Aldina Duarte: "a Capicua é um 'animal' de talento raro"
Interviews - Abril 03, 2024
O ecossistema de inspiração para o disco é a zona encantada de Sintra, das árvores ao mar. Capicua por lá se inspirou para escrever as letras para os fados de Aldina. Metade a metade, as duas fizeram uma unidade colossal feminina de 11 fados.
Foi um voto de grande confiança desafiares a Capicua à escrita de todas as letras dos teus novos fados?
Não, foi mais taco-a-taco a responsabilidade, porque a Capicua já é uma artista que eu valorizo há muitos anos, que admiro, com quem tenho muitas afinidades artísticas e políticas e outras. Tornámos-nos amigas, entretanto. Ela já escreveu para a Gisela [João] também, por exemplo, para o Fado Bicha e, pontualmente, para outros. E lembrei-me porque é que eu gosto de fazer discos só de um letrista, ou só meu, ou só do João Monge, ou só da Maria do Rosário Pedreira. O que é que eu quero dizer às pessoas? Eu não gravo discos por gravar, não tenho essa necessidade ou essa vontade sequer. Primeiro tenho que pensar o que é que eu quero dizer às pessoas. E comecei a pensar que nesta altura, e depois da pandemia, as questões que mais me afligiam eram de um carisma mais político e social, algumas, artisticamente. Estava ali num impasse criativo, sem saber por onde ir. Não era uma crise profunda de deixar de cantar, mas sobre o que fazer. Basicamente é o que estou a fazer agora, depois desta experiência tão forte e destas mudanças todas. E lembrei-me: a Capicua foi ver um concerto meu no Porto e mesmo em palco eu disse-lhe que sempre tive uma ligação muito forte com as pessoas do Porto no que diz respeito ao fado. Porque a responsável número um foi a Beatriz da Conceição, que era do Porto. Foi ao ouvi-la ali, àquele metro de distância, que mudou tudo. Foi a minha segunda grande revolução, a seguir ao 25 de Abril. Depois, a Maria da Fé - que foi quem acreditou e apostou tudo e me deu um espaço na casa dela para crescer como eu quisesse - é do Porto. Depois, o único músico a compor diretamente para mim sem ser do fado tradicional, foi o Manuel Cruz [Ornatos Violeta, Foge Foge Bandido, etc], que é do Porto. Isto foi mera coincidência e eu, por graça, disse à Capicua, juntávamos o útil ao agradável. Por acaso, também a Capicua é do Porto. E ela teve a resposta para mim mais inteligente e mais fiável, seja no que for. “Eu só escrevo um disco de fados tradicionais se me ensinares a escrever fados tradicionais”. Ela sabia que eu fazia oficinas de escrita de letras para fados tradicionais. É o ponto de partida mais certo. Não podia haver outro. Por isso, eu não arrisquei nada. E ela também não teve nenhuma grande responsabilidade. Ela puxa-se na posição certa. E a questão é que de facto eu comecei pelo programa que uso nas oficinas, só que estava perante um animal de talento raro e fui muito mais longe do que alguma vez fui em alguma oficina e a partir de uma certa altura foi mesmo ela que me levou porque ela exigia. Ela acha que sou muito exigente e sou, também sou comigo, portanto não sei muito bem ter uma relação de aprendizagem se for de outra maneira, seja com quem for. Mas ela também é exigente, rigorosa e obstinada, quanto mais foi percebendo toda aquela dinâmica e todas as regras e os códigos de linguagem. Como também é uma rebelde em muitos aspectos, ela quis desafiar a linguagem. E eu estava ali como o polícia que tenta provar, sim ou não, se não é forçado, porque mudar por mudar não vale a pena. Iriamos estragar uma coisa muito bem feita e muito antiga, portanto temos que ter esse cuidado. E tudo o que eu quero menos na minha vida é qualquer objeto artístico que soa pretensioso. Para mim, a coisa mais pirosa que existe é um objeto artístico ser pretensioso. Foram três meses. A Capicua também estava num momento de crise criativa, bastante mais profunda do que a minha. E a partir de uma certa altura, os exercícios que eu ia mandando semana a semana tornaram-se fados definitivos que foram desenhando o disco.
