Dulce Pontes: “A diferença que fiz no fado podia ter sido um suicídio artístico brutal“
Entrevistas - Setembro 29, 2018
Não gosta de comparações, mas diz que ajudou a dar "nova vida" à música portuguesa. Dulce Pontes tem 30 anos de carreira. E vai estar no Santa Casa Alfama para um concerto que "não vai ser só fado".
Não tivesse Dora abandonado a peça de teatro “Enfim Sós” para ir para o Brasil “por razões amorosas” e o anúncio de jornal que conduziu Dulce Pontes para o estrelato não teria sido publicado. O pai ainda lhe disse que não se devia confiar naquilo que vinha nos jornais, mas Dulce, motivada pela curiosidade, decidiu ligar para o número de telefone que estava no papel que havia guardado sem coragem de desembrulhar. Quando o fez deu início a uma carreira de três décadas com uma presença no Festival Eurovisão da Canção, concertos internacionais, projetos com artistas estrangeiros e dez álbuns — três dos quais duplos. Lá fora chamam-lhe diva. Cá, Dulce Pontes acredita ter feito a diferença na música portuguesa. Só não gosta que a comparem com Amália Rodrigues.
No ano em que celebra três décadas de carreira, Dulce Pontes vai estar no festival de fado Santa Casa Alfama esta sexta-feira, 28 de setembro, como cabeça de cartaz do palco principal. Em conversa em exclusivo com o , a artista recorda o início da carreira, fala sobre a evolução da música portuguesa, aquilo que lhe falta fazer e aquilo que nunca fará. E deixa um aviso: o concerto no Santa Casa Alfama não vai ter apenas fado. Mas foi por aí que começámos a conversa.
Fez diferença no fado?
Acho que fiz. Agora a esta distância vejo que sim. Bem, eu nunca gravei um disco só de fado. No Lusitana havia pelo menos um tema que andava ali a roçar um bocadinho esse tipo de ambiente. Mas concretamente Lágrimas, que foi o meu segundo álbum mas que eu considero que tenha sido o primeiro, foi uma grande maluqueira. Aquilo era baterias, guitarras elétricas, percussão. Eram coisas que não se imaginavam dentro do fado e na música popular portuguesa. Até mesmo no folclore eu usava de tudo, enfim! É óbvio que isso teve um impacto grande. Mas essa diferença que fiz podia ter sido um suicídio artístico brutal também.
Porque é que diz isso?
Porque se hoje, se se ouve o Lágrimas, até se sente alguma contemporaneidade tendo em conta o que foi feito no fado nos últimos anos, nessa altura não. Para já, era quase proibido cantar alguma coisa que a Amália já tivesse cantado. Quase! E por outro lado era impensável recorrer a essas novidades para um “Povo Que Lavas no Rio”. A “Canção do Mar” não é um fado, mas nesse álbum tem o “Lágrima” numa estrutura diferente do que foi gravado originalmente pela Amália e também a “Estranha Forma de Vida”. Eram os únicos dois fados que estavam ali tocados de uma forma mais tradicional.
Mas não foi um suicídio. Até a levou lá para fora.
É engraçado porque há um contraponto muito interessante. Nessa altura quando se saía de Portugal muita gente nos perguntava: “Porque é que canta uma música que é considerada fora de moda?”. De repente hoje em dia reconhecem-me como alguém que contribuiu com um grão de areia para a música portuguesa. Eu não estava nada à espera de uma receção tão boa por parte das pessoas. Foi ótimo e depois foi um desenrolar.
Apesar disso, houve alturas em que se afastou do fado. Porquê?
Fiz isso por respeito à Amália. Foi em 1999 ou 2000, na altura em que gravei O Primeiro Canto. Nesse álbum estão dois fados, que foram os primeiros que compus: um era o “Fado Mãe” e outro era o “Porto de Mágoas”. Se é que se podem chamar fados, mas acho que pelo menos consegui baralhar algumas holandesas com o “Fado Mãe” porque elas achavam que era um fado tradicional. Enfim: posso dizer que sou uma amaliana. E nessa altura sentia que, por respeito a ela, deveria afastar-me para ficar bem claro que eu tinha uma identidade própria e que ela era única e insubstituível. Nunca haverá uma segunda Amália. Há sempre aquela necessidade de procurar uma. E eu entendo e respeito, mas não concordo. E nunca quis de forma alguma colocar-me nesse papel.
Mas ao fim de todo este tempo, pensa em dedicar-se mais ao fado em breve?
