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Ricardo Ribeiro: “Já não tenho nada para provar ao fado, nem aos fadistas”

Entrevistas - Abril 03, 2016
O fadista Ricardo Ribeiro tem um novo disco, "Hoje é assim, amanhã não sei".

A propósito do lançamento contou porque gosta de ser chamado "purista do fado" e como se cruzou com Rabih Abou-Khalil.

Ricardo Ribeiro ouve fado desde bebé e começou a cantar ainda em criança, inspirado e incentivado por uma tia por afinidade e pelo mentor, Fernando Maurício. Anos mais tarde encontrou o alaudista libanês Rabih Abou-Khalil, que lhe “mudou a vida” e o fez aventurar-se por outras musicalidades. Considera que tem a essência do fado “dentro de si” e “pode sair dela e entrar quando quiser”. Encontrou “um canto novo dentro da tradição” e gosta que lhe chamem “purista” porque “tem fado desde as pontas dos dedos dos pés, à ponta do último cabelo.”

Este é o seu quinto álbum, mas voltemos ao início. De onde vem a sua ligação ao fado?

A minha ligação com o fado vem da minha mãe que, quando fazia a lida da casa, cantava. A minha mãe tem uma voz muito bonita, meio “avarinada”, isto hoje não se percebe o que é, mas é uma voz com pregão. Parecia que apregoava e rezava. A minha mãe tem uma voz muito quente, eu ouvia-a e ficava preso. Se calhar, começou mesmo aí, pela figura da mãe.

É da Ajuda, um bairro de Lisboa que não tem tradição fadista como Alfama ou a Mouraria. Isso não o impediu de se tornar fadista.


O bairro da Ajuda não tem grande tradição fadista, mas deu grandes pessoas ao fado: Quinita Gomes, os irmãos Pinóia, o Casimiro Ramos e o Miguel Ramos, que eram grandes músicos e compositores, deixaram dos fados tradicionais mais bonitos que há: o “Fado Três Bairros”, o “Fado Alberto”. O João Linhares Barbosa, o grande poeta, morou lá. Além da minha mãe, também canto fado porque morava naquele bairro. Nos bairros típicos de Lisboa existia um espírito de entreajuda e de solidariedade muito grande. E a minha mãe tinha uma colega de trabalho de quem era muito amiga, a minha tia Suzete, que não me é nada, é minha tia por afinidade. E que ajudou a minha mãe a criar-me. Havia muito este espírito. Fui uma criança que tinha alguns problemas de saúde, dava noites muito más e tinha um irmão pequeno. Tínhamos algumas dificuldades e a minha tia ajudou. Era sozinha, não tinha filhos e então ajudava a criar-me. E desde os três, quatro meses de idade, já ia para casa dela. Ela era uma amante de fado, uma aficionada mesmo daquelas que sabe os fados, sabe o que estás a cantar. Se for fado tradicional, ela sabe, conhece os estilos. Tinha uma coleção de discos de vinil e nós não tínhamos gira-discos, só rádio. A minha tia é que tinha. E os discos dela eram de fado e música clássica, de que ela gostava muito. Eu já em bebé ouvia essa música. O rádio e o gira-discos estavam regularmente ligados e faziam companhia, não era a televisão.


Começou a ouvir fado quando ainda era bebé. Lembra-se de quando foi aos fados pela primeira vez?

Lembro-me de ter três, quatro anos e ouvir os fados. E aos cinco, seis anos já queria cantar por cima dos discos. Foi assim que começou a minha afeição pelo fado e pela música. Era a minha tia que me levava aos fados. Lembro-me que tinha seis anos quando a minha tia fez 50 anos e fez uma festa num restaurante, há inclusive uma fotografia disso. Houve fados à tarde e um dos fadistas foi o meu mestre, o Fernando Maurício. E também comecei a cantar porque no meu bairro havia uma grande comunidade de etnia cigana, onde eu tenho muitos amigos. Gosto muito dos ciganos. Tenho uma grande afeição por eles, cantava muito com eles e foi com eles que aprendi a marcar as rumbas na viola. E aos nove, dez anos ia brincar para rua com eles, uma coisa que hoje se pode fazer cada vez menos ou nada. E cantava com eles.

