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Carlos do Carmo: "As histórias de faca e alguidar do fado fascinavam-me"

Entrevistas - Janeiro 01, 2022
Um ano depois da morte de Carlos do Carmo, e para homenagear o grande fadista, o DN republica hoje aquela que foi a última entrevista que deu, pouco mais de um mês antes, no seu apartamento em Lisboa.

Um trabalho do jornalista Nicolau Santos que fica como um documento, pois percorre toda a vida do músico, incluindo como o fado entrou nela.

Tinha prometido que me daria a última entrevista. Cumpriu. No dia 19 de novembro de 2020, às três em ponto, subi para o apartamento de Carlos do Carmo na Avenida dos Estados Unidos, em Lisboa. Uma empregada abriu-me a porta. O Carlos apareceu logo de seguida. Tinha-me pedido para não levar fotógrafo. Percebi. Estava fragilizado, embora bem-disposto e extremamente lúcido. Ficámos duas horas à conversa, frente a frente, com uma pequena mesa pelo meio. Saí da entrevista duas horas depois. Obrigado, Carlos.

O Carlos vai para a Suíça estudar com 17 anos. Nessa altura não estava próximo do fado.
Não estava, mas o Freud pode explicar isso melhor do que eu. O fado não me era uma coisa estranha. Também me fazia viver memórias de infância. Na pré-adolescência, ia com os meus pais às verbenas ouvir os velhinhos todos. Aquelas histórias de faca e alguidar fascinavam-me porque eu era criança e estava a ouvir uma história. Quando cheguei da Suíça vinha armado em snob. Só depois é que o fado entrou na minha vida.

Na Suíça convivia com outras músicas...
No colégio fazíamos os nossos jogos de futebol, de basquetebol, e por lá passaram músicos. Por exemplo, o Francis Hime. Tocava maravilhosamente acordeão, tinha os dedos amarelos de fumar, faltava às aulas. Ele queria era tocar. E estava no último andar da casa onde eu vivia. E eu lá ia para cima cantar coisas com ele.

Foi aí que começou a cantar?
Sim, mas com aquele prazer quase lúdico. Gostei sempre de ouvir os craques, os tipos que cantam muito bem, este, aquele e aqueloutro. A música francesa estava muito na berra. Mas a primeira vez que ouvi o Tony Bennet, na Suíça, fiquei absolutamente desvairado. Este colégio tinha uma coisa interessante. Xis vezes por ano íamos à cidade para um concerto. Podia ser o Andre Segovia, o Ritcher ao piano... Íamos ouvir grandes músicos. E era excelente. Fez bem. Você começa a sentir que a música é uma coisa tão vasta, tão vasta que se sente uma formiguinha. E é bom essa lição de humildade.

Foi decisão dos seus pais enviá-lo para a Suíça ou foi o Carlos que pediu?
A minha mãe era artista e, como artista, tinha a loucura do artista. O meu pai, coitado, passou as passas do Algarve. Um dia, estava a ouvir-me cantar de brincadeira e disse-me: "Eh pá! Tu cantas bem, mas não me vais para artista por uma razão muito simples. Aturar um louco chega-me. Dois já não quero." Era um homem superiormente inteligente, com uma visão da vida e das coisas muito particular. Ia, no fim de cada ano, ver as minhas notas ao Passos Manuel. Eram muito boas a História, Francês e Português e péssimas a Química e Matemática. Era uma diferença grande, mas dava para passar. E ele nunca fez comentários. Um dia disse-me assim: "O teu primo esteve a estudar na Suíça. Tu gostarias de ir estudar para a Suíça?" "Papá, tu deves estar a brincar. Primeiro não tens dinheiro para isso, depois qualquer miúdo quer ir estudar para a Suíça." E ele disse: "Então prepara-te que vais. Peço-te uma coisa: estuda mesmo. Sabes porquê? Cada escudo que eu gaste vai ser uma coisa muito violenta." E na realidade, quando ele morreu, devia muito dinheiro a vários amigos, que eu paguei até ao último tostão.

Depois acontece a morte súbita do seu pai em 1962...

Morreu com um aneurisma cerebral. Eu já tive vários aneurismas. Penso que é genético. E caiu redondo. Foi para o Hospital de São José, mas já ia cadáver.