Se calhar qualquer dia dá-me na cabeça e faço isso, mas duvido um bocado, para ser sincera. Porque gosto é de cantar coisas diferentes e tenho essa possibilidade. Fico feliz quando se referem a mim como um tipo de música. Quando dizem que um determinado artista “é tipo Dulce Pontes”, eu penso: “Ótimo!”. Dá para sentir aquele peso de ter de me definir. Embora tenha incluído sempre fados em todos os álbuns que gravei, que já são dez — não está assim muito mau em 30 anos de carreira, ainda para mais tendo em conta que os últimos três são duplos. Esses fados são sempre gravados de uma forma mais pessoal e mais ligada à música clássica porque acho que há aí um elo muito interessante. Mas nunca gravei um álbum só de fados nem sei se alguma vez o farei. Também nunca fiz um concerto só de fado.
Não o vai fazer no Santa Casa Alfama?
Não e avisei logo sobre isso. A estrutura com que o concerto está montado está com base ainda no último álbum, o Peregrinação. Claro que podemos acrescentar alguns fados. E eu quero, faço questão até. Mas não vai ser um concerto de fados. De resto, é corresponder ao máximo àquele ambiente de viagem que eu gosto de criar em cada concerto que faço. Cada um é único, mas só fado não vai ser.
O que é que a distingue enquanto artista?
Acho que a característica que me distingue é mesmo a versatilidade e o facto de não fazer as coisas de uma forma convencional. De haver primeiro um álbum, depois a promoção e a seguir a tour. Eu faço tudo ao contrário: ando um bocado… não digo ao sabor do vento, mas espero que os círculos criativos venham sem ter de obedecer a determinados cânones que eu sei que existem. Existem e fazem parte do mercado, porque somos parte de um produto, mas eu não me identifico com isso. É a minha liberdade também que faz a diferença. Foi a minha querida Maria Rosário Coelho, que era a minha professora de canto, que me ensinou isso. Essa versatilidade é o que me caracteriza e distingue. Não quer dizer que não haja mais ninguém que o seja, mas se calhar não o expressam de forma tão aberta. Gosto de arriscar, não vou pelo óbvio. Seria facílimo fazer um concerto de best of.
E não o faz porquê?
Seria com certeza uma grande festa, mas só o vou fazer quando celebrar 50 anos de carreira. Porque se uma pessoa deixar de criar, depois não há forma de voltar. Quando se entra nesse caminho de reproduzir e repetir exatamente as mesmas coisas, se eu cedesse a essa tentação, seria muito complicado depois voltar a criar fosse o que fosse. Porque não me permitiriam, o próprio público.
Foi isso que lhe ensinou Maria Rosário Coelho?
Sim, de certa forma sim. Ela era uma grande amiga, caramba. Recordo-me de tantas histórias. E há muitas que nunca vou contar. Nos últimos tempos passávamos mais tempo a conversar do que a trabalhar. Mas recordo-me da primeira vez, passado um ano de ter começado a ter aulas de canto com ela de, de repente, a voz ter-me saído para um sítio diferente. Não sei explicar: foi em termos de projeção. Fiquei um pouco assustada e disse: “Oh Rosarinho, eu sinto que isto não é a minha voz”. E ela respondeu: “Não, senhora. Essa é que é a sua voz”. Eu não tinha a mínima noção de colocação de voz e como tinha um timbre muito forte, sobretudo nos agudos, era complicado de gerir. Foi um primeiro passinho no amadurecimento da minha voz. E continua a amadurecer sempre.
Reparou nisso quando trabalhou com Ennio Morricone.
Sim, porque é um trabalho contínuo que também depende das músicas. Por exemplo, no Focus com o mestre Ennio Morricone, caramba! Existem temas que estão gravados nesse álbum que são para instrumentos solo. Não são para voz. E que têm extensões de três oitavas que é uma coisa maluca. Exigiu de mim que me levasse mesmo, mesmo, mesmo ao limite. É como ele dizia: “Então agora vamos a um triplo salto mortal à retaguarda”. É claro que se confunde muitas vezes também o grito com o canto em função da tonalidade e da música. Depende do poema, do que ele diz.
Trabalhar com ele foi preponderante para a sua carreira?
Sem dúvida. Conhecer o Ennio Morricone foi muito importante para a minha carreira. Também foi preponderante ter passados pelos palcos por onde passei, ter conhecidos determinadas pessoas — algumas delas que nada têm a ver com música — e ter comunicado com Virgílio Castelo e o Henrique Viana, que me ajudaram tanto, tanto, tanto. Ou com poetas como João Mendonça e o brasileiro Gastão Neves. Escreveu até um livro que me sensibilizou muito porque se chamava Ouvi Dulce Cantar. Ele era bem velhinho. Ele telefonou para o escritório e enviou algumas poemas e disse que tinha tido algumas ideias depois de me ter visto no Rio de Janeiro, num concerto em Ipanema com o Caetano Veloso. Ele estava lá e depois entrou em contacto, dizendo que ia escrever um livro. Mas houve outro momento igualmente importante: ter tido a coragem de me libertar ainda antes e de ter feito O Primeiro Canto, que é um dos álbuns que fiz de que mais gosto.