O que te dizias à Capicua é o que cantas em ‘Aprendiza’?
Foi a Ana que quis fazer esse tema para explicar num fado o que é que lhe tinha acontecido nas nossas oficinas, ela sentia-se a aprendiza. O que é grandioso para mim nesse fado é que ela está a contar uma história e a escrever uma letra sobre a sua experiência pessoal e, pelo seu talento, transforma-se numa breve história de como todos os fadistas aprendem no fado. Esta arte de tradição oral é igual àquilo que a Capicua escreveu ali como sendo a sua experiência, de tudo o que eu lhe dizia... Aquilo foi o que me disse a Beatriz da Conceição, a Maria da Fé, os músicos com quem trabalhei. Aliás, os meus músicos, quando ouviram aquele tema e aquela letra, disseram: “isto é como todos nós aprendemos”. E é verdade. Ela conseguiu transformar uma experiência pessoal num resumo de como é que é que feita a passagem de testemunho dentro de uma tradição oral como o fado.
O lançamento do disco cola-se ao Dia da Árvore, e tem uma mensagem mais interventiva, à beira dos 50 anos da democracia. É uma coincidência?
Foi uma mera coincidência. Nós só alterámos a data de saída do disco e o plano todo em relação à promoção do disco e às questões relacionadas com o lançamento do novo disco, porque houve eleições antecipadas, porque já tínhamos outro plano feito antes. Nós nem sequer pensámos que ia haver um disco já. As oficinas duraram três meses até haver aqueles 11 temas. E se houvesse [disco] havia, se não houvesse não havia. Não havia nenhum compromisso, nenhum. Até eu pensei que tinha chegado ao fim o contrato com a Sony, que não era um contrato de artista como este, era disco a disco. A Sony chamou-me, eu até pensei que íamos acabar. E de repente tive uma surpresa incrível que foi fazer um contrato de artista, ou seja, toda a responsabilidade e a aposta é da Sony. Não há mais... Quiseram apostar em mim como uma artista quase de catálogo deles. Aliás, eu sou uma artista de catálogo deles no fundo, porque eles têm a minha obra quase toda e até estão a tentar ver se conseguem ter as duas, que não têm. E nem havia ainda essa proposta da Capicua. Assinei então esse novo contrato, que foi maravilhoso. E só depois é que eu cheguei ao pé de deles. Passados uns tempos, eu disse-lhes que afinal tenho um disco já feito com a Capicua. Ficou toda a gente muito contente, obviamente, porque acharam que alguma coisa de novo vinha e com algum valor, obviamente. Desculpem-me estar com falsas modéstias, mas uma coisa que nasce de mim e da Capicua tem que ser boa. Portanto, ficaram ainda mais contentes, porque não estavam à espera de tanto, no fundo. Acho que também foi uma experiência muito forte para a Capicua, ela assim o diz em todo o lado. Entrou num novo universo, e eu também entrei, porque ela também traz uma sonoridade, um léxico e temas para o disco que até hoje eu nunca cantei, e no fado também é muito raro. A nível daquele léxico, nunca foi cantado. Portanto, isso muda a linguagem. Aquelas temáticas também não foram cantadas. Era um sonho que eu tinha estar a cantar uma mulher que vem do rap, onde a palavra também tem um peso muito importante e até é bastante politizada. Coincidentemente, estamos no 25 de Abril, é o Dia da Árvore, é o Dia da Água, é o dia da primavera, é o Dia da Poesia, está tudo ali à volta do 22. É uma conjugação que me parece que é um bom presságio.
Eu creio que também é o Dia para a Eliminação da Discriminação Racial.
Sim, está lá tudo. Está lá muita coisa. E depois, ainda por cima, há os 50 anos do 25 de Abril.
