Dulce Pontes: "Nunca pensei que um dia seria cantora"
Entrevistas - Fevereiro 28, 2022
Dulce Pontes está de volta com um novo disco. Depois de vários álbuns duplos, o novo Perfil é um retornar às suas origens, do fado às canções e até à dança.
A conversa com Dulce Pontes tem lugar numa sala insípida da editora Universal. Neste regresso com um novo disco, Perfil, feito numa editora maior - depois de anos a editar os discos na própria chancela (Ondeia Música) - a conversa foi tudo menos dessaborosa. Falou-se do porquê de regressar a Hermínia, Marceneiro e Fernando Maurício neste novo trabalho, da normalização do excesso da mediatização em Portugal, da estranheza da pandemia e até de política, ou antipolítica. E ainda o teatro, a obra inacabada a que Dulce Pontes promete também regressar, a seu tempo.
Neste seu novo trabalho decidiu que o primeiro single fosse uma música com 100 anos, Amapola, porquê?
A escolha não foi minha, mas concordei. Mas o ridículo é que pensava que o Amapola era do Ennio Morricone, por causa do filme Era Uma Vez na América (1984), só depois descobri o autor, Joseph Lacalle. Sempre gostei da melodia, mas não sabia que tinha imensas versões. Na minha, quis tirar-lhe o tom dramático, porque achei que tinha ali uma leitura muito interessante mais despreocupada e introduzi a guitarra portuguesa. Mas só no início é que se nota um pouco do fado, depois é um tema divertido, com leveza e que dispõe bem. Gosto de ter músicas para brincar para que nos concertos possam existir climas diferentes.
O seu último disco de originais é de 2017, Peregrinação. Depois de um início de carreira em que gravou muitos discos seguidos tem tido um maior espaçamento nos lançamentos, é propositado?
Sim, porque quis ficar sozinha E criar a minha própria editora a Ondeia Música, onde gravei os três discos anteriores, discos duplos. Isso permitiu-me fazer o trabalho ao contrário: experimentei primeiro as músicas ao vivo e só depois as gravei. Quando não existe material criativo e matéria para comunicar e partilhar não vale a pena. E se for mera repetição já entra, para mim, no âmbito do pecado. Depois do disco Focus (2003), gravado na altura para a Universal Holanda, fiz as coisas ao meu ritmo com mais liberdade, com o meu tempo, mas também com a responsabilidade de arcar com todas as despesas.
Mas o público estranha esses tempos de ausência, não acha?
No estrangeiro, sobretudo Espanha, Itália e Grécia, existe um público seleto, em Portugal se não existe a constante exposição mediática e se não há presença da TV as pessoas ficam a pensar que já não cantamos, ou que nos fomos embora ou que já não queremos saber delas. Ainda existe muito esse pensamento. Em Portugal não há espaço para toda a gente estar em constante exposição mediática. Não faz sentido. Acho que tanta exposição roça o ridículo. Não quero isso para mim.
Regressando a este novo trabalho. O que nos quer contar com este Perfil?
Tem muito a ver com a minha infância, com os meus inícios. E foi curioso porque não foi uma coisa consciente. É estranho... parece que as coisas ganham vida própria... mas não é para estar aqui a mistificar. Quis dar homenagem a Amália Rodrigues, que não precisa, mas não o podia deixar de fazer num álbum com fados, mas quis destacar Alfredo Marceneiro, Hermínia Silva, Fernando Maurício. Uma homenagem a essas pessoas que, sem ser a Amália, precisam de destaque e de quem há tanta coisa para contar. As gerações mais novas sabem pouco de Alfredo Marceneiro e de Hermínia Silva, por exemplo. Mas este disco é uma coisa muito minha, das minhas raízes, e para Portugal. E tenho que destacar ainda a participação do Ricardo Ribeiro que é um cantor e compositor fantástico, e todos os músicos que participaram no disco.
É um álbum de fado?