Quando vai à Ajuda ainda canta com os seus amigos ciganos?

Agora já não porque muitos deles mudaram-se. Outros ainda lá estão, mas como eu já não moro ali, já não sei a que horas estão nem quando estão. Mas muitas vezes vejo-os. Na minha página oficial no Facebook tenho muitos comentários de amigos ciganos, a dizer que gostam de me ouvir. E eu fico muito feliz. Os ciganos não são apenas aquele povo que acham que é mau. Não é, não é. Mas é outro modo de pensar e de viver. Não é um povo mau, não é um povo como se pinta. Quem pensa isso, às vezes, me fere. Eles também provocam um pouco isso, mas não são maus. Há gente muito boa e muito franca. Na minha página tenho muitas publicações de pessoas de etnia cigana, é só ver como falam. É bonito. No outro dia deixaram-me uma declaração muito bonita, que me deixou com lágrimas nos olhos. Dizia: “És mesmo um grande fadista, humilde (mas sem o “h”). Em nome da família Maia, um abraço de obrigada.” É uma coisa que me faz bem.

Essa entoação foi muito parecida com a dos ciganos.

Estranhará porque que falo muito no gerúndio e articulo desta maneira. O gerúndio, a mim, me soa mais musical, do que dizer por exemplo, cantar. Se disser cantando, é outra coisa. Gosto mais, me soa mais musical. Soa-me melhor chorando, em vez de chorar. Eu gosto de articular este português meio antigo, é muito rítmico. Sou um bocado vidrado no ritmo. É uma pancada, como outra qualquer. Gosto de falar assim, a língua torna-se noutra coisa.

Como se falasse num português mais próximo do castelhano. Para se aproximar da entoação do flamenco, uma das suas paixões?

O flamenco é como o fado. O fado fez da tragédia uma história contínua e no flamenco a tragédia da alegria, da força de viver, é contínua. O João Nobre tem uma quadra muito bonita que diz: “Feliz do povo, que para a vida ser bela, basta uma quadra singela que lhe fala ao coração; Feliz do povo, pois é feliz com certeza, que fez da própria tristeza, desde há muito, uma canção.” E o flamenco é exatamente igual. Do flamenco desgarra-se uma força de viver, de enfrentar tudo, canta-se a tristeza e a tragédia de uma forma quase divina. Uma vez tive uma guerra com um amigo músico, que gostava da harmonia e do ritmo do flamenco, mas quando cantavam ele dizia: “este homem está aos gritos!” E eu dizia-lhe: que grito? Sim, é um grito, mas ouve o que ele canta. É a alma dele que canta, é a angústia. Ele está a dizer que o filho é surdo. Tu podes dizer a alguém baixinho, que o teu filho é surdo? Não dizes. Como é que alguém pode cantar a tragédia em surdina? Tem que ser com força, com sal. O açúcar é uma coisa, o sal é outra. O flamenco é uma música terrível, de beleza e de força. Parece rude, mas não é. É selvagem, mas um selvagem muito próximo, muito direto. É uma música extraordinária e que mexe comigo até às entranhas. Tal como mexe o fado, é igual. O fado mexe de outra maneira, mas é com o mesmo objetivo.

De que maneira é que o fado mexe consigo?


Mexe nas entranhas, dentro de mim. É o sangue, é a cabeça, é a pérola, é tudo. Porque é sentido assim desde pequeno, vem de pequenino. É como a minha filha com o piano, de certeza que ela vai ter uma relação com o piano muito dela. Tal como a minha relação com o fado é muito minha. Não posso explicar por palavras. Quem quiser compreender tem de me ouvir a cantar e fazer o julgamento que quiser. Era para ser veterinário, era para ser padre, mas sempre segui por aqui: para cantar, para a música. Os velhotes não me deixaram desistir. O Fernando Maurício, a Beatriz Conceição, a Argentina Santos, o Rodrigo. Sempre fui empurrado: vai por aqui. A minha vida foi sempre assim, as coisas aparecem-me, e eu vivo-as. Não sei como será amanhã, nem estou interessado.