E os momentos menos bons, quais são?
Não me apetece falar sobre eles. Mas houve, claro! E alguns, pronto, caricatos até. Mas é a cair que aprendemos a ficar de pé outra vez.
Venceu o Festival RTP da Canção com 24 anos. Como foi esse momento para uma jovem artista?
Achava que quem ia ganhar eram os Bloco, um grupo que tinha o Ricardo Carriço. Mas nessa altura fiquei surpreendida porque havia ali um clima, vá. Digamos assim: havia ali, pronto… eu não tinha editora nem uma estrutura por detrás de mim. Mas adorei que fosse em Roma, que a minha primeira viagem de avião tenha sido para Roma. O Festival da Eurovisão nesse ano foi na Cinecittà. Ver aqueles cenários todos dos filmes e ter cantado pela primeira vez com uma orquestra, guardo tudo isso na memória num cantinho especial. Os inícios estão sempre cheios de uma luz própria de que não estamos à espera.
Como foi esse início?
Foi tudo por causa de um anúncio no jornal. Foi em 1988. O anúncio dizia: “Procuram-se jovens entre os 18 anos e os 24 anos. Telefone-nos que temos uma oportunidade para si”. Eu na altura dava aulas de dança, algo que continuei a fazer durante dois anos até a minha vida dar uma volta completa. Era uma peça de teatro, a Enfim Sós. Guardei o papelinho e não me atrevi a telefonar. O meu pai dizia: “Essas coisas dos jornais não dá para confiar!”. Eu respondi: “Está bem, eu sei, mas vamos telefonar só para ver o que é”. Então estava lá o Zé da Ponte, que me fez o teste da voz. A companhia tinha sido formada pelo Carlos Cruz no Teatro Maria Matos e precisavam urgentemente de uma cantora para substituir a Dora — que também esteve no Festival uns anos antes — porque ela tinha ido para o Brasil por razões amorosas. A coisa mais bonita era isto. O início foi maravilhoso: conheci o Eugénio Salvador, a Luísa Barbosa, o Fernando Ferrão. Tive oito dias para aprender a peça toda, as coreografias e as canções. Foi muito giro.
Falou sobre a Dora sobre isso?
Isso é muito curioso. A peça acabava com um casamento e havia uma certa semelhança com a história da Cinderela. E foi engraçadíssimo porque uma vez estava no Rio de Janeiro e vi alguém a acenar-me. O segurança não deixava passar era pessoa, por isso eu fui até lá ver quem era. Era a Dora! Nós não nos conhecíamos pessoalmente. E eu deu-lhe um grande abraço e disse: “Pá, obrigada! Se não fosses tu isto nunca tinha tido começado”. Ela foi muito querida. Nunca nos conhecemos muito bem, mas aquele bocadinho que tivemos juntas foi bom. E pude agradecer-lhe finalmente.
Depois do Enfim Sós ainda fez outra peça de teatro.
Sim, chamava-se Quem Tramou o Comendador. Lembro-me de um episódio que aconteceu na ante-estreia dessa peça de teatro, em que estavam só os jornalistas e os convidados. Havia um tiro — pumba! — e havia um blackout a seguir. Nesse dia, a pólvora tinha um cheiro que era uma coisa horrível, de maneira que ficaram os artistas e parte do público todos a tossir com os olhos vermelhos. Tivemos de abrir as janelas do teatro e recomeçar. Mas os inícios realmente têm uma luz muito especial.
A “Lusitana Paixão” e a “Canção do Mar” têm essa luz?
A “Lusitana Paixão” só é intemporal cá em Portugal porque lá fora a “Canção do Mar” é que se destaca. A “Canção do Mar” já foi gravada por tanta, mas tanta gente. Eu não sabia, mas fui descobrir um blogue que tem um artigo incrível sobre as voltas que essa música já deu. Ainda antes da Amália, porque ela gravou a “Canção do Mar” com o poema “Solidão” para o filme Amantes do Tejo na mesma altura em que gravou também “O Barco Negro”. A “Lusitana Paixão”, pronto, tem aquele: “Mas!” que é sempre cantada com ganas. Mas isso é só cá em Portugal. Lá fora não creio que tenha tido algum impacto. Até houve uma vez que quis cantá-la num festival já não me lembro onde, mas nenhum dos músicos sabia tocá-la. Tive de a cantar a capella com o público.
Nunca temeu ver a sua carreira resumida a essas canções em termos de popularidade?