E é obrigado a mudar de vida?
O meu pai era o gestor e gerente da casa de fados. A minha mãe era a cabeça de cartaz. Na altura, chamava-se A Adega da Lucília. Só mais tarde é que se passou a chamar Faia. Estava ainda a estudar na Suíça e restauração era uma coisa de que eu percebia, mas à maneira suíça. Veja bem o que é pegar em 30 pessoas, entre empregados e artistas, e ir para uma gestão disciplinada. Reuni todos. Tratavam-me por menino Carlos, Carlinhos, Carlos Alberto. Tive uma reunião franca e disse-lhes: "Isso do menino Carlinhos acabou, mas peço-vos que nunca me tratem por patrão. E vou explicar-vos isto. Se vocês tratarem bem o vosso patrão, isso é maravilhoso. Mas sabem onde é que ele está? É o tipo que entra e vem cá gastar dinheiro. Com esse dinheiro vocês recebem, eu recebo. Por favor, nunca me tratem mal o cliente." E a nossa casa estava sempre cheia. E outra coisa que lhes disse: sexo, não.

Foi aí que conheceu a Maria Judite?

A Maria Judite é uma mulher muito para a frente, de grande carácter, e era uma rapariga com grande determinação. Dei uma de macho latino. Foi levada lá por uma prima e pelo sujeito que fazia a publicidade do Faia. Ela era bombardeada na rádio quando ia para os aviões com canções do Carlos do Carmo. E então queria-me ouvir. O Fernando Ferreira Borges disse-lhe: "Vamos lá. Mas olha que ele é um bocado snob e pode não cantar." Eu vi passar a miúda e disse: "Vou cantar o reportório todo." Tinha para aí quatro fados. Parece-me que a estou a ver encostada à parede. Chego-me perto dela e digo-lhe assim: "Não se importa de me dar os seus olhos para eu embrulhar aqui no meu lenço?" Resposta dela: "E depois como é que o vejo?" "Através dos meus." Foi mesmo de macho latino.

Casou-se em 1964 e continua apaixonado...
Confesso sem pudores que sou um homem apaixonado pela Maria Judite. Apaixonado. Houve um conjunto de fatores, muita coincidência em gostos e muito conflito em contragostos. Ela já fez 81, é mais velha seis meses, eu vou fazer 81 para o mês que vem. Já não somos novos. Infelizmente, ela tem tido gravíssimos problemas na coluna. Eu não é nada de especial: em 30 anos tive dez operações com anestesia geral e duas com epidural. Nada de grave. E sobrevivi a isto tudo. Às vezes, interrogo-me. Eu sou crente, cristão, mas não da Igreja Católica. Chamo-lhe "o meu Deus". Não costumo dar-lhe maçada. Mas, desta vez, apeteceu-me porque eu estava a morrer. E disse-lhe: "Estou feliz, sabes porquê? Porque vou ouvir a Elis Regina, o Tom Jobim, o Sinatra, o Brel, o tio Alfredo Marceneiro a cantar à desgarrada com a minha mãe e a Maria Teresa de Noronha. Vou para bom sítio." Diz-me ele: "Não vais não, que tu vens para aqui abardinar tudo."

Nunca sentiu o peso da sua mãe como fadista?
Então não senti?! Durante alguns anos, a cantar no Faia, os fãs da minha mãe, que eram brutalmente incondicionais, diziam: "Que bem que tu cantaste! Mas a tua mãe..." Levei anos a ouvir isto. Ficava todo contente. O que isto provocava era duas ondas de público. Comecei a trazer gente muito nova para o fado. A casa de fados parecia a estação do Cais Sodré à hora de ponta.

Depois do 25 de Abril foi-se sabendo que simpatizava com o Partido Comunista...
É um facto.

... e sabe-se da sua admiração pelo Dr. Álvaro Cunhal...
Muita. Amizade mesmo.

Como é que chegou aí? E isso não lhe causou engulhos na sua profissão?
Perante tanta gente que sofre e padece, seria tão ridículo queixar-me de que me quiseram prejudicar! Por uma razão simples. Eu nunca me senti em falta. Então Portugal tem vários partidos políticos, mas tem aqui um muito curioso. É uma série de tipos que gastaram a sua vida nas prisões para ajudar a que Portugal deixasse de ser a ditadura que foi. Esta gente é muito interessante. Tem um projeto onde os mais desfavorecidos podem ser ajudados. Nunca fui militante, nem atuante. Cantei nas festas do Partido Comunista de alto a baixo do país, uma coisa incrível de entrega e vontade, sem nunca cobrar um avo. Foi sempre pro bono. Conclusão: hoje o Hotel Vitória seria meu, por exemplo [risos]. Mas fi-lo com tanto gosto, tanto gosto, tanta dedicação! Fiz não sei quantas Festas do Avante!. E tive a sorte de conhecer pessoas muito interessantes do Partido Comunista por esta terra fora, gente que até estava bem na vida, mas que estavam justamente ligados a uma causa em que acreditavam.

