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Para Uma História do Fado - Rui Vieira Nery

Livros - Outubro 15, 2012
Imprensa Nacional Casa da Moeda / 2012
"Para Urna História do Fado" converteu-se desde a sua publicação original, em 2004, numa referência fundamental da bibliografia sobre o género.

Na já longa História dos livros que, desde o início do Séc. XX, têm como missão contar a História do Fado – dos pioneiros Pinto de Carvalho (Tinop) e Alberto Pimentel a José Ramos Tinhorão, António Osório, Ruben de Carvalho ou José Alberto Sardinha -, Rui Vieira Nery é o autor de um dos livros mais abertos, abrangentes, informados e fundamentados: “Para Uma História do Fado” (editado originalmente em 2004 pela Corda Seca/Público e reeditado em 2012 pela Imprensa Nacional – Casa da Moeda). Riquíssimo em fontes e referências, apontando dogmas e contra-dogmas, mergulhando nas origens míticas do fado mas também apontando-lhe caminhos para o futuro, “Para Uma História do Fado” é uma obra extensíssima de extrema importância e relevância musicológica mas é, também, uma imensa declaração de amor a este género musical e poético. Nesta página publicamos as palavras de Rui Vieira Nery incluídas num outro livro – o segundo volume da “Enciclopédia da Música em Portugal no Século XX” (INET/Círculo de Leitores; 2010 – dirigida por Salwa Castelo-Branco), na entrada dedicada ao Fado – que, segundo o próprio, fazem um resumo das ideias sobre as origens do Fado que Rui Vieira Nery explana nos primeiros capítulos deste “Para Uma História do Fado”.

Na ausência de um exame rigoroso e exaustivo quer dos mais antigos registos documentais disponíveis quer mesmo dos primeiros esforços de análise histórica do fenómeno que haviam surgido já na viragem para o século XX, foram-se acumulando desde então a propósito do fado múltiplos mitos de origem, depressa adoptados pelo seu próprio meio e veiculados quer pelos poemas cantados quer por alguma da escassa bibliografia que foi sendo publicada sobre o tema. Filiando-se de forma expressa ou apenas implícita numa ideologia nacionalista forjada ainda no seio do movimento romântico de finais do século XIX e reforçada depois no período do Estado Novo, esses mitos procuravam fazer remontar as origens directas do género à canção renascentista da era dos Descobrimentos, à cantiga trovadoresca medieval ou mesmo às práticas poético-musicais do período árabe, visando assim, por um lado, legitimar historicamente o género por esta antecipação cronológica artificial da sua emergência e convertê-lo, por outro lado, enquanto tal, em mais um suposto traço identitário da própria formação e afirmação histórica da nacionalidade.

As próprias características poético-musicais dos fados mais antigos de que hoje conhecemos registo escrito localizam, pelo contrário, a génese gradual do fado no contexto mais vasto da emergência gradual dos múltiplos géneros de canção popular urbana que entre meados do século XVIII e o final das guerras napoleónicas se vão definindo um pouco por toda a Europa nos principais centros urbanos e que em Portugal começam por encontrar nesse mesmo período o seu espaço genérico na chamada modinha, num processo semelhante aos do desenvolvimento da canzonetta italiana, da ballad inglesa, ou da seguidilla espanhola. Entre essas características contam-se o predomínio da tonalidade moderna, já sem qualquer vestígio modal, a alternância simples entre tónica e dominante como base harmónica estrutural, os padrões de acompanhamento em figurações do tipo do baixo de Alberti, a melodia sentimental com maior ou menor espaço para ornamentação e variação improvisadas, a quadratura rítmica regular, e o uso preferencial da quadra em redondilha maior – aspectos manifestamente distintos, no seu conjunto, dos que tinham definido até então os géneros de canção tradicional rural de origens históricas comprovadamente mais remotas.