Começou a cantar muito jovem, ainda criança, nas noites do fado. Ainda é um “menino do fado”?

Se eu sou um menino do fado? O fado é o meu dono, sim. Acabou por ser um dono. Somos donos um do outro. O fado não é meu, nem é de ninguém. Dono no sentido prático da coisa, é uma relação. É o fado que me dá o pão e eu devo tudo ao fado. Tudo. Devo tudo ao fado. Tudo o que construí, tudo o que tenho. Não tenho nada, mas a vida simples e mais ou menos organizada, devo-a ao fado. A minha filha é ao fado que eu devo, a mãe dela [a fadista Ana Sofia Varela], conhecia-a nos fados. Já não somos marido e mulher há muitos anos mas encontrei-a graças ao fado.

Como aconteceu o encontro com Rabih Abou-Khalil, músico e compositor o libanês, com quem gravou o trabalho Em Português (2008)?

A minha vida foi sempre isto, as coisas apareceram-se sempre de repente. O Rabih Abou-Khalil apareceu-me, não planeei nada. Não o fui procurar. Foi o Ricardo Pais, na altura diretor do Teatro Nacional de São João. Ele tinha uma ideia que queria concretizar, com o Rabih Abou-Khalil, com a música dele e poemas em português. Quando ele me ouviu cantar, quando eu lancei o meu disco homónimo, em 2004, ele veio ouvir-me e disse-me: você é a pessoa indicada para fazer uma coisa que eu há muito tenho na cabeça. Mas antes disso fizemos o “Cabelo branco é saudade”, uma peça muito bonita, com a D. Argentina Santos, a Celeste Rodrigues e o Alcino Carvalho. Na estreia do “Cabelo branco”, o Rabih foi assistir. E passado um mês ou dois, ele já tinha a música da “Casa da Mariquinhas” [entoa o ritmo]. O Ricardo deu-me uma data de discos do Rabih e eu conhecia uma peça dele, que se chama “Dreams of a Dying City“, de que gostava muito [entoa o ritmo], um rimo muito bonito e bom. E eu comecei a ouvir os discos e pensei: adoro este homem. O Ricardo disse-me: vamos ver se conseguimos fazer alguma coisa. Passado algum tempo eu vou ao Porto ter com o Rabih, à suite do hotel onde ele estava e logo ali, a maneira como ele olhou para mim, como o encarei… Eu pensava que ele era um homem muito formal, com aquela característica das pessoas da música mais erudita – estou sendo injusto, eu sei. Mas muitos mantêm uma certa distância, para não dizer frieza. E ele não tinha isso. Quando lá cheguei ofereceu-me um café, tomamos, fumámos um cigarro e ele começou a tocar a música que tinha composto para a “Casa da Mariquinhas”. Tocou duas, três vezes. E à terceira ou quarta vez que ele tocou, eu comecei a cantar a parte instrumental e não a cantada [entoa o ritmo]. Ele olhou para mim e continuou a tocar. À medida que fui ganhando confiança, fui entoando a letra e às tantas ele parou e disse: tu és do meu grupo. Como? Sim, tu cantas a minha música como se fosse tua. Isto foi em 2005, até hoje.

O que é mudou na sua carreira, depois desse contacto?

Era um rapazeco quando o conheci e acho que depois de conviver com ele, ao fim dos primeiros cinco anos, mudei completamente. Conheci um homem extraordinário, de uma cultura imensa, um génio. Até desenvolvemos um certo mimetismo, uma coisa que só acontece quando se convive muito com uma pessoa: ficamos com alguns jeitos dela e essa pessoa de nós. E eu ganhei muitos jeitos dele, muitas coisas. Mas isso não é o mais importante. E devo a ele o facto de hoje ser conhecido lá fora e dar concertos de fado.

A forma como passou a cantar fado mudou, depois desse conhecimento?

Não sei responder, quem me ouve é que pode sentir isso ou não. Tem de ouvir e comparar antes e depois. É evidente que mudou alguma coisa. Mas o que mudou foi em mim, não foi no fado, nem na forma de cantar. Tenho medo de ser tendencioso ao dizer isto, mas acho que encontrei um canto novo dentro da tradição. Mas é preciso ouvir para perceber se é novo ou não, se é dejá vu. Porque as referências servem para alimentar, não para copiar.

