A entrevista decorreu aquando da vinda de Camané a Santa Maria da Feira, ao Cine-Teatro António Lamoso. O resultado foi uma conversa franca e de extrema sensibilidade e honestidade nas respostas de Camané.
Quais são as diferenças entre actuar em Casas de Fado, onde começou a sua aprendizagem como fadista, e actuar em auditórios? Já chegou mesmo a actuar nos festivais de Verão, como o Sudoeste, embora no projecto Humanos.
Tenho cantado em diversos espaços. Ainda há tempos, com o Carlos do Carmo, tocamos para 25 mil pessoas em Lisboa, cantei para 12 mil pessoas no anfiteatro Keill do Amaral, e para muitos outros milhares nos festivais de Verão. Mas são casos pontuais porque o habitual é tocar em auditórios com um máximo de 700 a 800 pessoas. A verdade é que já não canto em Casas de Fados há muitos anos. Estas foram muito importantes para mim porque há uma grande empatia que se cria entre quem canta e quem ouve. Esta empatia é sempre uma incógnita. Correr bem ou não também tem a ver com o público, que nunca é o mesmo. São espaços completamente diferentes, mas acho que se pode criar uma melhor empatia com o público num palco de que numa Casa de Fado porque hoje são essencialmente sítios turísticos. Já não são o que eram.
Perderam a sua autenticidade?
Muitas delas. Mas continuam a existir noites fantásticas em Casas de Fado que foram o meu sítio para aprender, a minha oficina. No entanto, o espectáculo em palco foi a melhor opção que eu tomei para o meu trabalho, apesar de ter sido um trabalho difícil criar um circuito onde pudesse mostrar aquilo que faço e abandonar as Casas de Fado.
Nos últimos anos fala-se, ouve-se e discute-se o fado cada vez mais. Acha que Portugal mudou de atitude perante o fado?
Algumas pessoas sim. Eu continuo a acreditar e a sentir que existem muitas pessoas que têm –e assumem - uma imagem muito preconceituosa do fado. Isto tem a ver com uma certa ignorância perante o fado, porque as pessoas ainda não se aperceberam que tem uma música com uma personalidade melódica fortíssima e que resiste há 150 anos. O fado está cheio de personalidade e representa um património riquíssimo. O problema é que o fado mexe com muitos fantasmas e vergonhas das pessoas, o quem faz com que ainda não tenha o devido valor em alguns meios intelectuais portugueses.
Esse preconceito de que fala vem do pós-25 de Abril e das décadas de 1980 e 1990, ou já é anterior à revolução?
Já vinha de antes. Esse preconceito existiu sempre, mas evidenciou-se no pós-25 de Abril devido a uma suposta ligação do fado ao antigo regime, o que nunca aconteceu. Houve um aproveitamento político do fado dado que as casas de fado acabavam por ser um local frequentado por pessoas ligadas ao regime e onde estas gastavam o seu dinheiro. No fundo as Casa de fado viviam dos clientes que pudessem gastar e pagar os seus elencos e por isso talvez existisse uma relação próxima entre os membros do regime e os donos das casas de fado. O antigo regime também se aproveitou de pessoas como a Amália mas depois, em democracia, os Governos de todos os partidos políticos também o fizeram e aproveitaram-se da dimensão artística e pessoal que a Amália tinha no mundo. Foi sempre um erro conotar o fado ao antigo regime, o que criou muitos problemas a diversos artistas que sofreram injustamente por causa disso.
Como é que surge a ligação do Camané ao fado? Nasce-se fadista?
As duas coisas. A minha ligação ao fado já vem desde o meu bisavô, ou até antes. Os meus pais ouviam em casa e eu tinha acesso aos discos da Amália, do Marceneiro, e de todos que cantavam. Eu ouvia-os compulsivamente quando tinha sete anos e tinha essa música como a minha principal. Ao início achava-a estranhíssima, mas depois assimilei-a, bem como a característica de canto. E isso é algo que já nasce de nós e tornou-se cada vez mais evidente que o fado nasceu comigo. Quando o comecei a ouvir assimilei todas as suas características e mesmo quando já não o cantava e ouvia outros estilos musicais, isto quando tinha 14 ou 15 anos, ao cantar bossa nova e rock eu tinha sempre aquela nuance do fado na minha voz. Eu queria ser cantor, mas não sabia o que queria cantar. Apercebi-me então que só poderia cantar fado, não sendo possível fugir porque a minha característica de canto já era essa. Era no fado que me sentia como peixe na água. Aos 17 anos decidi ser fadista mesmo já tendo cantado de forma demasiado exposta aos 10 e 11 anos depois de ter ganho a Grande Noite de Fados, no que foi a minha primeira abordagem ao fado. Depois procurei outros caminhos musicais, mas voltei ao fado.
Hoje em dia fala-se muito na existência de duas gerações do fado. Onde é que o Camané se encaixa? Ou serve de elo de ligação?
É possível que seja a ligação visto que eu cresci no meio do fado e não me considero da nova geração porque o meu percurso no fado tem muitos mais anos.
