Filipa Vieira, cantar o fado como quem respira
Notícias - Abril 12, 2023
Começou ainda menina e a observação atenta do que faziam os mais velhos foi a sua escola de fado. Filipa Vieira acaba de lançar o single Vai dar banho ao cão, com que apresenta o álbum Sabe Deus.
Lembra-se da noite em que cantou em público pela primeira vez, mas não saberia dizer com a mesma precisão em que momento o fado se lhe agarrou à pele: Filipa Vieira, 35 anos, não perde de vista as origens populares ("mesmo punks", diz) do fado e zela por um "altar" pessoal de que fazem parte, entre outros nomes, Amália, claro, mas também Beatriz da Conceição, Esmeralda Amoedo, Celeste Rodrigues. Este amor e respeito não lhe tolhem, todavia, os movimentos quando se trata de interpretar temas originais, quer em termos de sonoridades, quer de letras: "O fado é uma música urbana e, como tal, acompanha as próprias transformações da sociedade. Não podemos esquecer que a contracultura, os movimentos alternativos, às vezes mesmo marginais, são a própria essência do fado. A aristocracia associou-se depois porque era muito tentador, mas os primeiros fadistas eram os punks da sua época."
Foi com esta convicção que Filipa avançou para o single de lançamento do álbum Sabe Deus, com o título Vai dar banho ao cão, com música de Tiago Pais Dias. O inusitado refrão, explica, "foi ficando sempre, apesar das mudanças que íamos fazendo na letra. Acho que este tema quis mesmo chamar-se assim." Na origem, conta ainda Filipa, está a necessidade de confrontar uma sociedade misógina e patriarcal com os constrangimentos que ainda coloca à liberdade das mulheres: "É a reação a uma situação que me aconteceu nos santos populares do ano passado. Estava um calor imenso e tive de fechar o casaco até acima para pararem de me assediar. Ora, isto é uma coisa que acontece a todas nós, independentemente de sermos altas, baixas, com mais ou menos peso, e de forma recorrente. Fomos educadas a suportar este ultraje em silêncio porque nos foi sendo insinuado que, de uma maneira ou de outra, a culpa é sempre nossa porque teríamos provocado. Por outro lado, também sabemos que, se respondemos de forma assertiva, podemos pôr a nossa segurança em risco. Se quisermos, este tema é o meu convite à reflexão sobre comportamentos que se eternizam contra toda a lógica." E lá está a letra, a contar: "Olá boneca!"/Onde é festa?/Ai que a menina não presta!/Só pode ser anedota/Muito idiota/Hey oh miúda/Será que é muda/Um copo não se recusa/E Quando estala o verniz/A Carlota diz .../Vai dar banho ao cão"
O gosto por este género musical foi crescendo ainda na infância, alimentado pelos pais: "A minha família é do Norte e sempre teve muita ligação a grupos etnográficos. O meu pai cantava muito em festas de família e em clubes e eu fui-lhe tomando o gosto." Nascida em Lisboa, Filipa tinha 11 anos quando cantou pela primeira vez em público. Lembra-se que foi num clube e que lá chegou porque a tia conhecia alguém na direção, que procurava sempre novos talentos: "Eu só sabia dois fados, que eram A Lenda da Fonte e Tudo isto é Fado. Lembro-me que me enganei na letra de um deles e comecei a chorar, envergonhada."
Estes percalços infantis não a demoveram. Um ano depois, iria à Grande Noite do Fado, no Coliseu de Lisboa, e começou a fazer o circuito das casas de fados de Lisboa, acompanhada pelos pais ou por Armando Tavares, o mentor do Clube de Fado, falecido no final do ano passado, "um homem de uma generosidade imensa que ia com os miúdos a lugares míticos como a Baiuca, a Mesa de Frades ou ao Bairro Alto. Na altura também havia o circuito das coletividades, que era muito giro e deixou de haver. Ali, encontrávamos um ambiente de partilha com a população. Era tudo muito verdadeiro e genuíno."
Tímida, a pequena Filipa ficava a observar tudo e a assimilar: "Quando eu comecei a cantar não havia Google, nós passávamos as letras dos fados uns aos outros, escritas num papelinho." Aprendeu a ouvir e ver Beatriz da Conceição ("ela entrava na sala e aquilo já era fado. A sua presença era muito forte"), Maria Valejo, Maria da Nazaré, Esmeralda Amoedo, Lenita Gentil, Celeste Rodrigues mas também homens como Camané ou Ricardo Ribeiro. "Ensinam-nos às vezes sem saber, pela forma como se movem, como comunicam, pela paixão que têm. É um sentimento, é uma maneira de estar socialmente."
Assim foi constituindo Filipa aquilo a que chama a sua tribo. Na noite em que falamos com ela, estava no Fado ao Carmo, a casa de Rodrigo Costa Félix e Luís Guerreiro, bem próxima, como o nome indica, do Largo do Carmo. Acompanham-na os guitarristas André Ramos e António Martins. Admite que este é hoje um dos lugares em que prefere atuar, também pelo ambiente que ali encontra: "Ficamos muitas vezes fora de horas em tertúlia, a partilhar música e experiências. Somos gente que sente as coisas da mesma maneira e nos mesmos sítios, independentemente das histórias de vida poderem ser diferentes."