Alimenta um certo revivalismo da tradição na sua forma de cantar fado?

Continuei a tradição porque quem tem a essência dentro de si, pode sair dela e entrar quando quiser. Eu não trazia um revivalismo, trazia algo novo, sempre dentro da tradição do fado.

Ainda continua a ser considerado um fadista purista?


Depende do que se entende por purismo. Vamos falar de purismo, não interessa se é no fado ou se é na pastelaria, por exemplo. O purismo não existe. A partir do momento em que eu canto um fado sendo um homem do século XX, nasci no século XX, agora no século XXI, não é puro. Porque não canto como o Joaquim Campos, ou como o Júlio Proença, ou como o meu mestre. A não ser que seja uma cópia. Mas gosto dessa coisa de me chamarem purista. É sinal que chamei à atenção por aquilo que mais queria: que era importante preservar a linguagem. É isso que eu pretendo, que linguagem seja preservada. Porque é isso que faz o mundo interessante, é a diversidade. Se a música é toda igual, não tem interesse nenhum. Se é toda americanizada, ou afrancesada ou espanholada, é uma seca. Não tem interesse. Então, eu gosto dessa coisa de me chamarem tradicionalista e purista. É bom sinal, porque é sinal que sentiram aquilo que eu queria. É importante preservar uma linguagem, que pode ser sempre nova. Os fados tradicionais podem ser sempre reinventados, sempre. A partir do momento em que se coloca outra letra, já se está a inventar, não é um revivalismo, é novo. Porque ele tem sempre espaço para isso. Como no flamenco: se eu canto uma bolería [começa a marcar o ritmo com as mãos na mesa], com outra letra que ninguém cantou, já é novo. Essa é uma das grandes glórias da música popular. É o caso do fado, do flamenco, do tango. É fantástico. Gosto que digam que eu sou purista, mas eu já não tenho nada para provar ao fado, nem aos fadistas. Já provei, portanto faço o que quero.

Como cantar a “Casa da Mariquinhas” acompanhado pelo alúde de Rabih Abou-Khalil?

Não é um fado, continua a não ser um fado. É uma composição daquele senhor para aqueles versos. Não lhe chamei fado. Pegámos no poema e ele fez uma música. Não tem nada a ver uma coisa com a outra. Eu vou dizer uma coisa e vou ser crucificado, entre aspas, mas não faz mal, aceito. Eu tenho fado desde a ponta dos dedos dos pés, à ponta do último cabelo. Estou descansado, assumo tudo. Vou ser crucificado, repito, mas é verdade.

O que é que significou para si, a UNESCO ter declarado o Fado como Património Imaterial da Humanidade?

Foi uma glória, um prazer e uma felicidade. É muito importante porque o plano de salvaguarda é muito interessante. Sendo património da humanidade, o plano de salvaguarda é fantástico. Muitos livros a que eu tinha acesso, porque sou um curioso… Às vezes dizem: ele é um estudioso do fado. Não sou estudioso coisa nenhuma, porque não tenho estudos para isso. Um estudioso tem método, tem uma série de ferramentas ao seu dispor, que eu não tenho, porque não estudei para ser investigador. Sou um curioso e um amante do fado, lido sempre com o amor às coisas. E por amor, fui aprofundando o conhecimento e tinha acesso, por exemplo, a um livro do Adelino de Sousa que se chama “O Fado e os Seus Censores”, que é muito interessante de ler, de 1912. E que agora, o Museu do Fado já tem em edição, por exemplo. E outras coisas importantes: gravações, registos, o “Guitarras de Portugal”, um jornal que havia. E esse plano é fantástico. Hoje podemos ter acesso a coisas através do museu, que antes não havia como ter acesso. Coisas que desconhecíamos sobre o fado e que não podíamos tirar a limpo. Isso é fabuloso e deve-o ao fado ter sido reconhecido como património.