Há bocado estavas a falar de crise de inspiração e de dúvidas por que passaste.
Não, eu não tive esse tipo de crise existencial. Eu gosto do meu trabalho, tenho um caminho, já construí alguma obra que me permite levá-la... O fado tem esta generosidade, envelhece muito bem. E o tipo de matéria melódica e poética com que trabalho nunca está feita. Eu tenho trabalho para continuar a fazer. Criativamente, tenho sempre alimento. O único problema pode haver não é nos fados, é em mim. Portanto, se eu não os cantar bem, o problema é meu, porque eles são sempre bons e têm sempre espaço para se tornarem melhores. Eu é que tenho que ter unhas para isso. Agora, a minha questão era gravar o disco. Porque eu continuaria a fazer os meus concertos, a cantar. Se for caso disso, também vou à casa de fados, se me apetecer cantar. É a minha casa, no fundo não tenho outra. A questão aqui era gravar um disco para quê? Era essa a pergunta, não era nenhuma crise. Era uma pergunta, a crise criativa.
Será que o terceiro tema do disco, ‘Pisco de Peito Ruivo’, representa a perguntas que estavas a fazer a ti própria?
No ‘Pisco de Peito Ruivo’, atrevo-me a dizer que aquele é o fado que define a situação que ela sentia em relação à arte dela. Eu não. Cantei aquele fado como aqueles cantores fora do baralho, cantores de intervenção que foram presos antes do 25 de Abril ou que tiveram que fugir, que não puderam pôr a sua obra cá fora por motivos de censura, por motivos puramente comerciais. Aquilo para mim é uma espécie de hino, que dedico ao Carlos do Carmo. Primeiro porque essa melodia chama-se Fado Esmeraldinha, eu aprendi-a como um dos mais belos fados, talvez o mais belo para mim, com uma letra do Vasco de Lima Couto, que é a voz que eu tenho como pensamento. É um fado anterior ao 25 de Abril. Mas como, felizmente, na censura eram bastante estúpidos, não perceberam que aquilo era um fado altamente politizado. Essa melodia, eu acho lindíssima, já a gravei. Ninguém percebe essas coisas, é bom sinal para mim. Mas eu já gravei essa melodia em quase todos os discos, faço questão. Essa e a do Fado Cravo, com letras diferentes e com abordagens tão diferentes, tão diferentes que ninguém percebe que eu estou a gravar a mesma melodia. Esse é o espírito do fado tradicional. É transformar aquela melodia, porque ela tem essa essência e essa génesis. Por isso é que temos que conseguir interpretar e entregar-nos de tal maneira à história que estamos a cantar naquela melodia que nunca ninguém se vai lembrar do outro fado que não aquele. Se isso acontecer é porque tu não estás lá e nunca acontece. Portanto, eu acho esta melodia particularmente das mais belas do fado. É uma estrutura em decassílabo. Aprendi-a cantar com o Carlos do Carmo. Acabei por a cantar num concerto dele no Coliseu.
A ‘Praia da Adraga’ é uma sala de estar tua que a Capicua foi visitar e que amou.
A Capicua costuma agradecer os lugares que eu lhe mostro. Ou seja, à medida que nós íamos trabalhando na parte técnica da coisa, ela também queria saber mais coisas de mim, não é? Uma vez, estava a escrever para mim, queria saber. Estávamos por ali a cerca de duas a três horas em zoom, que é uma seca, porque ela estava no Porto. Essa foi a única parte do processo que eu não gostei.
[A Capicua] Queria ir sabendo coisas da minha vida que não sabia. A minha mãe, a família materna é toda de Sintra, da zona de Colares, e desde pequenina que as minhas férias foram sempre ali. Vivi muito pouco tempo, numa altura que não me lembro, não me recordo propriamente, porque foi no início de vida. Mas, depois, foram sempre ali os meus três meses de férias. A verdade é que eu não consigo estar muito longe daquela terra, desde sempre. Uma bela terra. As araucárias vêm dali, ainda que Lisboa tenha muitas. A Praia da Adraga é dali, o mar do meu contentamento é dali. Portanto, eu acho que até a minha sensibilidade estética é dali.