Não. É um álbum que tem fados, cinco, e tem canções. E também tem folclore na música A Laranjinha. E ainda temos a Amapola, que não é carne nem é peixe (risos).
Num dos vídeos que já lançou deste álbum assume a sua faceta de bailarina. Sentiu essa vontade, uma necessidade, de dançar ou voltar a fazê-lo?
Tinha essa necessidade, mas não sabia. Quem me desbloqueou foi o Gonçalo Claro que realizou o vídeo da música [Na Língua das Canções] e fez as fotos todas para o álbum. Foi ele que me ajudou a desbloquear. Antes tinha vergonha... tive muitos anos de aulas de dança e depois muitos anos sem dançar. Mas nada foi planeado foi apenas uma convergência... as coisas parece que acontecem por si só... acho que ainda estou a processar o aconteceu com este álbum
Teve formação em piano, dança, canto...
Sim, comecei aos sete anos com aulas de piano e fiz o primeiro exame no Conservatório com onze. E depois comecei a ficar farta daquilo tudo porque era muito teórico, mas lá continuei. E depois percebi que o queria mesmo era dançar, foi a minha segunda paixão. Para além de gostar de escrever. No fundo, sempre tive necessidade de comunicar, independentemente do meio. Mas nunca pensei que um dia seria cantora. Só comecei a estudar canto depois de já ter ido para o teatro e ter o quarto ano de piano e ter dado aulas. O canto sempre esteve presente, mas nunca foi algo que tivesse planeado fazer.
Alguém uma vez disse que a Dulce estava entre o Zeca Afonso e a Amália Rodrigues, é entre este espectro tão diferente que se situa musicalmente?
Neste trabalho não podemos bipolarizar porque existe Hermínia, Fernando Maurício, Alfredo Marceneiro e existo eu como compositora, para além do Ricardo Ribeiro. Daí o nome Perfil. Mas sendo um disco português da forma como pensei e sonhei, sentia que tinha este álbum em dívida.
E a pandemia, como foi passar por ela nos tempos de isolamento?
Durante a covid não tive vontade de compor, de escrever, de fazer nada. Foi um vazio total. Em julho do ano passado fiz o primeiro concerto, em Madrid, no Palácio Real. Fez-me muita confusão ver aquelas pessoas com máscara e dois metros de distância. Parecia um filme de terror. Mas aquele limite todo de não podermos isto e aquilo, fez-me pensar. Será que voltaria a haver concertos?... pensei em tudo.
Desde muito nova que os seus pais a incentivaram nas artes. Fez o mesmo com os seus filhos?
Sim. Eles não gostam que fale deles, mas o meu filho mais velho sempre aprendeu música e em Bragança teve aulas de bateria. E depois começou a compor.
Ainda vota em branco como disse em tempos?
Não tenho cor política, não gosto de política. E acho que aquilo que temos hoje não está a resultar, e não estou a falar só de Portugal. Não haverá outra forma de fazer as coisas? Às vezes penso na utopia do Agostinho da Silva que dizia que cabe a cada um cumprir o seu poeta à solta. Mas estamos tão longe disso. Nunca tive cor política, gostava de ter, seria mais fácil, mas não faz sentido da forma como as coisas estão. Não acredito em sistema político nenhum, mas não sou anarca, como uma vez já me chamaram. Mas prova-se que aquilo que temos, e não estou a falar em Portugal, não resulta. Com a quantidade de pessoas válidas que existem e que realmente têm conhecimento não se podia fazer melhor?
E acha que a cultura é bem tratada em Portugal?
Não me sinto capaz de responder a essa pergunta. Percebo que as coisas mudaram na cultura depois da covid, mas não consigo responder.
Falando em mudanças, a indústria da música tem mudado nos últimos anos, os algoritmos escolhem por nós, a música está menos "física". Como intérprete, como olha para isso?
