Fausto - Por este rio acima
Discos - Janeiro 10, 2009
"Por Este Rio Acima", a obra-prima
absoluta de Fausto Bordalo Dias é também um dos discos mais importantes
da música portuguesa de sempre.
Para muitos – eu incluído – é mesmo o
melhor. Tendo como fonte de inspiração a obra "Peregrinação", de Fernão
Mendes Pinto, Fausto apresenta um duplo álbum conceptual, seguindo do
princípio ao fim uma ideia coerente e concretizando-a de forma
magistral, dando-nos um trabalho que na verdade supera tudo o que até
aí fora feito em Portugal e ainda hoje não igualado nem mesmo pelo
próprio Fausto, apesar da tentativa feita em "Crónicas da Terra
Ardente" (Sony, 1994), o segundo capítulo sob o signo da Diáspora
Lusitana. Com letras e composições de Fausto, o álbum é composto por
dezasseis temas com o seguinte alinhamento: Disco 1: "É o mar que nos
chama" (instrumental), "O barco vai de saída", "Porque não me vês", "A
guerra é a guerra", "De um miserável naufrágio que passámos", "Como um
sonho acordado", "A ilha", "A voar por cima das águas" e "Olha o fado";
Disco 2: "Por este rio acima", "O cortejo dos penitentes", "O romance
de Diogo Soares", "Navegar, navegar", "O que a vida me deu", "Lembra-me
um sonho lindo" e "Quando às vezes ponho diante dos olhos".
Gravado durante a Primavera e Verão de 1982, nos Estúdios Angel, em Lisboa, com captação de som de José Fortes, Rui Novais e Luís Flor, "Por Este Rio Acima" é simplesmente um caso ímpar na música popular portuguesa, quer do ponto de vista da complexidade da proposta e da sua genial execução quer da extraordinária profundidade musical da obra. Além da riqueza melódica e harmónica, então ainda pouco usual na música popular portuguesa, Fausto aprofunda quase até ao limite a invenção que já vinha de "Madrugada dos Trapeiros" (Orfeu, 1977) e de "Histórias de Viageiros" (Orfeu, 1979) e a exploração de uma nova rítmica, a partir da tradição portuguesa. Este trabalho a todos os títulos superlativo e referencial, – de que se não deve esquecer o precioso contributo de Eduardo Paes Mamede na produção, direcção musical e arranjos (partilhados com o próprio Fausto), e o magistral desempenho de uma plêiade de músicos de excelência, marca de forma decisiva a música popular portuguesa e afirma Fausto como um dos grandes criadores do nosso tempo.
Na execução instrumental ressalta a riqueza e variedade das fontes sonoras e respectivos músicos: cordas (Ilídio Gomes, Isabel Sorrilha, António Oliveira e Silva, Luísa Vasconcelos), trompa (Adácio Pestana, Joaquim Correia, António Costa), guitarra portuguesa (Pedro Caldeira Cabral), viola acústica (Fausto, Júlio Pereira, Mestre Paulinho das Garotas), viola braguesa e cavaquinho (Júlio Pereira), baixo (Pedro Casaes, Xico Zé), adufes, triângulo, bombos, tablas, caixas populares, paus, reco, maraca, choca, bloco (Pintinhas, Rui Júnior, Zé Martins, Rui, Pedro Casaes, Xico Zé), violino (Zé Ernesto), flautas (Eduardo Paes Mamede, creditado como Ed), acordeão (Jorge Nascimento), piano e sintetizador (João Paulo), violas de gamba soprano e alaúde (Pedro Caldeira Cabral) e coros (Lena, Zélia, Toinas, Isabel, Tozé, Rui Vaz, Pedro Casaes e Eduardo Paes Mamede). Destaque ainda para a participação especial de alguns actores do Grupo de Teatro A Barraca (Maria do Céu Guerra, Santos Manuel, Orlando Costa e João Maria Pinto) e de várias vozes femininas do GAC, creditadas como Coro dos "Meninos do Meio-Tom" (no tema "O romance de Diogo Soares").
