os saltos altos enormes – e, tentando acalmar-se, garantiu-nos que estava sem palavras. Incrível, incrível, foi só o que lhe saiu durante uns tempos. “Estava muito emocionada, o sentido de responsabilidade é grande, não me estou a representar apenas a mim, estava muito ansiosa, mas depois passou-me”, diz. Passou-lhe a ansiedade mas o resto ficou. Ficou e foi bonito.
Talvez. Mas repara, há coisas com as quais também não concordo. Cresci com gente que tinha algumas regras, mas as coisas têm vindo a evoluir. A Amália Rodrigues fez tudo, não venho aqui inventar nada. Mas não tenho medo, gosto do meu trabalho e isso é o mais importante. O meu canto é o fado tradicional, é o que mais gosto de fazer, mas também gosto de cantar coisas mais alegres.
E quais são essas coisas de que não gosta?
Não gosto de ver fadistas a cantar de calças de ganga. Faz-me um bocado confusão.
Então também é conservadora.
Sim, um bocadinho, nestas coisas sou um bocadinho. Há que ter um meio termo, ter um bocado de noção do que estamos a fazer tudo bem, que o fado tem várias formas de se vestir… também não gosto, por exemplo, daquilo de pegar numa letra só por pegar e não dizê-la bem.
A dicção?
Sim, é preciso cantar cada vírgula. Nem todos têm de fazer isto assim, mas para mim é assim que deve ser feito. Acho que a nova geração de fadistas podia procurar mais as casas de fado, os fadistas conceituados, os que se sentam ao nosso lado para nos ajudar.
A coisa lá foi escoando, Sara foi tirando os sapatos – “não sinto os pés, porra”, disse no final angustiado com os saltos altos enormes – e, tentando acalmar-se, garantiu-nos que estava sem palavras. Incrível, incrível, foi só o que lhe saiu durante uns tempos. “Estava muito emocionada, o sentido de responsabilidade é grande, não me estou a representar apenas a mim, estava muito ansiosa, mas depois passou-me”, diz. Passou-lhe a ansiedade mas o resto ficou. Ficou e foi bonito.
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