Não, porque eu sempre soube que ia fazer outras coisas. Mas também há “Lágrima” e “O Infante” e outras coisas diferentes. Mas é verdade que a “Canção do Mar” me tem acompanhado ao longo do tempo. É que eu nunca me fartei dessa canção: eu costumo cansar-me e tenho depois de tirar férias delas. Mas isso não aconteceu com esta música em particular. Para além de que parece que a “Canção do Mar” é um manancial infinito de construir arranjos diferentes, com sonoridades diferentes e com músicas diferentes. Mas algum dia há de travar! Claro que houve coisas que deixei pelo caminho: gostava tanto de gravar um álbum com alguns clássicos do jazz, mas nunca fiz. Mas isso é por outros motivos, também: eu tenho a minha própria editora, que é a Ondeia, e tenho limites financeiros. Tudo aquilo que eu decida gravar ou fazer tenho de ser eu a pagar.
Falava-me de liberdade há pouco. Foi por ela que criou a própria editora?
Sim. Queria escapar das sonoridades eletrónicas dos meus primeiros trabalhos, que já me estavam a cansar bastante, para recorrer apenas a instrumentos acústicos de diferentes países e para conhecer artistas incríveis. Não gosto de colocar a minha capacidade criativa ao serviço do que dá jeito às agendas das editoras. Foi por isso que decidi criar a minha própria editora, a Ondeia: foi uma opção para poder ter liberdade e não me serem impostas com determinadas coisas com as quais eu não me relacionava bem. Se calhar, hoje em dia talvez tivesse conseguido dar a volta às coisas de forma diferente. Mas depois eu sou Carneiro, sou muito teimosa. Porque, na altura, se alguém se chegava ao pé de mim e dizia aquilo que eu tinha de fazer, eu só respondia: “Por favor, não tente estar nos meus sapatos”. Não havia entendimento possível. Tirava-me energia para trabalhar.
Em que medida fazia as coisas de forma diferente?
Não sei. Poderia ter sido menos impulsiva, mas não tinha muita paciência, para quando uma editora me queria obrigar a gravar uma determinada coisa porque tinha um contrato com aqueles autores, que iam receber um dado valor por isso e que era tudo uma questão de interesse e nada mais. Se aquele material fosse bom, ótimo. Mas não era. Posso dizer que na altura, quando o maestro Enno Morricone disse que estava pronto para gravar, a editora não queria porque não lhe era conveniente: achavam que — porque depois há muita gente que acha muita coisa — não era boa altura. Eles realmente são pagos para isso e estudaram para fazer essa gestão. Mas atrapalham. Pelo menos aqueles que eu conheci atrapalharam, pronto. Podia ter sido diferente.
Então como conseguiu gravar com Morricone?
Fiz um braço de ferro durante um ano. Ele só não gravou com outra cantora — porque isso foi-lhe sugerido, obviamente — porque ele não quis. Ele é muito mais paciente do que eu. Às vezes via-o por exemplo com a Orquestra do Norte da Europa e havia um coro, mas um coro que punha as flores a murchar. Eu fui ter com ele e estivemos lá. Depois de estar para aí umas quatro horas a ensaiar ainda ficou lá mais duas. E o diretor do coro estava lá todo muito pernicoques. A certa altura, o Morricone grita para ver se aquilo anima! Porque iam para ali com um pouco daquela postura das orquestras de música clássica, de acharem que música de filme era musiquete. Ele era muito paciente, muito mais em comparação comigo, meu Deus!
Também cantou com artistas como Boccelli e até tem atuado mais lá fora do que cá. Sente-se uma embaixadora?
Eu não gosto assim muito de títulos, mas posso dizer que sim, está bem. Porque a qualquer momento isso tudo acaba. É bom que tenha feito umas coisas bonitas, que as pessoas se identifiquem com elas e que tenhamos sonhado juntos e que tenhamos sentido coisas juntos. Isso sempre foi o mais importante para mim. Por isso é que sempre dei prioridade aos concertos ao vivo quando comparando com os discos. Sempre. E continuo a dar. Porque eu gosto mesmo é do vivo, do contacto com o público e de sentir abertura por parte dele de abrir coisas completamente novas. E isso, por experiência própria e falando de vários cantos do planeta, as pessoas estão abertas para ouvir coisas que nunca ouviram.
Isso também acontece em Portugal?
Também tem acontecido. Eu não canto muito em Portugal, mas nos sítios por onde passei por cá — no Porto ou no Centro Cultural de Belém, por exemplo — as pessoas estão abertas a novas experiências. Ainda não tinha lançado o Peregrinação e já o cantava cá em Portugal. Agora esse álbum já está em metamorfose: comecei a incluir umas coisas novas. Digamos que Peregrinação vai assumir a forma metafórica do caminho que percorri ao longo destes 30 anos.
Gostava de ter atuado mais em Portugal?
