Uma música portuguesa com certeza
Concertos - Fevereiro 19, 2011


Camané - Teatro Rivoli - Porto - 16.0211
Quatro paredes aveludadas de um quarto interior. Luzes apagadas numa sala repleta. Camané apresenta-se sentado, microfone na mão, com voz madura a contar do amor e dos dias numa peça de teatro que se quer sentimental, engenhosa e poética, como convém.
Um cenário intimista a fazer esquecer os nervos e o fadista a elevar a voz, a tornar maior a alegria e o desgosto, a comoção dos presentes. Camané contorce-se a cada palavra sentida: só por dentro de ti a noite escuta o que me sai sem voz do coração. E nós escutamos com reverência, quase a pressentir o próximo abalo. Vestido a rigor, longe das luzes e de mão no bolso, dá-nos as boas noites em jeito tímido e entrega-se às próximas notas da guitarra. A pose introspectiva facilmente se transforma em arrebatamento e, entre o público, são muitos aqueles que batem o pé ao som da música. Rodeado pelos três músicos que o acompanham (José Manuel Neto – guitarra portuguesa; Carlos Manuel Proença – viola; Paulo Paz – contrabaixo), Camané emociona enquanto canta, apela ao mais fundo da condição humana e evoca as primeiras memórias do fado - tinha ele sete anos - quando começou a cantar inspirado por Carlos do Carmo, Alfredo Marceneiro ou Amália Rodrigues.
A humildade transparece quando o ouvimos falar, percebemos que não é de grandes falas – cada um é para o que nasce – e Camané nasceu para embalar e contar histórias boémias através do fado. O amor inspira a vida, é a essência de tudo o que fazemos, bem ou mal. Entre uma e outra música o fadista atravessa o palco e volta a sentar-se, a meia-luz, até se deixar invadir pela escuridão. A plateia aguarda que algum candeeiro se acenda, sempre em silêncio. Camané apregoa a poesia com excelência. Nomes como David Mourão-Ferreira, Cesário Verde, Alexandre O’Neill, Fernando Pessoa ou Sérgio Godinho ganham novo fôlego por detrás das suas interpretações.

De repente, os músicos saem do quarto improvisado e a música continua em gravação quase sem darmos pela súbita alteração. O fadista apaga as luzes e fica sozinho em palco, a cortina desce. A plateia levanta-se às escuras e aclama o artista com afinco e emoção.
Camané entra pela segunda vez, agradece o aplauso, e vai chamar os outros músicos. Mais um fado no fado: pedimos e ali o temos, visivelmente contente. Um Camané mais solto e animado, perdido nos acordes da guitarra portuguesa, a balançar o corpo enquanto põe a descoberto a saudade que traz do corpo de alguém: eu tenho um sonho doirado, é morrer cantando o fado nos braços de uma mulher. Mais uma vez, já de pé, os aplausos e os assobios pouco contidos tomam conta da sala: és grande!, ouvimos gritar.
Camané regressa pela última vez para cantar Sei de um rio, poema de Pedro Homem de Mello. Até quando?, perguntamos ansiosos, teremos de esperar para te ouvir novamente?
Numa noite de temporal, Camané fez-se grande e o Porto saiu à rua para o ver. Até ao próximo encontro com este timbre inigualável resta-nos ir repetindo e lembrando as memórias deste banquete de sensações. .Vanessa Silva
Fotos : Ricardo Silva