Foi um voto de grande confiança desafiares a Capicua à escrita de todas as letras dos teus novos fados?
Não, foi mais taco-a-taco a responsabilidade, porque a Capicua já é uma artista que eu valorizo há muitos anos, que admiro, com quem tenho muitas afinidades artísticas e políticas e outras. Tornámos-nos amigas, entretanto. Ela já escreveu para a Gisela [João] também, por exemplo, para o Fado Bicha e, pontualmente, para outros. E lembrei-me porque é que eu gosto de fazer discos só de um letrista, ou só meu, ou só do João Monge, ou só da Maria do Rosário Pedreira. O que é que eu quero dizer às pessoas? Eu não gravo discos por gravar, não tenho essa necessidade ou essa vontade sequer. Primeiro tenho que pensar o que é que eu quero dizer às pessoas. E comecei a pensar que nesta altura, e depois da pandemia, as questões que mais me afligiam eram de um carisma mais político e social, algumas, artisticamente. Estava ali num impasse criativo, sem saber por onde ir. Não era uma crise profunda de deixar de cantar, mas sobre o que fazer. Basicamente é o que estou a fazer agora, depois desta experiência tão forte e destas mudanças todas. E lembrei-me: a Capicua foi ver um concerto meu no Porto e mesmo em palco eu disse-lhe que sempre tive uma ligação muito forte com as pessoas do Porto no que diz respeito ao fado. Porque a responsável número um foi a Beatriz da Conceição, que era do Porto. Foi ao ouvi-la ali, àquele metro de distância, que mudou tudo. Foi a minha segunda grande revolução, a seguir ao 25 de Abril. Depois, a Maria da Fé - que foi quem acreditou e apostou tudo e me deu um espaço na casa dela para crescer como eu quisesse - é do Porto. Depois, o único músico a compor diretamente para mim sem ser do fado tradicional, foi o Manuel Cruz [Ornatos Violeta, Foge Foge Bandido, etc], que é do Porto. Isto foi mera coincidência e eu, por graça, disse à Capicua, juntávamos o útil ao agradável. Por acaso, também a Capicua é do Porto. E ela teve a resposta para mim mais inteligente e mais fiável, seja no que for. “Eu só escrevo um disco de fados tradicionais se me ensinares a escrever fados tradicionais”. Ela sabia que eu fazia oficinas de escrita de letras para fados tradicionais. É o ponto de partida mais certo. Não podia haver outro. Por isso, eu não arrisquei nada. E ela também não teve nenhuma grande responsabilidade. Ela puxa-se na posição certa. E a questão é que de facto eu comecei pelo programa que uso nas oficinas, só que estava perante um animal de talento raro e fui muito mais longe do que alguma vez fui em alguma oficina e a partir de uma certa altura foi mesmo ela que me levou porque ela exigia. Ela acha que sou muito exigente e sou, também sou comigo, portanto não sei muito bem ter uma relação de aprendizagem se for de outra maneira, seja com quem for. Mas ela também é exigente, rigorosa e obstinada, quanto mais foi percebendo toda aquela dinâmica e todas as regras e os códigos de linguagem. Como também é uma rebelde em muitos aspectos, ela quis desafiar a linguagem. E eu estava ali como o polícia que tenta provar, sim ou não, se não é forçado, porque mudar por mudar não vale a pena. Iriamos estragar uma coisa muito bem feita e muito antiga, portanto temos que ter esse cuidado. E tudo o que eu quero menos na minha vida é qualquer objeto artístico que soa pretensioso. Para mim, a coisa mais pirosa que existe é um objeto artístico ser pretensioso. Foram três meses. A Capicua também estava num momento de crise criativa, bastante mais profunda do que a minha. E a partir de uma certa altura, os exercícios que eu ia mandando semana a semana tornaram-se fados definitivos que foram desenhando o disco.