Gostava porque assim estava mais perto de casa e passava mais tempo com os meus filhos. E porque gosto muito do público português, obviamente, porque sei que há muita gente que tem pena de não me ouvir e de não saber. Há pessoas que nem sabem que eu gravei O Coração Tem Três Portas, o Mentes ou mesmo o Peregrinação, que é este último. Falta exposição mediática e falta distribuição. Porque uma editora pequenina não tem a mesma capacidade que uma grande ou mesmo multinacional. Portanto, não se chega da mesma forma às pessoas. Não aconselho a ninguém que queira fazer o mesmo que eu: só distribuição não chega. Tem de ser com contratos de licenciamento. Ou trabalhando com editoras de world music.
No ano em que celebra três décadas de carreira, Dulce Pontes vai estar no festival de fado Santa Casa Alfama esta sexta-feira, 28 de setembro, como cabeça de cartaz do palco principal. Em conversa em exclusivo com o , a artista recorda o início da carreira, fala sobre a evolução da música portuguesa, aquilo que lhe falta fazer e aquilo que nunca fará. E deixa um aviso: o concerto no Santa Casa Alfama não vai ter apenas fado. Mas foi por aí que começámos a conversa.
Fez diferença no fado?
Acho que fiz. Agora a esta distância vejo que sim. Bem, eu nunca gravei um disco só de fado. No Lusitana havia pelo menos um tema que andava ali a roçar um bocadinho esse tipo de ambiente. Mas concretamente Lágrimas, que foi o meu segundo álbum mas que eu considero que tenha sido o primeiro, foi uma grande maluqueira. Aquilo era baterias, guitarras elétricas, percussão. Eram coisas que não se imaginavam dentro do fado e na música popular portuguesa. Até mesmo no folclore eu usava de tudo, enfim! É óbvio que isso teve um impacto grande. Mas essa diferença que fiz podia ter sido um suicídio artístico brutal também.
Porque é que diz isso?
Porque se hoje, se se ouve o Lágrimas, até se sente alguma contemporaneidade tendo em conta o que foi feito no fado nos últimos anos, nessa altura não. Para já, era quase proibido cantar alguma coisa que a Amália já tivesse cantado. Quase! E por outro lado era impensável recorrer a essas novidades para um “Povo Que Lavas no Rio”. A “Canção do Mar” não é um fado, mas nesse álbum tem o “Lágrima” numa estrutura diferente do que foi gravado originalmente pela Amália e também a “Estranha Forma de Vida”. Eram os únicos dois fados que estavam ali tocados de uma forma mais tradicional.
Mas não foi um suicídio. Até a levou lá para fora.
É engraçado porque há um contraponto muito interessante. Nessa altura quando se saía de Portugal muita gente nos perguntava: “Porque é que canta uma música que é considerada fora de moda?”. De repente hoje em dia reconhecem-me como alguém que contribuiu com um grão de areia para a música portuguesa. Eu não estava nada à espera de uma receção tão boa por parte das pessoas. Foi ótimo e depois foi um desenrolar.
Apesar disso, houve alturas em que se afastou do fado. Porquê?
Fiz isso por respeito à Amália. Foi em 1999 ou 2000, na altura em que gravei O Primeiro Canto. Nesse álbum estão dois fados, que foram os primeiros que compus: um era o “Fado Mãe” e outro era o “Porto de Mágoas”. Se é que se podem chamar fados, mas acho que pelo menos consegui baralhar algumas holandesas com o “Fado Mãe” porque elas achavam que era um fado tradicional. Enfim: posso dizer que sou uma amaliana. E nessa altura sentia que, por respeito a ela, deveria afastar-me para ficar bem claro que eu tinha uma identidade própria e que ela era única e insubstituível. Nunca haverá uma segunda Amália. Há sempre aquela necessidade de procurar uma. E eu entendo e respeito, mas não concordo. E nunca quis de forma alguma colocar-me nesse papel.
Mas ao fim de todo este tempo, pensa em dedicar-se mais ao fado em breve?
Se calhar qualquer dia dá-me na cabeça e faço isso, mas duvido um bocado, para ser sincera. Porque gosto é de cantar coisas diferentes e tenho essa possibilidade. Fico feliz quando se referem a mim como um tipo de música. Quando dizem que um determinado artista “é tipo Dulce Pontes”, eu penso: “Ótimo!”. Dá para sentir aquele peso de ter de me definir. Embora tenha incluído sempre fados em todos os álbuns que gravei, que já são dez — não está assim muito mau em 30 anos de carreira, ainda para mais tendo em conta que os últimos três são duplos. Esses fados são sempre gravados de uma forma mais pessoal e mais ligada à música clássica porque acho que há aí um elo muito interessante. Mas nunca gravei um álbum só de fados nem sei se alguma vez o farei. Também nunca fiz um concerto só de fado.
Não o vai fazer no Santa Casa Alfama?