Sem ser muito purista posso dizer que o Primeiro Canto (1999) foi gravado todo em fita, fiz questão. Se faz diferença? Faz sim! Aliás, este regresso do vinil, que já tem algum tempo, é um sinal. Acho que vai haver sempre quem comece a perceber o que se perde. As gerações mais novas vão começar a perceber as questões de qualidade de som... e mais importante é saber como conseguir um resultado o mais orgânico possível com as novas tecnologias, e isso pode ser muito interessante e desafiante.
Neste seu novo trabalho decidiu que o primeiro single fosse uma música com 100 anos, Amapola, porquê?
A escolha não foi minha, mas concordei. Mas o ridículo é que pensava que o Amapola era do Ennio Morricone, por causa do filme Era Uma Vez na América (1984), só depois descobri o autor, Joseph Lacalle. Sempre gostei da melodia, mas não sabia que tinha imensas versões. Na minha, quis tirar-lhe o tom dramático, porque achei que tinha ali uma leitura muito interessante mais despreocupada e introduzi a guitarra portuguesa. Mas só no início é que se nota um pouco do fado, depois é um tema divertido, com leveza e que dispõe bem. Gosto de ter músicas para brincar para que nos concertos possam existir climas diferentes.
O seu último disco de originais é de 2017, Peregrinação. Depois de um início de carreira em que gravou muitos discos seguidos tem tido um maior espaçamento nos lançamentos, é propositado?
Sim, porque quis ficar sozinha E criar a minha própria editora a Ondeia Música, onde gravei os três discos anteriores, discos duplos. Isso permitiu-me fazer o trabalho ao contrário: experimentei primeiro as músicas ao vivo e só depois as gravei. Quando não existe material criativo e matéria para comunicar e partilhar não vale a pena. E se for mera repetição já entra, para mim, no âmbito do pecado. Depois do disco Focus (2003), gravado na altura para a Universal Holanda, fiz as coisas ao meu ritmo com mais liberdade, com o meu tempo, mas também com a responsabilidade de arcar com todas as despesas.
Mas o público estranha esses tempos de ausência, não acha?
No estrangeiro, sobretudo Espanha, Itália e Grécia, existe um público seleto, em Portugal se não existe a constante exposição mediática e se não há presença da TV as pessoas ficam a pensar que já não cantamos, ou que nos fomos embora ou que já não queremos saber delas. Ainda existe muito esse pensamento. Em Portugal não há espaço para toda a gente estar em constante exposição mediática. Não faz sentido. Acho que tanta exposição roça o ridículo. Não quero isso para mim.
Regressando a este novo trabalho. O que nos quer contar com este Perfil?
Tem muito a ver com a minha infância, com os meus inícios. E foi curioso porque não foi uma coisa consciente. É estranho... parece que as coisas ganham vida própria... mas não é para estar aqui a mistificar. Quis dar homenagem a Amália Rodrigues, que não precisa, mas não o podia deixar de fazer num álbum com fados, mas quis destacar Alfredo Marceneiro, Hermínia Silva, Fernando Maurício. Uma homenagem a essas pessoas que, sem ser a Amália, precisam de destaque e de quem há tanta coisa para contar. As gerações mais novas sabem pouco de Alfredo Marceneiro e de Hermínia Silva, por exemplo. Mas este disco é uma coisa muito minha, das minhas raízes, e para Portugal. E tenho que destacar ainda a participação do Ricardo Ribeiro que é um cantor e compositor fantástico, e todos os músicos que participaram no disco.
É um álbum de fado?
Não. É um álbum que tem fados, cinco, e tem canções. E também tem folclore na música A Laranjinha. E ainda temos a Amapola, que não é carne nem é peixe (risos).
Num dos vídeos que já lançou deste álbum assume a sua faceta de bailarina. Sentiu essa vontade, uma necessidade, de dançar ou voltar a fazê-lo?