E como conheceu Álvaro Cunhal?
Entretanto, numa das vezes em que estava doente, telefona aqui para a Maria Judite o Álvaro Cunhal. "Para saber do seu homem, como está o seu marido porque me disseram aqui dentro que está doente." A Maria Judite disse "sim, está em Santa Maria, infelizmente, isto está complicado". "Então, força e um abraço meu, está bem?" Não havia cá secretárias. Ligou sete ou oito dias seguidos e começamos a ter uma relação em que, curiosamente, nunca falámos de política. Nunca. Ele era um artista. Na sede da Soeiro Pereira Gomes, ficávamos os dois num gabinete. Ele dissecava-me um poema, dissecava-me um disco. E tornou-se fascinante para mim olhar para aquele homem. Até que houve um dia que eu disse: "Este homem é tão interessante, tão profundamente inteligente, porque será que insiste numa coisa que já se viu que foi mal feita porque implodiu?" Isso fazia-me muita confusão. "Mas eu não tenho coragem de lhe dizer. Deixa. Ele é assim. E é assim que eu sou amigo dele."

Ficaram amigos?
Então ficámos amigos sorridentes. Ele tinha um olhar de aço e uma cara que metia respeito. Ele gostava das pessoas que o olhavam nos olhos, porque os olhos dele atemorizavam um bocado, e eu comecei logo a olhar-lhe nos olhos. Um dia, estávamos num cocktail numa embaixada do Leste e, de repente, eu vejo um sujeito disparado na minha direção, passo estugado. Era ele. Tinha havido eleições e a AD tinha dado um banho de dez a zero. Mas eu cantei que me desunhei. Fui à Madeira, aos Açores, fui a todo o lado. E fi-lo mais uma vez com muito gosto. Vinha agradecer-me. "Em meu nome pessoal e do meu partido, quero agradecer-lhe o esforço que fez e a dedicação. Foi uma belíssima ajuda." Eu disse-lhe: "Belíssima ajuda? Levámos uma tareia." E ele: "Não, repare, as coisas não são assim, as pessoas também votam às vezes por insatisfação, pois não sabem, mas é um trabalho que tem de prosseguir." E eu disse: "Tem, tem, mas há uma coisa que lhe quero dizer. Eu gosto muito de si, mas se o seu partido algum dia for poder, eu sou o primeiro a emigrar." Ele olhou para mim, estendeu-me a mão e disse: "Não esperava outra coisa de si!" Ficámos amigos até ao fim da vida. Fui ao funeral e foi o mais grandioso que eu vi. Nunca vi tanta gente nas varandas, nas janelas, e não me podem dizer que eram todos comunistas. De repente, pegaram em mim e puseram-me a um metro de distância da urna. E lá ia até ao Alto do São João. E tenho de lhe confessar uma coisa. Nesse trajeto, senti uma profunda tristeza. Pode-se não estar de acordo, mas morreu uma grande inteligência portuguesa.

Pagou por isso?
Isto é minha maneira de estar. Paguei por isso? Paguei. Qual é o problema? O que é que paguei? Insultavam-me, caluniavam-me. Ficaram danadíssimos quando eu dei apoio ao António Costa, de quem sou amigo. Ah, agora virou socialista. Este radicalismo que não tem piada nenhuma... Se estou a ajudar aqui, sou daqui. Estou a ajudar ali, sou dali. Olhe, que se trame.

Há uma canção que marcou indelevelmente o seu percurso: Pedra Filosofal, de António Gedeão, cuja música é da autoria do Manuel Freire, mas a sua interpretação é que ficou.
Foi antes do 25 de Abril. Eu sentia que era uma canção agregadora e disse ao Manel que ia cantar a Pedra Filosofal. Não conhecia o Gedeão. E o Manel disse que "aqui não há donos de repertórios". Fi-lo numa estreia de uma coisa qualquer no Monumental e foi o fim da macacada: aquele lá-lá-lá final nunca mais acabava. Havia dentro das pessoas uma certa atitude de resistência. Vinha com isso. O sonho comanda a vida, aquela coisa boa do ser humano que a gente deseja muito, estava ali tudo.