À medida que foi aprofundando o seu conhecimento sobre o fado, isso ajudou-o a escolher os fados que canta, passou a escolhê-los de outra maneira?

Sim, influenciou de alguma forma. Mas eu escolho os fados porque me dizem qualquer coisa. Quando os leio ou quando os ouço, sei que preciso de os cantar. É por necessidade, não é por querer dizer nada a ninguém ou para mostrar que esse fado é melhor que este ou que aquele. Não é isso, não é esse o objetivo. Quando vejo um certo poema, preciso de o cantar. É uma coisa que preciso de fazer e não sei porquê. É como comer um doce. Mesmo que a pessoa não coma muitos doces, há um dia que diz: preciso de um doce, tenho que comer um doce. E não sabe porquê, sabe lá se é o corpo que está a pedir. E as músicas, as letras, para mim, são um pouco assim. Preciso de cantar e não sei porquê.

Depende da inspiração, é isso? Sabe de onde vem a inspiração para este disco?

Sim, um pouco. Neste disco a inspiração vem de um poema do Miguel Torga, que se chama “Orfeu Rebelde”. E todos os fados que iam aparecendo, todas as melodias, os poemas, tinham a ver com essa inspiração. Era necessário cantar aquilo, porque tinha uma inspiração.

Neste último trabalho tem duas canções que não canta em português. De onde veio a inspiração para as cantar?

Primeiro, foi um desafio que o João Paulo me fez com a “Chanson d’Automne” de Paul Verlaine. Mandei uns quantos poemas ao João Paulo, um deles, do Ary dos Santos, que ele musicou — o “Soneto de Mal Amar” — mas para os outros que eu lhe mandei, não lhe saía a inspiração. E ele disse-me assim: para os outros não me saiu nada, mas eu tenho uma canção que já fiz há algum tempo e de que gosto muito. Qual é a tua relação como o francês? Eu disse-lhe: a minha relação com o francês é quase nula. Falo mal, sei meia dúzia de palavras. Mas ele disse-me: ouve lá este francês. É um francês antigo, “les sanglots longs” [literalmente, “os soluços longos”], já não se usa. Ele começa cantando uma vez, duas vezes… E eu pedi-lhe: não se importa de me traduzir? Eu vou gravar. Era estúpido não o fazer, é uma canção tão bela. Um poema tão belo e eu não o cantar. Era, no mínimo, estúpido da minha parte. Se ficasse mau, não saía. Não vou dar uma lição de como falar francês ou cantar em francês, mas não está mal. Qualquer francês percebe que não é um francês a cantar, mas percebe que há respeito pela língua e pela música.

E porque escolheu “Voy”, em castelhano?

O “Voy” também tem a ver com o “Orfeu Rebelde”. Todas as canções têm a ver com esse poema. A canção em francês acaba com “Deçà, delà; pareil à la feuille morte” [literalmente, “de cá e para lá, como uma folha morta”]. O “Voy” vem de uma conversa que tive com o Joaquim Monchique, que conhece muito de música latino-americana. Conhece muitos boleros, salsas, rumbas e tem o telefone pejado de gigas e gigas de músicas dos anos 30 e 40, com orquestra. É como eu com o fado, ele sabe datas dos boleros, dos tangos. Nessa conversa, íamos falando e ele ia-me mostrando músicas, até que surge o “Voy”. E levei um safanão. Contive-me e perguntei-lhe: esta é bonita, como é que se chama? Ele disse-me: está é o “Voy”, estou a vê-la cantada por ti. Calei-me bem caladinho e fui ao YouTube e encontrei-a. Mas não foi a versão que eu ouvi. Continuei a procurar até que apanhei essa versão. Gostei tanto que fui como uma sanguessuga: peguei nela e cantei. E depois mostrei-lhe e pedi-lhe opinião. Ele adorou e eu fiquei todo contente, porque tinha pensado: se o Monchique não gosta disto, vou ficar desgraçado. Eu gostei da música, tem a ver comigo, e canto-a no disco.

O disco chama-se “Hoje é assim, amanhã não sei”. Porquê?