Tinha essa necessidade, mas não sabia. Quem me desbloqueou foi o Gonçalo Claro que realizou o vídeo da música [Na Língua das Canções] e fez as fotos todas para o álbum. Foi ele que me ajudou a desbloquear. Antes tinha vergonha... tive muitos anos de aulas de dança e depois muitos anos sem dançar. Mas nada foi planeado foi apenas uma convergência... as coisas parece que acontecem por si só... acho que ainda estou a processar o aconteceu com este álbum
Teve formação em piano, dança, canto...
Sim, comecei aos sete anos com aulas de piano e fiz o primeiro exame no Conservatório com onze. E depois comecei a ficar farta daquilo tudo porque era muito teórico, mas lá continuei. E depois percebi que o queria mesmo era dançar, foi a minha segunda paixão. Para além de gostar de escrever. No fundo, sempre tive necessidade de comunicar, independentemente do meio. Mas nunca pensei que um dia seria cantora. Só comecei a estudar canto depois de já ter ido para o teatro e ter o quarto ano de piano e ter dado aulas. O canto sempre esteve presente, mas nunca foi algo que tivesse planeado fazer.
Alguém uma vez disse que a Dulce estava entre o Zeca Afonso e a Amália Rodrigues, é entre este espectro tão diferente que se situa musicalmente?
Neste trabalho não podemos bipolarizar porque existe Hermínia, Fernando Maurício, Alfredo Marceneiro e existo eu como compositora, para além do Ricardo Ribeiro. Daí o nome Perfil. Mas sendo um disco português da forma como pensei e sonhei, sentia que tinha este álbum em dívida.
E a pandemia, como foi passar por ela nos tempos de isolamento?
Durante a covid não tive vontade de compor, de escrever, de fazer nada. Foi um vazio total. Em julho do ano passado fiz o primeiro concerto, em Madrid, no Palácio Real. Fez-me muita confusão ver aquelas pessoas com máscara e dois metros de distância. Parecia um filme de terror. Mas aquele limite todo de não podermos isto e aquilo, fez-me pensar. Será que voltaria a haver concertos?... pensei em tudo.
Desde muito nova que os seus pais a incentivaram nas artes. Fez o mesmo com os seus filhos?
Sim. Eles não gostam que fale deles, mas o meu filho mais velho sempre aprendeu música e em Bragança teve aulas de bateria. E depois começou a compor.
Ainda vota em branco como disse em tempos?
Não tenho cor política, não gosto de política. E acho que aquilo que temos hoje não está a resultar, e não estou a falar só de Portugal. Não haverá outra forma de fazer as coisas? Às vezes penso na utopia do Agostinho da Silva que dizia que cabe a cada um cumprir o seu poeta à solta. Mas estamos tão longe disso. Nunca tive cor política, gostava de ter, seria mais fácil, mas não faz sentido da forma como as coisas estão. Não acredito em sistema político nenhum, mas não sou anarca, como uma vez já me chamaram. Mas prova-se que aquilo que temos, e não estou a falar em Portugal, não resulta. Com a quantidade de pessoas válidas que existem e que realmente têm conhecimento não se podia fazer melhor?
E acha que a cultura é bem tratada em Portugal?
Não me sinto capaz de responder a essa pergunta. Percebo que as coisas mudaram na cultura depois da covid, mas não consigo responder.
Falando em mudanças, a indústria da música tem mudado nos últimos anos, os algoritmos escolhem por nós, a música está menos "física". Como intérprete, como olha para isso?
Sem ser muito purista posso dizer que o Primeiro Canto (1999) foi gravado todo em fita, fiz questão. Se faz diferença? Faz sim! Aliás, este regresso do vinil, que já tem algum tempo, é um sinal. Acho que vai haver sempre quem comece a perceber o que se perde. As gerações mais novas vão começar a perceber as questões de qualidade de som... e mais importante é saber como conseguir um resultado o mais orgânico possível com as novas tecnologias, e isso pode ser muito interessante e desafiante.
Artigos Relacionados
Comentar