Foi uma canção emblemática que anunciava que alguma coisa estava a mudar...
Cantava Zeca, o Menino d'Oiro, fazia assim umas coisas meio clandestinas. O Zeca, normalmente no 1.º de Maio, era preso. E andavam ali a tentar que ele não fosse preso. E prepararam um abaixo-assinado. Eu tinha uma casa de fados, um comércio aberto. Quem mandava era o SNI [Secretariado Nacional de Informação]. "O Zeca? Claro que assino. É um grande cantor, grande compositor, um grande músico..." E assinei. Passado algum tempo, quem é que me entra pelo Faia dentro? O Zeca. O Zeca aqui? O Zeca não tem nada a ver com isto. Isto é outro mundo. Fomos para o meu escritório. Diz-me ele: "Venho cá para lhe agradecer você ter dado a cara porque não deve ter sido fácil." "Por amor de Deus! Considerei mais do que um dever de gratidão." "Pois é, mas houve pessoas que deviam estar na lista e não estavam."

"Nunca compus, nem nunca toquei nenhum instrumento", diz o Carlos. Tem o ouvido absoluto?
Não é o ouvido absoluto. Eu recebo a canção em bruto num CD. Não entram tecnologias. Tenho aqui um leitor de CD, oiço. Vou tentando perceber. Tenho ao lado uma letra, um poema, vou ouvindo e tentando encaixar na minha cabeça, mas já estou a cantar diferente. Depois deixo de ouvir, mas quero a música na minha cabeça. Quando acordo lá está ela. E é assim que decoro.

Mas há poemas que o Carlos canta e não foram escritos para serem cantados...
Eu tenho um disco com poetas como Bocage, Carlos de Oliveira, Antero de Quental. E foi um gosto. Mas aí a Maria Judite teve uma palavra fundamental. Esta sala era uma pilha de livros no chão. Entre os livros de poesia que nós tínhamos, mais os que os amigos livreiros nos emprestaram, era uma loucura o que a gente leu à procura do encaixe. Quero fazer isto com os fados mais tradicionais, o fado puro e duro com esta gente. "Mas vamos procurar poemas, Maria Judite, que não sejam eruditos, onde eles tenham feito a concessãozinha." E todos fizeram. Mas com calma. Íamos ouvindo e lendo. Até que chegou a altura, devolvemos os livros e fui gravar. Deu-me tanto prazer gravar aquele disco, Mais do Que Amor É Amar. Estava no auge da minha contusão, das pessoas me baterem. Nunca tocou na rádio naquela altura. Veja bem, nunca tocou na rádio!

Chegou a cantar com a Elis Regina?
Na primeira vez que fui ao Brasil. Ela era uma mulher com um feitio muito difícil. Ficámos amigos até ao fim da vida dela. Escreveu-me um postal com um pôr-de-sol como quem anuncia que vai morrer. Tenho-o ali guardado no meu álbum de ouro. Mas repare a empatia que se criou. Eu tinha sete músicos e, no dia seguinte, ela fez um almoço na casa dela para todos. Isto foi no Copacabana Palace. Era um local de elite. Ela cantou, mas, como estava na terra dela, cedeu o protagonismo ao estrangeiro. Era eu. Eu resolvi cantar um reportório equilibrado, cantando duas ou três canções pelo meio e fado, mas estava no auge uma canção que eu adorava, La Valse à Mille Temps. Barra pesada. É preciso dominar a língua francesa e evitar pensar no Brel, porque se se pensa no Brel desiste-se logo. Ela ouviu aquilo e ficou transida. E foi muito bonito. Foi assim que comecei a cantar no Brasil.

Lembro-me de muitas canções do Brel que foram cantadas por outros cantores. Não me lembro de ouvir nenhum artista a cantar a Valse à Mille Temps além do Brel. Como é que o Carlos se decidiu a cantá-la?

Mas quem é que se metia naquilo?