O professor Agostinho da Silva tem uma frase muito engraçada, de que gosto muito e que diz assim: “Tenta ao máximo não fazer planos para a vida, para não estragares os planos que a vida possa ter para ti.” Até há pouco tempo eu não a percebia, só agora comecei percebendo, por isso o título “Hoje é assim, amanhã não sei”. E é também por causa de um certo desconsolo com este mundo estúpido. Temos tanta coisa que faz tudo, tanto telemóvel e nós continuamos a nascer com cinco dedos em cada mão. Continuamos a fazer coisas estúpidas, como matar. Não sei bem como é isto, só sei que hoje é assim e amanhã não sei. Hoje canto assim, amanhã não sei como vou cantar.
Só espero que o universo permita que seja sempre assim, que eu nunca saiba o que aí vem. “Não sei por onde vou, não sei para onde vou; sei que não vou por aí”, dizia o José Régio e o inspirador do Largo da Memória [o seu trabalho anterior]. Com a “Toada de Portalegre”, em que numa parte diz: “Quem desespera dos homens / Se a alma lhe não secou / A tudo transfere a esperança / Que a humanidade frustrou: / De esperar nos animais / De humanizar coisas brutas / E ter criancices tais / Tais e tantas / Que será bom ter pudor / De as contar seja a quem for”. Este trabalho tem muitas criancices, mas o outro também tinha: muitos géneros que eu abracei e que não são fado. Como um arranjo de três guitarras portuguesas, um arranjo barroco, do Ricardo Rocha. E este tem outras coisas, tem pianos. Queira Deus que eu nunca saiba para onde vou. Eu gosto é de viver o hoje, de cantar o hoje. Mas é sempre bom ter a janela aberta para qualquer coisa, não se sabe nunca o que vem.

Continua a dar-lhe prazer cantar nas casas de fado, mais próximo das pessoas?

Não posso ser cínico e tenho que dizer que há dias em que não me apetece. Eu não tenho um trabalho, tenho um prazer, faço isto com amor. Eu sei a sorte que tenho, faço aquilo de que gosto, que amo, mesmo. Dou o sangue e a vida a cantar: não é um trabalho, é um prazer. Mas há dias em que não me apetece sentir esse prazer, naquela hora. É um pouco como prazer da comida: temos prazer em comer bife, mas há dias em que não temos tanto prazer. Francamente, há em dias em que não me apetece e aí tenho que encarar o meu prazer com profissionalismo.

Outro dos seus prazeres é ler poesia, recitá-la — como faz tantas vezes — e escrevê-la. Quando é que vai cantar o que escreve?

Escrevo para ficar para mim, não me atrevo a cantar o que escrevo. Conheço tanta poesia boa, quer popular, quer erudita que não atrevo a mandar cá para fora a minha, porque é má. Todos os dias escrevo, nem sempre em poesia. Às vezes é em prosa. Escrevo sobre coisas que analiso, que penso. Tenho um passatempo, que é pensar, gosto de ficar pensando sobre várias coisas. Mas não ando a vender isso a ninguém, nem faço disso uma bandeira. Escrevo para mim e ficarão para aí uns quantos escritos. Depois a minha filha ou quem ficar depois de mim, que façam o que quiserem com eles.

Nunca vai cantar os seus poemas?

Não, nunca. Apesar de não saber o amanhã, esse amanhã é difícil. Não creio que cante algum poema meu, só música escrita por mim. Música sim, poemas não. Duvido muito, não vislumbro esse amanhã.

O seu próximo concerto é no dia 30 de abril no Coliseu de Lisboa. Quer desvendar um pouco de como vai ser?

No concerto vou cantar a “Porta do Coração”, a “Fama de Alfama”, o “Fado do Alentejo”, aqueles fados que já todos se habituaram a ouvir, de que gostam muito e que eu fico feliz quando canto. Vou ter todos os músicos que estão neste disco em palco e todo o reportório deste trabalho. Faz este ano vinte anos que eu pisei aquele palco pela primeira vez, em 1996, a concorrer na Grande Noite do Fado. E estou cheio de nervos, mas acho que vai ser belo. Espero que seja. Pelo menos, vai ser verdadeiro.













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