Citemos as palavras de Eduardo Paes Mamede, por razões óbvias, e porque constituem, sem dúvida alguma, uma achega importante para a compreensão de "Por Este Rio Acima": «Pareceu-me que ninguém estava melhor colocado para escrever algumas notas sobre o trabalho musical do que eu, que acompanhei o Fausto desde o início de embarcar neste sonho. Recordar o início da viagem é recordar aquela tournée por Espanha, naquele Verão de 80, em que o Fausto nos mostrou o desabrochar do que viria a ser, porventura, uma das mais belas canções de amor da Música Portuguesa – "Porque não me vês". Assistir ao nascimento destas canções foi para mim uma experiência que me permitiu, não só o exame do processo criativo, como também dos elementos subjectivos e subjacentes que lhe presidiram, nascendo desta observação, e do posterior trabalho conjunto, uma tão grande afeição por esta obra, que aconteceu aquilo que eu gostaria que também acontecesse com o público – adoptei-a como minha também. Fundamentalmente podemos dividir as canções incluídas neste disco em dois grandes grupos: as canções com influências urbanas e as directamente inspiradas pela tradição musical popular portuguesa.
Em relação ao primeiro grupo encontramos títulos como "O cortejo dos penitentes", "O romance de Diogo Soares" e "O que a vida me deu", que estruturalmente não demonstram quaisquer afinidades particulares, servindo, a meu ver, tanto nos aspectos melódicos, harmónicos e de arranjo ou ambientais, como excelentes suportes para o discurso literário, sendo produtos da amálgama cultural urbana que, no caso do Fausto, tem a ver muitas vezes com reminiscências melódicas e harmónicas beatlianas e africanas. Estão ainda consideradas neste grupo as canções "Como um sonho acordado", "A ilha" e "Por este rio acima", porém nestes casos há algo mais a acrescentar como a utilização da rítmica tradicional estilizada numa preocupação evidente de recuperar e referenciar culturalmente as canções (ritmos de Lavacolhos em "Como um sonho acordado" e a utilização do ritmo ternário dos adufes comum às regiões da Beira Baixa e Alto Douro em "Por este rio acima").
Para além destes aspectos e, porventura mais importantes por dizerem respeito à própria concepção melódica/harmónica das canções, encontramos as simbioses com elementos do fado de Coimbra ("A ilha") e com a tradição musical açoriana ("Como um sonho acordado"). "Quando às vezes ponho diante dos olhos", canção que sintetiza e com que termina toda a obra é, como não podia deixar de ser, uma canção urbana no sentido em que abarca toda a viagem anterior. Curiosa, e quanto a mim singular, é a referência nítida ao fado (apresentado numa evolução harmónica) do discurso final, por este ser já de si próprio, segundo afirmam alguns estudiosos, originário de influências culturais diversificadas numa estratificação lenta através dos séculos e com raízes no próprio século XV durante a empresa marítima portuguesa.
No segundo grupo de canções que definimos como directamente inspiradas pela tradição musical portuguesa há, em primeiro lugar, que chamar a atenção para algumas características da concepção destas canções. Trata-se, quanto a mim, de Música Popular Portuguesa de primeira água, definindo esta como inspirada na música tradicional portuguesa e, por conseguinte, identificada e identificadora duma Cultura Nacional. É sabido que, em geral, a música tradicional dos países da Europa Ocidental se, por um lado, é muito limitada harmonicamente, resumindo-se a esquemas bitonais e tritonais, enquadrando as melodias entre a tónica e a dominante (exceptuando-se, claro, construções antigas modais), por outro, quase toda ela possui uma diversidade rítmica muito grande e rica.