Pois, por isso mesmo.
Ó homem, mas o que é que eu estive a fazer no colégio na Suíça? Não foi a aprender línguas? Lá está a cabecinha para decorar tudo. Aliás, eu estou a usar a palavra errada. Eu não decoro as palavras, eu vivo-as. Isto talvez resulte muito de ter cantado muitas coisas do Ary feitas ao pé de mim. Vi a construção, como aquilo tudo se fazia. Era-me difícil cantar o que quer que fosse que eu não sentisse. Tudo o que eu gravei, eu gostei. Agora a escolha não é minha. As pessoas é que fazem essa escolha. E tornei-me, em relação a esta atitude do canto, qualquer coisa que, de repente, começou a ser uma salada de frutas. Eu, no próprio fado, tinha uma tendência para cantar de uma forma diferente porque estava cheio de música na cabeça. Eu não vivia no gueto do fado. Mas depois comecei a perceber, alto!, que era uma fama que já começa a chatear um bocado: "O Carlos do Carmo canta bem, mas é cançonetista." Não achei piada nenhuma e comecei a cantar o fado da pesada. Foi por isso que fiz esse disco. Eram só fados da pesada. E estão cantados à minha maneira.

Mas foi seguramente no seu meio que começaram a dizer isso.
Claro. É sempre. Quando o Alfredo Marceneiro começou a cantar o fado, há jornais da época que diziam que "apareceu agora um jovem cançonetista, Alfredo Duarte Marceneiro". Não é preciso dizer mais nada, pois não? [risos] Se houve alguém que não foi cançonetista foi o Alfredo Marceneiro. No meu espetáculo de despedida no Coliseu dos Recreios, no ano passado, a produção fez uma coisa muito bonita e surpreendeu-me, porque passou de repente uma série de depoimentos com malta muito gira, até o Mourinho. Fiquei muito sensibilizado. As pessoas bateram muitas palmas. Eu estava de costas para o público e não sabia que o Centeno estava lá. E então fiz o seguinte. Quando chegamos ao Porto eles cantam mais alto e mais forte. Em Lisboa a malta é mais soft a cantar. No Coliseu estavam a cantar-me a Canoa amortecida. Eu parei e disse assim: "Como vocês sabem, o professor Centeno vai dentro de pouco tempo preparar o novo Orçamento. Como calculam, eu não sei nada do novo Orçamento. Mas há uma coisa que eu posso afirmar e que ele não me vai desmentir. Vocês não estão a cantar, não estão a aproveitar uma situação lindíssima. É que se vocês cantarem, não pagam nada por isso, eu é que pago porque sou profissional." E depois vê-se a cara dele na televisão e parecia um puto. Mas voltei a meter-me com ele. Agradeci muito. Estava quase a cair-me a lagriminha. "Bom, esta é a lista boa. E eu tenho uma lista grandinha que não é boa, onde me chamam muitos nomes, por exemplo mãe do árbitro. Esta expressão não é minha. É do professor Centeno, que hoje está na baila. Ele disse uma vez na televisão que estava habituado. Sou a mãe do árbitro [risos]."

Conheceu o Vinicius.
Tenho ali um livro dele com uma dedicatória lindíssima. Ele não era nada boémio... Eu também não. Fosse em São Paulo, fosse em Lisboa, copos até de madrugada. O Vinicius era um diplomata, um senhor que, no fundo, no seio de toda aquela gente, criou grandes estímulos porque era o intelectual. A única pessoa que foi no fio dessa intelectualidade foi o Chico Buarque. De resto, os outros todos adoravam-nos. Ele inventava, estava sempre a inventar, tipo Ary. E depois gostava de cantar com eles. Era estimadíssimo. As últimas palavras que me disse foi em São Paulo. Estava sentado num caixote do som, por detrás da cortina, e eu passei por ele. "Olá, estás bom? Nem sabia que estavas cá, ninguém me disse nada." Estava caidote. "Que bom ver-te. Adeus, querido Carlinhos." Foram as últimas palavras que lhe ouvi. Era um homem muito doce.

E com o Chico, o relacionamento foi fácil?

Eu tornei-o fácil. O Chico não é uma pessoa fácil. É do seu próprio feitio. Muito introspetivo. Depois é um homem de convicções. E, neste momento, está a pagar no Brasil as suas próprias convicções. É um contrassenso que uma pessoa nacional que fez tanto pela música brasileira, um intelectual, um homem incrível como pessoa, o seu porte social, e, de repente, começam a insultá-lo por causa das eleições brasileiras, que ganhou outro tipo que a gente nem sabe quem é, é o Trump da Brandoa, é mau de mais para ser verdade. Mas o Chico é uma pessoa muito interessante. Tenho histórias passadas com o Chico, uma aqui em Lisboa... Ele fala pouco da vida dele, mas eu pu-lo a falar. "Ó Chico, diz lá como é essa coisa de ser avô... Eu devo dizer-te que sou fascinado, neto é aquela pessoa que a gente deseduca e tenho paixão pelos meus netos." "Eu também", disse ele. "Tenho um, o Francisco, que vive na Bahia, que me telefona e me pergunta se tenho dois minutos para me dizer um poema que tinha feito." Ele disse o poema e o Chico diz-lhe: "Mas isso está muito bonito." E ele: "Vovô, dois minutos. Não é três dias para fazer um poema. Dois minutos." Ele contou isto embevecido.