Não e avisei logo sobre isso. A estrutura com que o concerto está montado está com base ainda no último álbum, o Peregrinação. Claro que podemos acrescentar alguns fados. E eu quero, faço questão até. Mas não vai ser um concerto de fados. De resto, é corresponder ao máximo àquele ambiente de viagem que eu gosto de criar em cada concerto que faço. Cada um é único, mas só fado não vai ser.
O que é que a distingue enquanto artista?
Acho que a característica que me distingue é mesmo a versatilidade e o facto de não fazer as coisas de uma forma convencional. De haver primeiro um álbum, depois a promoção e a seguir a tour. Eu faço tudo ao contrário: ando um bocado… não digo ao sabor do vento, mas espero que os círculos criativos venham sem ter de obedecer a determinados cânones que eu sei que existem. Existem e fazem parte do mercado, porque somos parte de um produto, mas eu não me identifico com isso. É a minha liberdade também que faz a diferença. Foi a minha querida Maria Rosário Coelho, que era a minha professora de canto, que me ensinou isso. Essa versatilidade é o que me caracteriza e distingue. Não quer dizer que não haja mais ninguém que o seja, mas se calhar não o expressam de forma tão aberta. Gosto de arriscar, não vou pelo óbvio. Seria facílimo fazer um concerto de best of.
E não o faz porquê?
Seria com certeza uma grande festa, mas só o vou fazer quando celebrar 50 anos de carreira. Porque se uma pessoa deixar de criar, depois não há forma de voltar. Quando se entra nesse caminho de reproduzir e repetir exatamente as mesmas coisas, se eu cedesse a essa tentação, seria muito complicado depois voltar a criar fosse o que fosse. Porque não me permitiriam, o próprio público.
Foi isso que lhe ensinou Maria Rosário Coelho?
Sim, de certa forma sim. Ela era uma grande amiga, caramba. Recordo-me de tantas histórias. E há muitas que nunca vou contar. Nos últimos tempos passávamos mais tempo a conversar do que a trabalhar. Mas recordo-me da primeira vez, passado um ano de ter começado a ter aulas de canto com ela de, de repente, a voz ter-me saído para um sítio diferente. Não sei explicar: foi em termos de projeção. Fiquei um pouco assustada e disse: “Oh Rosarinho, eu sinto que isto não é a minha voz”. E ela respondeu: “Não, senhora. Essa é que é a sua voz”. Eu não tinha a mínima noção de colocação de voz e como tinha um timbre muito forte, sobretudo nos agudos, era complicado de gerir. Foi um primeiro passinho no amadurecimento da minha voz. E continua a amadurecer sempre.
Reparou nisso quando trabalhou com Ennio Morricone.
Sim, porque é um trabalho contínuo que também depende das músicas. Por exemplo, no Focus com o mestre Ennio Morricone, caramba! Existem temas que estão gravados nesse álbum que são para instrumentos solo. Não são para voz. E que têm extensões de três oitavas que é uma coisa maluca. Exigiu de mim que me levasse mesmo, mesmo, mesmo ao limite. É como ele dizia: “Então agora vamos a um triplo salto mortal à retaguarda”. É claro que se confunde muitas vezes também o grito com o canto em função da tonalidade e da música. Depende do poema, do que ele diz.
Trabalhar com ele foi preponderante para a sua carreira?
Sem dúvida. Conhecer o Ennio Morricone foi muito importante para a minha carreira. Também foi preponderante ter passados pelos palcos por onde passei, ter conhecidos determinadas pessoas — algumas delas que nada têm a ver com música — e ter comunicado com Virgílio Castelo e o Henrique Viana, que me ajudaram tanto, tanto, tanto. Ou com poetas como João Mendonça e o brasileiro Gastão Neves. Escreveu até um livro que me sensibilizou muito porque se chamava Ouvi Dulce Cantar. Ele era bem velhinho. Ele telefonou para o escritório e enviou algumas poemas e disse que tinha tido algumas ideias depois de me ter visto no Rio de Janeiro, num concerto em Ipanema com o Caetano Veloso. Ele estava lá e depois entrou em contacto, dizendo que ia escrever um livro. Mas houve outro momento igualmente importante: ter tido a coragem de me libertar ainda antes e de ter feito O Primeiro Canto, que é um dos álbuns que fiz de que mais gosto.
E os momentos menos bons, quais são?
Não me apetece falar sobre eles. Mas houve, claro! E alguns, pronto, caricatos até. Mas é a cair que aprendemos a ficar de pé outra vez.
Venceu o Festival RTP da Canção com 24 anos. Como foi esse momento para uma jovem artista?