Daqui se conclui que, para os que trabalham e se preocupam com estas coisas, o maior problema para a Música Popular Portuguesa é, sem dúvida, a questão harmónica/melódica, questão esta que a experiência brasileira já mostrou ser resolúvel mas não aplicável em todos os casos, isto é, as soluções encontradas (marchas harmónicas e formação dos próprios acordes) não satisfazem plenamente no nosso país por colorirem em demasia a nossa música com tons tropicais e, por arrastamento, cairmos nos ritmos brasileiros aos quais estas sequências harmónicas estão intimamente ligadas, preferindo-os inconscientemente à verdadeira raiz africana. Esta questão faz com que muitas vezes, procurando elementos africanos (a raiz de muitos géneros musicais vigorosos e que histórica e culturalmente muito têm a ver connosco), utilizemos, não avisadamente, ritmos brasileiros pensando dela se tratar.
No caso de Fausto (com uma memória cultural africana original pois nasceu e viveu muitos anos em Angola), na própria concepção destas canções podemos examinar dois aspectos: por um lado, os temas são formados, em geral, por A e B, sendo o primeiro feito ao estilo tradicional (bitonal ou tritonal, movendo-se a melodia entre a tónica e a dominante) mas, e isto é que é curioso neste autor, não se apoiando nos tempos fortes ao compasso (característica da música dos bairros suburbanos de Luanda) dando assim um efeito flutuante sobre uma base rítmica sólida e quebrada pela permanente acentuação em contratempo de uma viola (também outra característica do acompanhamento instrumental da zona já referida); por outro lado, a concepção dos temas B, em que se procuram modulações a tons afastados em apoio duma melodia fluente que foge ao espartilho bitonal ou tritonal. Estão neste caso as canções "O barco vai de saída", "A guerra é a guerra", "De um miserável naufrágio que passámos", "Navegar, navegar" e "Lembra-me um sonho lindo".
Nestas canções houve ainda a preocupação, tal como aconteceu nas outras, de as vestir ritmicamente com elementos estilizados da música tradicional (paus de Trás-os-Montes, ritmos de Lavacolhos e Santa Marinha) aliados, por vezes, a outros elementos de origem africana. Por último, uma referência a "Olha o fado" que, como se pode perceber, trata-se de mais um fado de nova geração e inclui-se dentro da preocupação dos autores desta área em recuperar esta forma de folclore urbano experimentando a sua evolução harmónica» (cit. Eduardo Paes Mamede).
É também pertinente citar Fernando Magalhães: «Sobre esta obra há quem diga que saiu antes de tempo. Que o seu autor nunca conseguirá vencer o estigma de a ter feito, como se Fausto estivesse condenado a ver tudo o fez depois sujeito a uma comparação impiedosa. Que é o verdadeiro disco sobre os Descobrimentos e não a encomenda que fizeram quase uma década mais tarde a Rui Veloso ["Auto da Pimenta", EMI-VC, 1991]. Que é um marco da história da música popular portuguesa. Tudo isto é verdade, porque "Por Este Rio Acima" é um objecto único e irrepetível. Raramente tantos factores positivos se conjugaram de maneira a resultar num álbum onde tudo bate certo. Em primeiro lugar, porque faz a síntese coerente da música tradicional portuguesa com a modernidade. "Por Este Rio Acima" constrói-se, nos temas mais balanceados, sobre as fundações rítmicas das chulas, do corridinho, até do fado. E sobre outros chãos onde Portugal deixou sementes, em África, no Oriente, no Brasil.
Mas o que se ouve é algo de original que se projecta no futuro e numa atitude de puro experimentalismo, no sentido de pesquisa de novas formas e sonoridades. Depois é uma lição de história viva, na maneira como Fausto transformou "A Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto em qualquer coisa que toca de perto e com muita força na sociedade portuguesa actual. Há a aventura, mas também a miséria. O tom épico e a farsa. O sonho e a mordacidade crítica. "Por Este Rio Acima" é uma viagem pelos mares, mas também como se diz no disco "por cima dos pensamentos". Saga heróica onde a visão interior serve de bússola, como mostra a bela ilustração da capa.
