EnglishPortuguês

Passeio com a fadista morta

Archive - Abril 27, 2011
Estava a ver que não me visitava, venha daí, claro que pode dar-me o braço, vamos lá descer a rua como nas marchas populares.

E não se ponha já a cantar senão as cordas do meu coração embrulham-se nas cordas da memória e ainda tenho de puxar de um lenço.
A senhora Dona Amália não sabe, mas há muito que esperava este dia. Vi o seu último concerto, mas isto é outra coisa - passear consigo, de braço dado, a assobiar o fado "Maria Lisboa" enquanto atravessamos a maresia que escorre das asas das gaivotas no Rossio.

Paramos no Adamastor e a senhora fica tão calada como um perfil em contraluz, admirando o porto, a improbabilidade das cores no céu desta cidade, sorrindo para os brothers com tambores e instrumentos world music e canhões de cannabis.

A senhora descalça-se como se fosse uma criança em Alcântara e pisa a relva, começa a cantar com eles, bate palmas com essas mãos que pediam tanto amor. Mas é sempre assim. Se entra numa sala alguma coisa muda. E se a ouvimos num táxi ou nos altifalantes da Rua Augusta, não é apenas o espaço que muda, somos nós, por inteiro, como se arrancassem as costuras e nos mostrassem aquilo de que somos feitos.

Tudo faz mais sentido na sua voz. Cada palavra faz vibrar um tendão, carrega mais fundo, destranca qualquer coisa. Levo-a, por fim, à sua casa. Ainda se ouvem os pássaros nas árvores do jardim. E claro que tocam sinos. Esta Lisboa moderna é ainda tão antiga. A tarde suspira como se dissesse "silêncio, que se vai cantar o fado". E nós não dizemos mais nada. Tudo isto existe, tudo isto resiste, tudo isto é fado.
Fonte: i Hugo Gonçalves


Related Articles


Não procure mais... está tudo aqui!
Não procure mais... está tudo aqui!

Social Network

     

Newsletter

Subscribe our Newsletter.
Stay updated with the Fado news.

Portal do Fado

© 2006-2024  All rights reserved.