E que músicos franceses conheceu?

O Bécaud no Olympia. Olhou para mim quando eu comecei a cantar, a ensaiar, disse-me assim: "Desculpa lá, não te conhecia. Mas tu vens donde?" "Eu venho de Portugal, sou português." "Mas tu és profissional e estás aqui com uma adaptação rápida, a conduzir as coisas, a preparar o ensaio, as luzes, o som..." E eu disse-lhe: "Olha, sabes uma coisa? Eu venho de um país onde já cantei em cima de um trator com uma geradora para dar luz e um bocadinho de som que soava mais alto do que a minha própria voz. Portanto, estás a ver o que é que eu já fiz. Chegar aqui, a este palco, está bem, eu sei que é o Olympia, já é outra coisa. Mas é bom lembrar que eu já fiz isso." Ficámos amigos para o resto da vida. Ele sempre que vinha a Lisboa fazia questão de tomarmos uma refeição.

Conheceu Leo Ferré?
O Ferré não. Conheci o Serge Reggianni. A Greco. Era uma mulher muito interessante, muito interessante mesmo. Conheci o maestro que fazia os arranjos para o Brel, François Robert. Passámos uma tarde na Caparica. Dei-lhe uma fortíssima caldeirada, na Carolina do Aires, uma caldeirada a sério. O homem estava felicíssimo. Viemos para minha casa, sentámo-nos no terraço, eu tinha na altura casa na Caparica e ele começou a contar histórias do arco-da-velha. O Brel tinha um carro grande americano que era do pai. O Brel, quando veio para Paris, foi cantar para o bas-fond. É um trajeto fantástico. Há uma história que eu destaco. Andam no carro, quatro ou cinco lá dentro e, de repente, o carro começa a soluçar. O que seria? Falta de combustível. E então cada um, à vez, foi urinar para dentro do depósito e o carro lá andou até à estação de serviço. O Brel era um tipo especial. Fechado. Detestava dar entrevistas, mas era um homem muito inteligente. Se a gente ouvir palavra por palavra, nada é por acaso. E atual. E isso é que é difícil.

Em Portugal, a sua grande parceria foi com Ary dos Santos?
Sem dúvida.

O Ary era também uma pessoa de extremos...
Ah, era, mas era uma pessoa deslumbrante. A personalidade do Ary era absolutamente fascinante. A morte dele representou um golpe muito rude para mim, para a minha mulher e para os meus filhos porque, aqui em casa, ele era estimado como uma pessoa de família. Eu sobre o Ary poderia ter quinhentas histórias para contar. A ver se me lembro de alguma possível. Era a gente ir a casa dele para depois trabalhar, nesse dia por acaso ia com a Judite, e depois começavam a chegar dois ou três amigos. Um levava a viola porque ele dizia "não me venhas para aqui com pianos". Coisas simples. Viola. Para fazer a canção, o fado. Ele trabalhava que nem um cão durante o dia. E tinha uma empregada a quem deixou todos os utensílios que tinha em casa como testamento e chamava-se Fátima. Íamos a entrar, estava a sair do banho e ouvimo-lo dizer com uma voz tonitruante: "Fátima, traz-me as vestes de Sua Alteza!" Ou então com a Judite e duas ou três mulheres, estávamos para sair, e ele virava-se para ela e dizia assim: "Só um momento. Falta-me pôr os brincos." Mil histórias. Provocador. Acho que o Partido Comunista dava instruções aos seus militantes para não responderem a provocações. Ele era disciplinado. Provocava ele. Generoso. Eu não quero dizer os nomes porque não ficava bem, mas, muitas vezes, quando comprava mercearias, coisas para a despensa dele, iam parar a casa de outras pessoas. Comida. E, nalguns casos, um ou dois, nunca souberam quem era.

O Carlos tem um grande fascínio pelo Sinatra.
Absoluto.