É um disco imbuído de felicidade, onde tudo se encaixa de maneira natural, fruto, em parte, da rodagem que sofreu no período anterior à gravação [no teatro de A Barraca] e ao extremo cuidado posto nos variados aspectos técnicos. E se hoje a maior parte das pessoas recorda e trauteia as melodias irresistíveis de "O Barco vai de saída" e "Navegar, navegar", a verdade é que são os temas mais lentos, como o psicadelismo oriental "Porque não me vês", a dor solitária de "O que a vida me deu" ou a antológica cena de "interiores" que é "Como um sonho acordado" que deixam marcas mais profundas. Um álbum de infinitas descobertas.»
Gravado durante a Primavera e Verão de 1982, nos Estúdios Angel, em Lisboa, com captação de som de José Fortes, Rui Novais e Luís Flor, "Por Este Rio Acima" é simplesmente um caso ímpar na música popular portuguesa, quer do ponto de vista da complexidade da proposta e da sua genial execução quer da extraordinária profundidade musical da obra. Além da riqueza melódica e harmónica, então ainda pouco usual na música popular portuguesa, Fausto aprofunda quase até ao limite a invenção que já vinha de "Madrugada dos Trapeiros" (Orfeu, 1977) e de "Histórias de Viageiros" (Orfeu, 1979) e a exploração de uma nova rítmica, a partir da tradição portuguesa. Este trabalho a todos os títulos superlativo e referencial, – de que se não deve esquecer o precioso contributo de Eduardo Paes Mamede na produção, direcção musical e arranjos (partilhados com o próprio Fausto), e o magistral desempenho de uma plêiade de músicos de excelência, marca de forma decisiva a música popular portuguesa e afirma Fausto como um dos grandes criadores do nosso tempo.
Na execução instrumental ressalta a riqueza e variedade das fontes sonoras e respectivos músicos: cordas (Ilídio Gomes, Isabel Sorrilha, António Oliveira e Silva, Luísa Vasconcelos), trompa (Adácio Pestana, Joaquim Correia, António Costa), guitarra portuguesa (Pedro Caldeira Cabral), viola acústica (Fausto, Júlio Pereira, Mestre Paulinho das Garotas), viola braguesa e cavaquinho (Júlio Pereira), baixo (Pedro Casaes, Xico Zé), adufes, triângulo, bombos, tablas, caixas populares, paus, reco, maraca, choca, bloco (Pintinhas, Rui Júnior, Zé Martins, Rui, Pedro Casaes, Xico Zé), violino (Zé Ernesto), flautas (Eduardo Paes Mamede, creditado como Ed), acordeão (Jorge Nascimento), piano e sintetizador (João Paulo), violas de gamba soprano e alaúde (Pedro Caldeira Cabral) e coros (Lena, Zélia, Toinas, Isabel, Tozé, Rui Vaz, Pedro Casaes e Eduardo Paes Mamede). Destaque ainda para a participação especial de alguns actores do Grupo de Teatro A Barraca (Maria do Céu Guerra, Santos Manuel, Orlando Costa e João Maria Pinto) e de várias vozes femininas do GAC, creditadas como Coro dos "Meninos do Meio-Tom" (no tema "O romance de Diogo Soares").
Citemos as palavras de Eduardo Paes Mamede, por razões óbvias, e porque constituem, sem dúvida alguma, uma achega importante para a compreensão de "Por Este Rio Acima": «Pareceu-me que ninguém estava melhor colocado para escrever algumas notas sobre o trabalho musical do que eu, que acompanhei o Fausto desde o início de embarcar neste sonho. Recordar o início da viagem é recordar aquela tournée por Espanha, naquele Verão de 80, em que o Fausto nos mostrou o desabrochar do que viria a ser, porventura, uma das mais belas canções de amor da Música Portuguesa – "Porque não me vês". Assistir ao nascimento destas canções foi para mim uma experiência que me permitiu, não só o exame do processo criativo, como também dos elementos subjectivos e subjacentes que lhe presidiram, nascendo desta observação, e do posterior trabalho conjunto, uma tão grande afeição por esta obra, que aconteceu aquilo que eu gostaria que também acontecesse com o público – adoptei-a como minha também. Fundamentalmente podemos dividir as canções incluídas neste disco em dois grandes grupos: as canções com influências urbanas e as directamente inspiradas pela tradição musical popular portuguesa.