Mas este sentimento de pertença a uma tribo não a impede de se atirar para fora de pé. Senhora de um espírito irrequieto e inventivo, em 2013 integrou o elenco do espetáculo "Tablao de Fado", mescla de dança contemporânea, flamenco e fado, com direção de Alexandra Batáglia no Teatro Ibérico, em Lisboa. "Foi muito interessante", recorda agora, "porque as músicas urbanas vêm todas do mesmo lugar social: são a expressão da criatividade do povo. Por isso, casar o fado com o flamenco (ou com o tango, a morna ou o samba) faz todo o sentido. Pode ser muito bonito."
Também neste disco, com data de lançamento prevista para maio (dará também origem a um espetáculo com data e lugar ainda por definir), Filipa e o produtor Tiago Pais Dias viajam pelo fado mas somando-lhe outras sonoridades de diferentes origens. Nas palavras da intérprete, "este disco é um conjunto de várias linguagens convidadas por um anfitrião, que é o fado. E fala de como sinto o amor, a liberdade, a liberdade no amor, que é tão importante."
A ousadia da intérprete estende-se também ao modo como se apresenta em palco, como constrói a mise-en-scéne de si mesma: "Sempre fui muito tradicional na forma como canto e não na forma como me apresento. O que nem sempre foi fácil. Muitas vezes senti que as pessoas olhavam para mim e pensavam: Onde é que ela deixou a nave?" Como Filipa admite, numa idade muito jovem não é fácil lidar com este julgamento de terceiros. "Claro que me afetou. Senti que tinha de pertencer a um cânone e fi-lo por ignorância da própria História do Fado. Na origem de tudo, as mulheres e os homens não se vestiam de forma protocolar para cantar. Eram pessoas humildes, às vezes com vidas desviantes da norma, por isso vestir-se-iam com o que havia. O mesmo acontecia com os instrumentos musicais. Foi o Estado Novo que fez essa higienização, de que ainda somos herdeiros." Quando Filipa chegou ao fado, as mulheres ainda sentiam que se tinham de apresentar vestidas de negro, por vezes com o xaile sobre os ombros e pesados brincos. "A esse nível, a liberdade é agora muito maior, mas eu ainda sinto que tive de fazer um esforço para não ser preconceituosa comigo mesma."
Hoje, Filipa só lamenta que o público português não vá mais aos fados: "Claro que é interessante cantar para turistas, no limite até é interessante cantar para quem diz não gostar porque há o desafio de tentar vencer essa resistência inicial. E já me aconteceu tocar alguém que não entende a letra, mas sente a energia que eu, enquanto intérprete, estava a passar e isso pode muito ser muito especial." E no entanto... "falta-me a presença do público nacional. É verdade que as novas abordagens têm trazido pessoas mais jovens, mas ainda é pouco. Noto, não só no fado mas também noutras áreas culturais, que espanhóis e italianos, só para falar de povos que nos são próximos, são muito ciosos das suas culturas. É como se precisássemos sempre de validação externa para gostarmos das nossas coisas."
Foi com esta convicção que Filipa avançou para o single de lançamento do álbum Sabe Deus, com o título Vai dar banho ao cão, com música de Tiago Pais Dias. O inusitado refrão, explica, "foi ficando sempre, apesar das mudanças que íamos fazendo na letra. Acho que este tema quis mesmo chamar-se assim." Na origem, conta ainda Filipa, está a necessidade de confrontar uma sociedade misógina e patriarcal com os constrangimentos que ainda coloca à liberdade das mulheres: "É a reação a uma situação que me aconteceu nos santos populares do ano passado. Estava um calor imenso e tive de fechar o casaco até acima para pararem de me assediar. Ora, isto é uma coisa que acontece a todas nós, independentemente de sermos altas, baixas, com mais ou menos peso, e de forma recorrente. Fomos educadas a suportar este ultraje em silêncio porque nos foi sendo insinuado que, de uma maneira ou de outra, a culpa é sempre nossa porque teríamos provocado. Por outro lado, também sabemos que, se respondemos de forma assertiva, podemos pôr a nossa segurança em risco. Se quisermos, este tema é o meu convite à reflexão sobre comportamentos que se eternizam contra toda a lógica." E lá está a letra, a contar: "Olá boneca!"/Onde é festa?/Ai que a menina não presta!/Só pode ser anedota/Muito idiota/Hey oh miúda/Será que é muda/Um copo não se recusa/E Quando estala o verniz/A Carlota diz .../Vai dar banho ao cão"
O gosto por este género musical foi crescendo ainda na infância, alimentado pelos pais: "A minha família é do Norte e sempre teve muita ligação a grupos etnográficos. O meu pai cantava muito em festas de família e em clubes e eu fui-lhe tomando o gosto." Nascida em Lisboa, Filipa tinha 11 anos quando cantou pela primeira vez em público. Lembra-se que foi num clube e que lá chegou porque a tia conhecia alguém na direção, que procurava sempre novos talentos: "Eu só sabia dois fados, que eram A Lenda da Fonte e Tudo isto é Fado. Lembro-me que me enganei na letra de um deles e comecei a chorar, envergonhada."