As primeiras instâncias de uso da palavra “fado” aplicada explicitamente a um fenómeno musical surgem-nos nas descrições dos viajantes e ensaístas estrangeiros das primeiras décadas do século XIX (Balbi, Freycinet, Pohl, Schlichthorst, Weech) e referem-se a uma dança cantada de negros desenvolvida no Brasil colonial, dançada por pares num contexto popular de terreiro, envolvendo contacto físico ocasional entre os dançarinos, e aparentada com as demais danças afro-brasileiras dos finais do século XVIII, em particular com o lundum. O reatar de um intenso comércio luso-brasileiro após as invasões francesas e o regresso da Família Real e da Corte portuguesas a Lisboa em 1821 terão facilitado a chegada à metrópole destas e de outras danças e canções tradicionais do Brasil, sendo de admitir que o fado, pelas suas associações no seu contexto de origem ao circuito dos negros escravos e libertos e ao das camadas mais baixas do proletariado urbano, se tenha naturalmente implantado sobretudo, num primeiro momento, nos bairros lisboetas mais pobres, em particular nos associados à actividade portuária, que estavam mais expostos a este primeiro impacte intercultural.

Nas décadas de 1830 e 40 multiplicam-se as referências literárias, jornalísticas e documentais à prática do fado simultaneamente como canção e dança (“bater o fado”), característica dos meios boémios da capital, com fortes associações ao universo das tabernas, dos prostíbulos e da tauromaquia. Nesse período, contudo, o uso do termo “fado” (e por extensão o do termo “fadista”) faz-se ainda com maior frequência na respectiva acepção original de destino ou sina, para designar em moldes metafóricos esse universo semi-marginal e os seus protagonistas, do que para referir directamente o género musical ali praticado e os seus executantes. Só a partir de meados do século XIX se torna predominante este último sentido musical específico, e à medida que se vai verificando esta transição semântica constata-se igualmente que nestas referências escritas as características estético-musicais associadas ao género vão evoluindo do carácter ritmado, enérgico e jovial inicialmente descrito como típico do fado dançado de raiz afro-brasileira para um crescente predomínio do canto (e da improvisação poética que lhe está ligada) sobre a dança, ao mesmo tempo que se reforçam as menções a um carácter sentimental, lamentatório e fatalista desse canto e à consequente adopção de andamentos mais arrastados para a sua execução. Multiplicam-se, do mesmo modo, as alusões à adopção da guitarra como instrumento de acompanhamento, muitas vezes tocada pelo próprio intérprete vocal, embora continue a ser mencionado o recurso a outras alternativas de suporte instrumental para esse fim, em particular o da viola.

Estas descrições serão mais tarde confirmadas pelas primeiras edições de partituras de fado, como as de César das Neves (publicadas a partir de 1893 nas incluindo alguns exemplos do género recolhidos ainda por volta de 1850). Nestas peças, para lá das características musicais genéricas acima referidas, pode verificar-se a maneira como os ritmos sincopados de raiz afro-brasileira ainda se mantêm mas são agora enfraquecidos pelos andamentos mais lentos e – segundo indiciam as mesmas fontes, tanto literárias como musicais – também por uma interpretação rítmica que deverá ter adoptado uma pulsação métrica menos rígida, com abundante recurso ao rubato e às suspensões. Esta tendência sugere, assim, que a matriz do fado dançado dos negros brasileiros se terá entretanto fundido com outras tradições poético-musicais populares autóctones de carácter mais dolente, quer próprias da região de Lisboa quer originárias de outras regiões do País de onde se verificaram movimentos migratórios significativos para a capital, para dar progressivamente origem àquilo que passou a constituir o fado de Lisboa, propriamente dito.

Ao mesmo tempo começam a surgir em número crescente indícios da penetração gradual do fado nas práticas culturais das classes médias de Lisboa, sobretudo a edição, a partir do início da década de 1870, de um conjunto de partituras de fados em versão para piano solo ou canto e piano destinadas claramente já ao salão burguês – colecções como a Lira do Fado (1870), o Almanaque do Cantador (1871), as Cantigas a Atirar Fadinhos (1873), o Almanaque do Bom Fadista (1875) ou O Livro d’Ouro do Fadista (1878), e inúmeras publicações de peças avulsas – e esta penetração é atestada igualmente pela literatura de descrição social da época (Eça de Queirós, Fialho de Almeida). Neste mesmo sentido aponta ainda a entrada do fado no teatro de revista, a partir do sucesso das comédias Ditoso Fado (1869), de Manuel Roussado, e Triste Fado (1871), de Castro Soromenho. Este primeiro alargamento do seu contexto social tende desde logo a favorecer fenómenos de interpenetração do fado com outros géneros poético-musicais e músico-teatrais da época, designadamente no plano da fixação e da elaboração poéticas.