Em relação ao primeiro grupo encontramos títulos como "O cortejo dos penitentes", "O romance de Diogo Soares" e "O que a vida me deu", que estruturalmente não demonstram quaisquer afinidades particulares, servindo, a meu ver, tanto nos aspectos melódicos, harmónicos e de arranjo ou ambientais, como excelentes suportes para o discurso literário, sendo produtos da amálgama cultural urbana que, no caso do Fausto, tem a ver muitas vezes com reminiscências melódicas e harmónicas beatlianas e africanas. Estão ainda consideradas neste grupo as canções "Como um sonho acordado", "A ilha" e "Por este rio acima", porém nestes casos há algo mais a acrescentar como a utilização da rítmica tradicional estilizada numa preocupação evidente de recuperar e referenciar culturalmente as canções (ritmos de Lavacolhos em "Como um sonho acordado" e a utilização do ritmo ternário dos adufes comum às regiões da Beira Baixa e Alto Douro em "Por este rio acima").
Para além destes aspectos e, porventura mais importantes por dizerem respeito à própria concepção melódica/harmónica das canções, encontramos as simbioses com elementos do fado de Coimbra ("A ilha") e com a tradição musical açoriana ("Como um sonho acordado"). "Quando às vezes ponho diante dos olhos", canção que sintetiza e com que termina toda a obra é, como não podia deixar de ser, uma canção urbana no sentido em que abarca toda a viagem anterior. Curiosa, e quanto a mim singular, é a referência nítida ao fado (apresentado numa evolução harmónica) do discurso final, por este ser já de si próprio, segundo afirmam alguns estudiosos, originário de influências culturais diversificadas numa estratificação lenta através dos séculos e com raízes no próprio século XV durante a empresa marítima portuguesa.
No segundo grupo de canções que definimos como directamente inspiradas pela tradição musical portuguesa há, em primeiro lugar, que chamar a atenção para algumas características da concepção destas canções. Trata-se, quanto a mim, de Música Popular Portuguesa de primeira água, definindo esta como inspirada na música tradicional portuguesa e, por conseguinte, identificada e identificadora duma Cultura Nacional. É sabido que, em geral, a música tradicional dos países da Europa Ocidental se, por um lado, é muito limitada harmonicamente, resumindo-se a esquemas bitonais e tritonais, enquadrando as melodias entre a tónica e a dominante (exceptuando-se, claro, construções antigas modais), por outro, quase toda ela possui uma diversidade rítmica muito grande e rica.
Daqui se conclui que, para os que trabalham e se preocupam com estas coisas, o maior problema para a Música Popular Portuguesa é, sem dúvida, a questão harmónica/melódica, questão esta que a experiência brasileira já mostrou ser resolúvel mas não aplicável em todos os casos, isto é, as soluções encontradas (marchas harmónicas e formação dos próprios acordes) não satisfazem plenamente no nosso país por colorirem em demasia a nossa música com tons tropicais e, por arrastamento, cairmos nos ritmos brasileiros aos quais estas sequências harmónicas estão intimamente ligadas, preferindo-os inconscientemente à verdadeira raiz africana. Esta questão faz com que muitas vezes, procurando elementos africanos (a raiz de muitos géneros musicais vigorosos e que histórica e culturalmente muito têm a ver connosco), utilizemos, não avisadamente, ritmos brasileiros pensando dela se tratar.