Estes percalços infantis não a demoveram. Um ano depois, iria à Grande Noite do Fado, no Coliseu de Lisboa, e começou a fazer o circuito das casas de fados de Lisboa, acompanhada pelos pais ou por Armando Tavares, o mentor do Clube de Fado, falecido no final do ano passado, "um homem de uma generosidade imensa que ia com os miúdos a lugares míticos como a Baiuca, a Mesa de Frades ou ao Bairro Alto. Na altura também havia o circuito das coletividades, que era muito giro e deixou de haver. Ali, encontrávamos um ambiente de partilha com a população. Era tudo muito verdadeiro e genuíno."
Tímida, a pequena Filipa ficava a observar tudo e a assimilar: "Quando eu comecei a cantar não havia Google, nós passávamos as letras dos fados uns aos outros, escritas num papelinho." Aprendeu a ouvir e ver Beatriz da Conceição ("ela entrava na sala e aquilo já era fado. A sua presença era muito forte"), Maria Valejo, Maria da Nazaré, Esmeralda Amoedo, Lenita Gentil, Celeste Rodrigues mas também homens como Camané ou Ricardo Ribeiro. "Ensinam-nos às vezes sem saber, pela forma como se movem, como comunicam, pela paixão que têm. É um sentimento, é uma maneira de estar socialmente."
Assim foi constituindo Filipa aquilo a que chama a sua tribo. Na noite em que falamos com ela, estava no Fado ao Carmo, a casa de Rodrigo Costa Félix e Luís Guerreiro, bem próxima, como o nome indica, do Largo do Carmo. Acompanham-na os guitarristas André Ramos e António Martins. Admite que este é hoje um dos lugares em que prefere atuar, também pelo ambiente que ali encontra: "Ficamos muitas vezes fora de horas em tertúlia, a partilhar música e experiências. Somos gente que sente as coisas da mesma maneira e nos mesmos sítios, independentemente das histórias de vida poderem ser diferentes."
Mas este sentimento de pertença a uma tribo não a impede de se atirar para fora de pé. Senhora de um espírito irrequieto e inventivo, em 2013 integrou o elenco do espetáculo "Tablao de Fado", mescla de dança contemporânea, flamenco e fado, com direção de Alexandra Batáglia no Teatro Ibérico, em Lisboa. "Foi muito interessante", recorda agora, "porque as músicas urbanas vêm todas do mesmo lugar social: são a expressão da criatividade do povo. Por isso, casar o fado com o flamenco (ou com o tango, a morna ou o samba) faz todo o sentido. Pode ser muito bonito."
Também neste disco, com data de lançamento prevista para maio (dará também origem a um espetáculo com data e lugar ainda por definir), Filipa e o produtor Tiago Pais Dias viajam pelo fado mas somando-lhe outras sonoridades de diferentes origens. Nas palavras da intérprete, "este disco é um conjunto de várias linguagens convidadas por um anfitrião, que é o fado. E fala de como sinto o amor, a liberdade, a liberdade no amor, que é tão importante."
A ousadia da intérprete estende-se também ao modo como se apresenta em palco, como constrói a mise-en-scéne de si mesma: "Sempre fui muito tradicional na forma como canto e não na forma como me apresento. O que nem sempre foi fácil. Muitas vezes senti que as pessoas olhavam para mim e pensavam: Onde é que ela deixou a nave?" Como Filipa admite, numa idade muito jovem não é fácil lidar com este julgamento de terceiros. "Claro que me afetou. Senti que tinha de pertencer a um cânone e fi-lo por ignorância da própria História do Fado. Na origem de tudo, as mulheres e os homens não se vestiam de forma protocolar para cantar. Eram pessoas humildes, às vezes com vidas desviantes da norma, por isso vestir-se-iam com o que havia. O mesmo acontecia com os instrumentos musicais. Foi o Estado Novo que fez essa higienização, de que ainda somos herdeiros." Quando Filipa chegou ao fado, as mulheres ainda sentiam que se tinham de apresentar vestidas de negro, por vezes com o xaile sobre os ombros e pesados brincos. "A esse nível, a liberdade é agora muito maior, mas eu ainda sinto que tive de fazer um esforço para não ser preconceituosa comigo mesma."
Hoje, Filipa só lamenta que o público português não vá mais aos fados: "Claro que é interessante cantar para turistas, no limite até é interessante cantar para quem diz não gostar porque há o desafio de tentar vencer essa resistência inicial. E já me aconteceu tocar alguém que não entende a letra, mas sente a energia que eu, enquanto intérprete, estava a passar e isso pode muito ser muito especial." E no entanto... "falta-me a presença do público nacional. É verdade que as novas abordagens têm trazido pessoas mais jovens, mas ainda é pouco. Noto, não só no fado mas também noutras áreas culturais, que espanhóis e italianos, só para falar de povos que nos são próximos, são muito ciosos das suas culturas. É como se precisássemos sempre de validação externa para gostarmos das nossas coisas."
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