Achava que quem ia ganhar eram os Bloco, um grupo que tinha o Ricardo Carriço. Mas nessa altura fiquei surpreendida porque havia ali um clima, vá. Digamos assim: havia ali, pronto… eu não tinha editora nem uma estrutura por detrás de mim. Mas adorei que fosse em Roma, que a minha primeira viagem de avião tenha sido para Roma. O Festival da Eurovisão nesse ano foi na Cinecittà. Ver aqueles cenários todos dos filmes e ter cantado pela primeira vez com uma orquestra, guardo tudo isso na memória num cantinho especial. Os inícios estão sempre cheios de uma luz própria de que não estamos à espera.
Como foi esse início?
Foi tudo por causa de um anúncio no jornal. Foi em 1988. O anúncio dizia: “Procuram-se jovens entre os 18 anos e os 24 anos. Telefone-nos que temos uma oportunidade para si”. Eu na altura dava aulas de dança, algo que continuei a fazer durante dois anos até a minha vida dar uma volta completa. Era uma peça de teatro, a Enfim Sós. Guardei o papelinho e não me atrevi a telefonar. O meu pai dizia: “Essas coisas dos jornais não dá para confiar!”. Eu respondi: “Está bem, eu sei, mas vamos telefonar só para ver o que é”. Então estava lá o Zé da Ponte, que me fez o teste da voz. A companhia tinha sido formada pelo Carlos Cruz no Teatro Maria Matos e precisavam urgentemente de uma cantora para substituir a Dora — que também esteve no Festival uns anos antes — porque ela tinha ido para o Brasil por razões amorosas. A coisa mais bonita era isto. O início foi maravilhoso: conheci o Eugénio Salvador, a Luísa Barbosa, o Fernando Ferrão. Tive oito dias para aprender a peça toda, as coreografias e as canções. Foi muito giro.
Falou sobre a Dora sobre isso?
Isso é muito curioso. A peça acabava com um casamento e havia uma certa semelhança com a história da Cinderela. E foi engraçadíssimo porque uma vez estava no Rio de Janeiro e vi alguém a acenar-me. O segurança não deixava passar era pessoa, por isso eu fui até lá ver quem era. Era a Dora! Nós não nos conhecíamos pessoalmente. E eu deu-lhe um grande abraço e disse: “Pá, obrigada! Se não fosses tu isto nunca tinha tido começado”. Ela foi muito querida. Nunca nos conhecemos muito bem, mas aquele bocadinho que tivemos juntas foi bom. E pude agradecer-lhe finalmente.
Depois do Enfim Sós ainda fez outra peça de teatro.
Sim, chamava-se Quem Tramou o Comendador. Lembro-me de um episódio que aconteceu na ante-estreia dessa peça de teatro, em que estavam só os jornalistas e os convidados. Havia um tiro — pumba! — e havia um blackout a seguir. Nesse dia, a pólvora tinha um cheiro que era uma coisa horrível, de maneira que ficaram os artistas e parte do público todos a tossir com os olhos vermelhos. Tivemos de abrir as janelas do teatro e recomeçar. Mas os inícios realmente têm uma luz muito especial.
A “Lusitana Paixão” e a “Canção do Mar” têm essa luz?
A “Lusitana Paixão” só é intemporal cá em Portugal porque lá fora a “Canção do Mar” é que se destaca. A “Canção do Mar” já foi gravada por tanta, mas tanta gente. Eu não sabia, mas fui descobrir um blogue que tem um artigo incrível sobre as voltas que essa música já deu. Ainda antes da Amália, porque ela gravou a “Canção do Mar” com o poema “Solidão” para o filme Amantes do Tejo na mesma altura em que gravou também “O Barco Negro”. A “Lusitana Paixão”, pronto, tem aquele: “Mas!” que é sempre cantada com ganas. Mas isso é só cá em Portugal. Lá fora não creio que tenha tido algum impacto. Até houve uma vez que quis cantá-la num festival já não me lembro onde, mas nenhum dos músicos sabia tocá-la. Tive de a cantar a capella com o público.
Nunca temeu ver a sua carreira resumida a essas canções em termos de popularidade?
Não, porque eu sempre soube que ia fazer outras coisas. Mas também há “Lágrima” e “O Infante” e outras coisas diferentes. Mas é verdade que a “Canção do Mar” me tem acompanhado ao longo do tempo. É que eu nunca me fartei dessa canção: eu costumo cansar-me e tenho depois de tirar férias delas. Mas isso não aconteceu com esta música em particular. Para além de que parece que a “Canção do Mar” é um manancial infinito de construir arranjos diferentes, com sonoridades diferentes e com músicas diferentes. Mas algum dia há de travar! Claro que houve coisas que deixei pelo caminho: gostava tanto de gravar um álbum com alguns clássicos do jazz, mas nunca fiz. Mas isso é por outros motivos, também: eu tenho a minha própria editora, que é a Ondeia, e tenho limites financeiros. Tudo aquilo que eu decida gravar ou fazer tenho de ser eu a pagar.