Por outro lado, a associação íntima do fado ao universo boémio e noctívago tanto das tabernas e bordéis como dos teatros, no qual acaba por se mover também uma franja significativa dos jovens de extracção burguesa e aristocrática da capital, leva igualmente à sua adopção pela juventude universitária que converge em Coimbra, oriunda em grande parte de Lisboa mas também de todo o País. O desenvolvimento do género nos círculos académicos estudantis de Coimbra ao longo de toda a segunda metade do século XIX é intenso, e encontra o seu representante mais carismático na figura mítica do cantor e compositor Augusto Hilário, mas as fontes disponíveis parecem indicar que a prática fadista coimbrã terá tendido ainda neste período a ser quase idêntica à de Lisboa, não se detectando, por exemplo, nos fados recolhidos em ambas as cidades e publicados na recolha de César das Neves variantes poéticas ou musicais significativas que permitam detectar até então dois ramos evolutivos distintos, como se passará a verificar tendencialmente já a partir da transição para o século seguinte. É de admitir, no entanto, que a familiariedade dos estudantes universitários com uma multiplicidade de outros géneros de canção urbana contemporâneos, de cariz cosmopolita e mais ou menos erudito, possa ter acentuado também ela um cruzamento activo dos padrões originais do fado como os destes géneros, tanto no plano poético como no musical.

O que se torna assim evidente, por todas estas razões, é que o processo de evolução do género em Portugal ao longo do século XIX é profundamente dinâmico e se caracteriza, logo desde as suas origens, por novas sínteses constantes, com o fado a registar a cada momento mudanças estéticas significativas à medida que o seu próprio âmbito social se vai alargando e faz interferir na sua prática grupos sociais com perfis culturais distintos. A primeira dessas sínteses corresponde, como já foi referido, ao rápido reprocessamento das características estéticas originais da matriz afro-brasileira por fusão com outros géneros de música tradicional local, tanto de origem rural como de filiação popular urbana. Mas multiplicam-se desde muito cedo os exemplos de fados impressos com poemas de evidente recorte literário erudito, alguns até de autores identificados, mesmo quando as respectivas melodias são descritas como de autoria anónima e de transmissão oral, e César das Neves refere-se já à proliferação dos chamados “fados novos”, que indica serem muitas vezes designados por “serenatas” ou “nocturnos”, numa reveladora utilização da nomenclatura própria da música do salão burguês. Ou seja, se em finais do século XIX a prática do fado é ainda, sem dúvida, maioritariamente popular – ou mesmo proletária – há já então no seu seio importantes fenómenos de expansão social e de negociação estética inter-classista que condicionam decisivamente o seu perfil poético-musical e os respectivos processos de mudança. E esta dinâmica de alargamento contextual e de correspondente transformação interna pode constatar-se já desde uma fase tão embrionária do percurso histórico do próprio género que se torna dificilmente sustentável procurar identificar no seio dessa evolução um período de vigência de um modelo original estável ainda idealmente imune à interacção com este conjunto de determinantes sociais e estéticas exteriores.

Aos processos de difusão geográfica do género representados pelas digressões regulares pela província das companhias lisboetas de teatro musical e pela divulgação num mercado à escala nacional das primeiras edições impressas de fados soma-se o carácter flutuante da população universitária de Coimbra, que provém de todo o País e regressa às suas regiões de origem uma vez formada, o que explica que haja já no Cancioneiro de músicas populares alguns fados recolhidos em pontos tão dispersos geograficamente como Vouzela ou a Figueira da Foz. É revelador que estas últimas peças tendam todas elas a exibir um recorte poético de influência manifestamente erudita, sugerindo que este primeiro processo de expansão territorial se tenha efectuado menos por via popular do que no seio de uma rede das elites locais, por emulação do gosto da capital e do centro universitário do País.
Rui Vieira Nery


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