O que te dizias à Capicua é o que cantas em ‘Aprendiza’?
Foi a Ana que quis fazer esse tema para explicar num fado o que é que lhe tinha acontecido nas nossas oficinas, ela sentia-se a aprendiza. O que é grandioso para mim nesse fado é que ela está a contar uma história e a escrever uma letra sobre a sua experiência pessoal e, pelo seu talento, transforma-se numa breve história de como todos os fadistas aprendem no fado. Esta arte de tradição oral é igual àquilo que a Capicua escreveu ali como sendo a sua experiência, de tudo o que eu lhe dizia... Aquilo foi o que me disse a Beatriz da Conceição, a Maria da Fé, os músicos com quem trabalhei. Aliás, os meus músicos, quando ouviram aquele tema e aquela letra, disseram: “isto é como todos nós aprendemos”. E é verdade. Ela conseguiu transformar uma experiência pessoal num resumo de como é que é que feita a passagem de testemunho dentro de uma tradição oral como o fado.
O lançamento do disco cola-se ao Dia da Árvore, e tem uma mensagem mais interventiva, à beira dos 50 anos da democracia. É uma coincidência?
Foi uma mera coincidência. Nós só alterámos a data de saída do disco e o plano todo em relação à promoção do disco e às questões relacionadas com o lançamento do novo disco, porque houve eleições antecipadas, porque já tínhamos outro plano feito antes. Nós nem sequer pensámos que ia haver um disco já. As oficinas duraram três meses até haver aqueles 11 temas. E se houvesse [disco] havia, se não houvesse não havia. Não havia nenhum compromisso, nenhum. Até eu pensei que tinha chegado ao fim o contrato com a Sony, que não era um contrato de artista como este, era disco a disco. A Sony chamou-me, eu até pensei que íamos acabar. E de repente tive uma surpresa incrível que foi fazer um contrato de artista, ou seja, toda a responsabilidade e a aposta é da Sony. Não há mais... Quiseram apostar em mim como uma artista quase de catálogo deles. Aliás, eu sou uma artista de catálogo deles no fundo, porque eles têm a minha obra quase toda e até estão a tentar ver se conseguem ter as duas, que não têm. E nem havia ainda essa proposta da Capicua. Assinei então esse novo contrato, que foi maravilhoso. E só depois é que eu cheguei ao pé de deles. Passados uns tempos, eu disse-lhes que afinal tenho um disco já feito com a Capicua. Ficou toda a gente muito contente, obviamente, porque acharam que alguma coisa de novo vinha e com algum valor, obviamente. Desculpem-me estar com falsas modéstias, mas uma coisa que nasce de mim e da Capicua tem que ser boa. Portanto, ficaram ainda mais contentes, porque não estavam à espera de tanto, no fundo. Acho que também foi uma experiência muito forte para a Capicua, ela assim o diz em todo o lado. Entrou num novo universo, e eu também entrei, porque ela também traz uma sonoridade, um léxico e temas para o disco que até hoje eu nunca cantei, e no fado também é muito raro. A nível daquele léxico, nunca foi cantado. Portanto, isso muda a linguagem. Aquelas temáticas também não foram cantadas. Era um sonho que eu tinha estar a cantar uma mulher que vem do rap, onde a palavra também tem um peso muito importante e até é bastante politizada. Coincidentemente, estamos no 25 de Abril, é o Dia da Árvore, é o Dia da Água, é o dia da primavera, é o Dia da Poesia, está tudo ali à volta do 22. É uma conjugação que me parece que é um bom presságio.
Eu creio que também é o Dia para a Eliminação da Discriminação Racial.
Sim, está lá tudo. Está lá muita coisa. E depois, ainda por cima, há os 50 anos do 25 de Abril.
Há bocado estavas a falar de crise de inspiração e de dúvidas por que passaste.