Falava-me de liberdade há pouco. Foi por ela que criou a própria editora?
Sim. Queria escapar das sonoridades eletrónicas dos meus primeiros trabalhos, que já me estavam a cansar bastante, para recorrer apenas a instrumentos acústicos de diferentes países e para conhecer artistas incríveis. Não gosto de colocar a minha capacidade criativa ao serviço do que dá jeito às agendas das editoras. Foi por isso que decidi criar a minha própria editora, a Ondeia: foi uma opção para poder ter liberdade e não me serem impostas com determinadas coisas com as quais eu não me relacionava bem. Se calhar, hoje em dia talvez tivesse conseguido dar a volta às coisas de forma diferente. Mas depois eu sou Carneiro, sou muito teimosa. Porque, na altura, se alguém se chegava ao pé de mim e dizia aquilo que eu tinha de fazer, eu só respondia: “Por favor, não tente estar nos meus sapatos”. Não havia entendimento possível. Tirava-me energia para trabalhar.
Em que medida fazia as coisas de forma diferente?
Não sei. Poderia ter sido menos impulsiva, mas não tinha muita paciência, para quando uma editora me queria obrigar a gravar uma determinada coisa porque tinha um contrato com aqueles autores, que iam receber um dado valor por isso e que era tudo uma questão de interesse e nada mais. Se aquele material fosse bom, ótimo. Mas não era. Posso dizer que na altura, quando o maestro Enno Morricone disse que estava pronto para gravar, a editora não queria porque não lhe era conveniente: achavam que — porque depois há muita gente que acha muita coisa — não era boa altura. Eles realmente são pagos para isso e estudaram para fazer essa gestão. Mas atrapalham. Pelo menos aqueles que eu conheci atrapalharam, pronto. Podia ter sido diferente.
Então como conseguiu gravar com Morricone?
Fiz um braço de ferro durante um ano. Ele só não gravou com outra cantora — porque isso foi-lhe sugerido, obviamente — porque ele não quis. Ele é muito mais paciente do que eu. Às vezes via-o por exemplo com a Orquestra do Norte da Europa e havia um coro, mas um coro que punha as flores a murchar. Eu fui ter com ele e estivemos lá. Depois de estar para aí umas quatro horas a ensaiar ainda ficou lá mais duas. E o diretor do coro estava lá todo muito pernicoques. A certa altura, o Morricone grita para ver se aquilo anima! Porque iam para ali com um pouco daquela postura das orquestras de música clássica, de acharem que música de filme era musiquete. Ele era muito paciente, muito mais em comparação comigo, meu Deus!
Também cantou com artistas como Boccelli e até tem atuado mais lá fora do que cá. Sente-se uma embaixadora?
Eu não gosto assim muito de títulos, mas posso dizer que sim, está bem. Porque a qualquer momento isso tudo acaba. É bom que tenha feito umas coisas bonitas, que as pessoas se identifiquem com elas e que tenhamos sonhado juntos e que tenhamos sentido coisas juntos. Isso sempre foi o mais importante para mim. Por isso é que sempre dei prioridade aos concertos ao vivo quando comparando com os discos. Sempre. E continuo a dar. Porque eu gosto mesmo é do vivo, do contacto com o público e de sentir abertura por parte dele de abrir coisas completamente novas. E isso, por experiência própria e falando de vários cantos do planeta, as pessoas estão abertas para ouvir coisas que nunca ouviram.
Isso também acontece em Portugal?
Também tem acontecido. Eu não canto muito em Portugal, mas nos sítios por onde passei por cá — no Porto ou no Centro Cultural de Belém, por exemplo — as pessoas estão abertas a novas experiências. Ainda não tinha lançado o Peregrinação e já o cantava cá em Portugal. Agora esse álbum já está em metamorfose: comecei a incluir umas coisas novas. Digamos que Peregrinação vai assumir a forma metafórica do caminho que percorri ao longo destes 30 anos.
Gostava de ter atuado mais em Portugal?
Gostava porque assim estava mais perto de casa e passava mais tempo com os meus filhos. E porque gosto muito do público português, obviamente, porque sei que há muita gente que tem pena de não me ouvir e de não saber. Há pessoas que nem sabem que eu gravei O Coração Tem Três Portas, o Mentes ou mesmo o Peregrinação, que é este último. Falta exposição mediática e falta distribuição. Porque uma editora pequenina não tem a mesma capacidade que uma grande ou mesmo multinacional. Portanto, não se chega da mesma forma às pessoas. Não aconselho a ninguém que queira fazer o mesmo que eu: só distribuição não chega. Tem de ser com contratos de licenciamento. Ou trabalhando com editoras de world music.
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