Chegou a vê-lo ao vivo?
No Porto. O filho é que dirigia a orquestra. Ele entrou trôpego e, nas duas ou três primeiras canções, o motor ainda não estava quente. E as pessoas à minha volta olharam. Eu levei o meu genro, a minha nora, os filhos, o gato, o periquito, convidei toda a gente. "Vamos ouvir o Sinatra. É uma vez na vida, mas temos de ir. Já que vos dei cabo da cabeça o tempo todo, ao menos quero que o vejam." Ele canta aquelas três primeiras canções e eu digo para mim: "Estou feito, vão dar-me na cabeça." Vem a quarta canção e ele começa a cantar em cima. Vem a quinta e ele a cantar em cima. Vem a sexta e ele a cantar em cima. Cantou uma só para tenor que vai lá bem acima. E cantou como está nos discos. Foi de tal maneira que os músicos começaram a aplaudir porque o homem transcendeu-se. Foi assim até ao fim. Fez a sua boutadezinha. Como não sabia onde estava disse: "I"m here... somewhere in the world..." Tinha um ponto no palco enorme para não se perder e uma envolvência... A canção mais simples do mundo, ele transformava-a numa perolazinha. Depois havia ali um macio de dividir a canção, dar intenção às palavras, ter a noção da música. Ele era um grande cantor de swing. Tinha um ritmo de cabeça que era incrível. Eu tenho ali discos do Sinatra em que ele canta a mesma canção de quatro maneiras diferentes. Eu comparo-o a um fadista. Nunca é igual. É incrível.

Fez um disco a solo com o Bernardo Sassetti. Mas ele já tinha colaborado consigo no seu espetáculo de 40 anos de carreira.
Tinha muita estima por ele, muito apreço, e cheguei ali a um momento em que lhe perguntei: "Ó Bernardo, você gosta de fado?" E ele: "Depende." Ele tinha muito humor. Depende de quê? "De quem o cantar, por exemplo." Isto é bem o Bernardo. Tinha uma graça, um humor incrível. Era um pacote único: talento, educação, generosidade, tudo num homem só. Dá-me quase vontade de chorar por falar nele porque foi uma perda irreparável. O Ary foi muito lá atrás, foi terrível, aí chorei mesmo. O Bernardo foi um vazio. Nós gravámos um disco da seguinte forma: convidei-o para jantar num restaurante alentejano, na Rua de Entrecampos, e depois disse-lhe: "Sabe, há determinadas coisas da minha vida que tenho feito como um sonho. E considero-me um tipo feliz porque normalmente costumo materializar esses sonhos. Sabe do que é que eu gostava mesmo? De gravar um disco, você e eu. Mais ninguém." E ele: "Mas é disso que eu estou à espera." Devo dizer o seguinte em relação a esse disco: das dez canções, seis ou sete foram gravadas no primeiro take. Sabe porquê? Porque nós encaixávamos. Ele estava muito atento à minha forma de cantar. Eu estava muito atento à forma de tocar dele. E então era perfeita a simbiose. Quem é que era o fiscal? A Maria Judite, que estava na régie, e se ela dissesse que não... Três vezes disse que não. E é engraçado que, no final das músicas, o silêncio, depois de ter acabado, e o Bernardo dizia: "Vamos lá ver se o fiscal deixa passar." Quando ela deixava passar, parecia um miúdo. Fazia flic flacs. Encantador. Nada armado em bom. "Que tal é que ficou esta canção?" Diz ele: "Bom, na minha opinião isto é definitivo." Era muito generoso.

Também fez um disco com a Maria João Pires.

É apenas uma das melhores pianistas do mundo.

E foi fácil trabalhar com ela?
Outro estilo completamente diferente. Eu cantei com a Maria João Pires porque ela me convidou para gravar um disco com ela. Era minha fã. Eu fiquei de boca aberta. "Gostava Carlos?" Estávamos em cima de um palco. Ela estava a receber uma homenagem. Estava o António Vitorino d'Almeida, que era o mestre-de-cerimónias, e ela disse: "Ó António, tens aqui poetas na plateia, vê se falas com eles porque eu gostava de gravar um disco de fados com o Carlos." Assim. O anúncio foi este. E pronto. Ela desapareceu, a Philips falou com a Deutsche Grammophon, até que ela, com aquele calendário brutal, lá arranjou um buraco. Na altura, ela vivia na Suíça. É tão diferente o ambiente. Eu estava deliciado a ouvi-la, deliciado. E sentia-me a mais a cantar. Mas ela adorava ouvir-me cantar, encosta daqui, encosta dali, e pronto. E, no fundo, eram duas pessoas que amam música e que estão a tentar. Mas ela... feitiozinho. Há um momento em que parei de cantar porque o separador que ela tinha feito era de tal maneira deslumbrante que eu fiquei de boca aberta a ouvir. E chegou a minha vez de cantar e não cantei. A senhora lá de baixo - ela estava no piano lá em baixo, eu estou na cabine cá em cima - disse assim: "Ah, não fizemos o trabalho de casa." E eu disse com toda a franqueza: "Sabe uma coisa, Maria João, eu estava deslumbrado a ouvi-la. Desculpe se interrompo o trabalho, mas a razão é esta." "Está bem", disse ela, "mas agora não tem nada de estar deslumbrado porque estamos a gravar". Mas a vingança serve-se fria. Passado um bocado, eu estava a cantar uma coisa direitinha e ela baldou-se completamente e parou. E eu disse-lhe: "Pois, não fizemos o trabalho de casa."