Não, eu não tive esse tipo de crise existencial. Eu gosto do meu trabalho, tenho um caminho, já construí alguma obra que me permite levá-la... O fado tem esta generosidade, envelhece muito bem. E o tipo de matéria melódica e poética com que trabalho nunca está feita. Eu tenho trabalho para continuar a fazer. Criativamente, tenho sempre alimento. O único problema pode haver não é nos fados, é em mim. Portanto, se eu não os cantar bem, o problema é meu, porque eles são sempre bons e têm sempre espaço para se tornarem melhores. Eu é que tenho que ter unhas para isso. Agora, a minha questão era gravar o disco. Porque eu continuaria a fazer os meus concertos, a cantar. Se for caso disso, também vou à casa de fados, se me apetecer cantar. É a minha casa, no fundo não tenho outra. A questão aqui era gravar um disco para quê? Era essa a pergunta, não era nenhuma crise. Era uma pergunta, a crise criativa.
Será que o terceiro tema do disco, ‘Pisco de Peito Ruivo’, representa a perguntas que estavas a fazer a ti própria?
No ‘Pisco de Peito Ruivo’, atrevo-me a dizer que aquele é o fado que define a situação que ela sentia em relação à arte dela. Eu não. Cantei aquele fado como aqueles cantores fora do baralho, cantores de intervenção que foram presos antes do 25 de Abril ou que tiveram que fugir, que não puderam pôr a sua obra cá fora por motivos de censura, por motivos puramente comerciais. Aquilo para mim é uma espécie de hino, que dedico ao Carlos do Carmo. Primeiro porque essa melodia chama-se Fado Esmeraldinha, eu aprendi-a como um dos mais belos fados, talvez o mais belo para mim, com uma letra do Vasco de Lima Couto, que é a voz que eu tenho como pensamento. É um fado anterior ao 25 de Abril. Mas como, felizmente, na censura eram bastante estúpidos, não perceberam que aquilo era um fado altamente politizado. Essa melodia, eu acho lindíssima, já a gravei. Ninguém percebe essas coisas, é bom sinal para mim. Mas eu já gravei essa melodia em quase todos os discos, faço questão. Essa e a do Fado Cravo, com letras diferentes e com abordagens tão diferentes, tão diferentes que ninguém percebe que eu estou a gravar a mesma melodia. Esse é o espírito do fado tradicional. É transformar aquela melodia, porque ela tem essa essência e essa génesis. Por isso é que temos que conseguir interpretar e entregar-nos de tal maneira à história que estamos a cantar naquela melodia que nunca ninguém se vai lembrar do outro fado que não aquele. Se isso acontecer é porque tu não estás lá e nunca acontece. Portanto, eu acho esta melodia particularmente das mais belas do fado. É uma estrutura em decassílabo. Aprendi-a cantar com o Carlos do Carmo. Acabei por a cantar num concerto dele no Coliseu.
A ‘Praia da Adraga’ é uma sala de estar tua que a Capicua foi visitar e que amou.
A Capicua costuma agradecer os lugares que eu lhe mostro. Ou seja, à medida que nós íamos trabalhando na parte técnica da coisa, ela também queria saber mais coisas de mim, não é? Uma vez, estava a escrever para mim, queria saber. Estávamos por ali a cerca de duas a três horas em zoom, que é uma seca, porque ela estava no Porto. Essa foi a única parte do processo que eu não gostei.
[A Capicua] Queria ir sabendo coisas da minha vida que não sabia. A minha mãe, a família materna é toda de Sintra, da zona de Colares, e desde pequenina que as minhas férias foram sempre ali. Vivi muito pouco tempo, numa altura que não me lembro, não me recordo propriamente, porque foi no início de vida. Mas, depois, foram sempre ali os meus três meses de férias. A verdade é que eu não consigo estar muito longe daquela terra, desde sempre. Uma bela terra. As araucárias vêm dali, ainda que Lisboa tenha muitas. A Praia da Adraga é dali, o mar do meu contentamento é dali. Portanto, eu acho que até a minha sensibilidade estética é dali.
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