O Camané já cantou Antero de Quental, António Botto, David Mourão-Ferreira, Manuela de Freitas, Amélia Muge, entre outros. Como se escolhe um poema para ser fado? É uma escolha natural ou é procurada?
Há uma procura. O Antero, o Botto e o Pessoa
são poetas clássicos, não precisam de ser cantados porque a sua poesia
vale por ela própria. Mas dignificam o meu trabalho. Existem muitas
quadras ao gosto popular, do Pessoa, que fazem todo o sentido ser
cantadas. Outros poemas não, porque têm uma subjectividade muito
grande. São poemas de grande reflexão apesar do fado, enquanto música,
obrigar à reflexão e aos sentimentos, mas de uma forma mais simples. É
esta procura que aparece nos poemas que eu canto. Eu também já cantei
muito Pedro Homem de Mello porque gosto muito dele e está muito ligado
ao mundo do fado. Foi descoberto para o fado pela Amália e fascinou-se
por ela. Desenvolveu um trabalho excelente. Ele tinha poemas muito bons
e que a Amália não cantou porque ela não gostava de cantar poemas que
tinham temas como a morte ou certas palavras que a Amália não gostava
de dizer. E eu procuro os poemas que nunca ninguém cantou. Quer o Pedro
Homem de Mello quer o David tinham muitos poemas por onde escolher e eu
tive a sorte de os encontrar. Faz-me sentido essa procura. Mas também
há palavras que não gosto de utilizar na minha forma de cantar.
Ao nível da produção todos os seus álbuns foram assinados pelo José Mário Branco. Como é trabalhar com ele?
É fantástico e tenho aprendido muito. Quando comecei a gravar queria encontrar um som próprio para o meu fado e que fosse autêntico. Tive que ir à procura de alguém que entendesse isso e que não o quisesse desvirtuar, o que acontece muito. Eu não deixaria que comigo isso acontecesse. O Zé Mário teve essa percepção e entendeu o fado da forma como eu também o vejo. Por outro lado queria um rigor e um ambiente musical que fosse transportado para os meus discos porque chateava-me ouvir discos de fado e todos eram iguais, porque tinham os mesmos músicos e introduções. Eu queria fazer algo diferente e tive que pedir ajuda ao Zé Mário, enquanto músico de grande sensibilidade e de grande rigor e criatividade. Só podia ser ele a fazer essas coisas e o meu encontro com ele foi fabuloso.
Vai sair agora o seu novo álbum, após um hiato de 6 anos. Que novidades é que já podem ser reveladas?
Tenho algumas canções que já estão prontas. Uma do Sérgio Godinho, outra do Mário Laginha, que eu já cantei, e outras que ainda faz sentido preservar e manter em segredo até o álbum estar pronto porque ainda vão fazer parte de uma escolha final, em que vou ter que decidir quais delas é que vão ficar. Vou também cantar poemas da Manuela de Freitas e de outros poetas actuais. Em princípio vão existir dois fados do Jacinto Lucas Pires já que eu gostei muito dos poemas.
Além do projecto Humanos, cantou com o Sérgio Godinho, Xutos & Pontapés e, por duas vezes, em Outras Canções e Outras Canções II, percorreu outros universos musicais como a bossa nova, a canção francesa e a Brodway. Necessita dessa diversidade?
Necessidade pessoal, sim! Eu gosto muito de estar sempre a trabalhar e esses projectos foram um prazer enorme. A necessidade, essa está no fado. O projecto Humanos foi feito em grupo. Tive pessoas a fazerem muitas coisas e a ajudarem-me imenso. Tinha a “papinha toda feita”, músicos que estavam a produzir o disco e que me diziam que apenas tinha que cantar e criar um ambiente para essas canções que o resto eles tratavam. Deu para confiar porque eles são muito bons. O Rafa, o Hélder Gonçalves, a Manuela, o David, o João Cardoso, o Serginho e todos os outros que estavam no projecto. As músicas foram distribuídas de forma brilhante e eu nunca conseguiria chegar lá se não fosse por todos os outros membros.
Em Outubro, saiu o filme Fados de Carlos Saura. Como surge a sua participação no filme?
Fui convidado e foi um projecto em que gostei imenso de participar. É um filme que apresenta o fado numa visão de alguém que não é português e que tem um sentido estético muito bonito. Por tudo isto valeu a pena participar no filme.
Tem sido sempre muito elogiado. O Miguel Esteves Cardoso chamou-o de Príncipe do Fado, João Lisboa do Expresso escreveu que “se andam à procura de uma nova Amália fiquem a saber que é homem e chama-se Camané”. Como é que lida com estes elogios? São postos de parte ou recebidos com um sorriso de quem vê o seu trabalho reconhecido?
É isso mesmo. Levam-me a fazer sempre o melhor possível e continuar a fazer o meu trabalho sem ceder, sem aligeirar, e sem andar à procura de me exibir. Ser eu próprio e continuar a sê-lo. Foi e é assim que as coisas foram acontecendo. Eu não sei viver de outra maneira.
Como sempre? Como dantes?
Exactamente.