É de conhecer os artistas de quem gosta mais?
Estas é que são as grandes heranças e as grandes fortunas que a gente leva para baixo da terra, porque cantar é bonito. A música é uma arte incrível, mas se no meio disso encontrarmos pessoas que valeram a pena... Lamentavelmente, tenho de dizer que não são tantas assim. Estou a falar de pessoas. Há artistas intratáveis. Não me faltava a mim mais nada do que aturar vedetas. Não aturo. Não tenho paciência nenhuma para a Bethânia. Nenhuma. Vedeta, madame... Isso, para mim, não existe. Se é vedeta, fique lá com o vedetismo. Tem de haver inter pares. O Piazzola era um homem simples, supermúsico. O Paco de Lucia, quando o fui ouvir a Castro Marim, fez-me uma dedicatória num pacote de discos dele que eu tenho e não esteve com meias medidas: "Para Carlos, mi inspiracion, mi maestro. Gracias." Inverteu tudo. Combinámos que, no disco seguinte, eu lhe mandava uma canção minha, e se ele me desse a honra de me acompanhar... "Está combinado, está feito." Morreu uma semana depois no México com um ataque de coração. Ficámos em dívida. Um tipo giríssimo.

Como mudou com o tempo?
Eu nunca fui um homem de mau trato. O Ary chamava-me diplomata. Sou desse género de pessoa. Com o tempo, fui perdendo paciência e começando a contar o tempo. Isto está a decrescer de uma maneira que o meu tempo tem de ser útil dentro do possível. E houve pessoas de quem me comecei a afastar. Se é para conversa de chacha, prefiro estar a ler e ouvir música. E isso veio com a idade. Por exemplo, o tempo que estamos a viver. Sofro. Estou realmente a sofrer bastante com esta pandemia, com todas estas circunstâncias em que o mundo está. E acho que estamos a viver uma tempestade perfeita. Isso dói-me. Dói-me muito. Estou confinado, não posso sair de casa porque sou um doente de alto risco. Mas, de vez em quando, dou uma espreitadela à televisão e indigno-me. Não é possível. Uma coisa é fazer política, outra é passar o tempo a insultar o adversário, não é o inimigo. Acho isso terceiro-mundista. Não tenho paciência. É uma altura de estarmos todos juntos. Cada um guarda a sua ideologia. Juntos, porque é terrível o que está a acontecer. Todos os dias morre gente e é gigantesco. Calma! Não estamos a discutir o Orçamento do Estado. Estamos a discutir como é que sobrevivemos. Questão económica? Claro que deve ser brutal. Uma pessoa que leva a vida inteira a trabalhar e, de repente, fica sem nada... não tem piada nenhuma. Mas se nós nos unirmos, até nesse aspeto nos podemos ajudar uns aos outros. Mas não. Vem um fulano e fala de três ou quatro coisas mal feitas, mas nada do que foi bem feito. É insuportável. A idade traz isto. Temos de ter disponibilidade para as coisas belas que, afinal, são de borla. Nesta casa onde eu moro, uma das coisas de que eu mais gosto, quando está uma luz boa, é o reflexo sobre os prédios, que faz ali uma luz meio avermelhada, e eu sou capaz de me pôr na varanda só a ver isso. Que sortudo que eu sou. Estou na cidade que tem a melhor luz do mundo. Coisas para que temos de ter tempo... Essas valem a pena.

Ainda tem borboletas na barriga antes de subir ao palco?
Nem queira saber. Nos últimos tempos, eu quase morria. O palco não é nenhuma brincadeira. Mas depois de estarmos com as pessoas há qualquer coisa que nos alivia.
DN


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