No caso de Fausto (com uma memória cultural africana original pois nasceu e viveu muitos anos em Angola), na própria concepção destas canções podemos examinar dois aspectos: por um lado, os temas são formados, em geral, por A e B, sendo o primeiro feito ao estilo tradicional (bitonal ou tritonal, movendo-se a melodia entre a tónica e a dominante) mas, e isto é que é curioso neste autor, não se apoiando nos tempos fortes ao compasso (característica da música dos bairros suburbanos de Luanda) dando assim um efeito flutuante sobre uma base rítmica sólida e quebrada pela permanente acentuação em contratempo de uma viola (também outra característica do acompanhamento instrumental da zona já referida); por outro lado, a concepção dos temas B, em que se procuram modulações a tons afastados em apoio duma melodia fluente que foge ao espartilho bitonal ou tritonal. Estão neste caso as canções "O barco vai de saída", "A guerra é a guerra", "De um miserável naufrágio que passámos", "Navegar, navegar" e "Lembra-me um sonho lindo".
Nestas canções houve ainda a preocupação, tal como aconteceu nas outras, de as vestir ritmicamente com elementos estilizados da música tradicional (paus de Trás-os-Montes, ritmos de Lavacolhos e Santa Marinha) aliados, por vezes, a outros elementos de origem africana. Por último, uma referência a "Olha o fado" que, como se pode perceber, trata-se de mais um fado de nova geração e inclui-se dentro da preocupação dos autores desta área em recuperar esta forma de folclore urbano experimentando a sua evolução harmónica» (cit. Eduardo Paes Mamede).
É também pertinente citar Fernando Magalhães: «Sobre esta obra há quem diga que saiu antes de tempo. Que o seu autor nunca conseguirá vencer o estigma de a ter feito, como se Fausto estivesse condenado a ver tudo o fez depois sujeito a uma comparação impiedosa. Que é o verdadeiro disco sobre os Descobrimentos e não a encomenda que fizeram quase uma década mais tarde a Rui Veloso ["Auto da Pimenta", EMI-VC, 1991]. Que é um marco da história da música popular portuguesa. Tudo isto é verdade, porque "Por Este Rio Acima" é um objecto único e irrepetível. Raramente tantos factores positivos se conjugaram de maneira a resultar num álbum onde tudo bate certo. Em primeiro lugar, porque faz a síntese coerente da música tradicional portuguesa com a modernidade. "Por Este Rio Acima" constrói-se, nos temas mais balanceados, sobre as fundações rítmicas das chulas, do corridinho, até do fado. E sobre outros chãos onde Portugal deixou sementes, em África, no Oriente, no Brasil.
Mas o que se ouve é algo de original que se projecta no futuro e numa atitude de puro experimentalismo, no sentido de pesquisa de novas formas e sonoridades. Depois é uma lição de história viva, na maneira como Fausto transformou "A Peregrinação" de Fernão Mendes Pinto em qualquer coisa que toca de perto e com muita força na sociedade portuguesa actual. Há a aventura, mas também a miséria. O tom épico e a farsa. O sonho e a mordacidade crítica. "Por Este Rio Acima" é uma viagem pelos mares, mas também como se diz no disco "por cima dos pensamentos". Saga heróica onde a visão interior serve de bússola, como mostra a bela ilustração da capa.
É um disco imbuído de felicidade, onde tudo se encaixa de maneira natural, fruto, em parte, da rodagem que sofreu no período anterior à gravação [no teatro de A Barraca] e ao extremo cuidado posto nos variados aspectos técnicos. E se hoje a maior parte das pessoas recorda e trauteia as melodias irresistíveis de "O Barco vai de saída" e "Navegar, navegar", a verdade é que são os temas mais lentos, como o psicadelismo oriental "Porque não me vês", a dor solitária de "O que a vida me deu" ou a antológica cena de "interiores" que é "Como um sonho acordado" que deixam marcas mais profundas. Um álbum de infinitas descobertas.»
Fernando Magalhães, in "Os Melhores
Álbuns da Música Popular Portuguesa"
Artigos Relacionados
Comentar